“o propósito das leis não é proporcionar a verdade das opiniões,
mas a segurança e proteção da comunidade,
e da pessoa e dos bens de cada homem particular.” John Locke 1.
Recentemente, em julgamento no final de outubro de 2022, a Terceira Turma do STJ julgou o REsp 1.994.563/MG2, no qual decidiu sobre a impossibilidade de responsabilizar empresas vendedoras de passagens aéreas pelo extravio de bagagens de passageiros, limitando desta forma a cadeia de fornecimento na relação de consumo.
A vendedora de passagem aérea não responde solidariamente pelos danos morais experimentados pelo passageiro em razão do extravio de bagagem
A ação de compensação por danos morais foi ajuizada por consumidor contra empresa de milhas e uma companhia aérea, dado que a compra da passagem aérea da empresa de transportes se deu por meio da plataforma virtual da empresa de milhas, tendo descoberto que sua mala foi extraviada ao chegar no destino, não tendo recebido solução quanto à busca de sua bagagem, tampouco indenização pelo extravio.
A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido formulado na inicial para condenar ambas as empresas, solidariamente, ao pagamento de indenização a título de compensação por danos morais. A plataforma virtual de milhagem apelou da decisão, tendo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais negado provimento ao recurso, mantendo a sentença, entendendo que o “extravio de bagagem dá ensejo ao dano moral pelo desconforto e aflição a que foi submetido o passageiro ao se ver privado dos seus pertences”.
Assim, houve recurso ao STJ por parte da empresa que foi condenada solidariamente, alegando a recorrente “que apenas praticou a venda ou a intermediação na comercialização das passagens” e não pode “responder por atos que estão fora do seu ramo de atuação”. Buscou-se no recurso restringir a chamada teoria genérica da solidariedade na relação de consumo.
A decisão dos ministros do STJ não foi unânime. De toda forma, deu ganho ao recurso especial da plataforma virtual de milhagem, reconhecimento da improcedência do pedido em relação a empresa vendedora do bilhete aéreo e julgando improcedente o pedido indenizatório. Seguiu, naturalmente, a condenação da empresa de transporte aéreo.
Em voto divergente e vencedor, o ministro Moura Ribeiro reconheceu e acatou o argumento, e consignou que a prestação do serviço da empresa de milhagem limita-se à emissão e à venda das passagens aéreas e que, no caso concreto, teria ocorrido de forma perfeita. Segundo o ministro, “responsabilizar a vendedora da passagem pelo extravio da mala seria rigor extremo (…) pois consistiria em imputação por fato independente e autônomo, que de modo algum poderia ter sido controlado ou evitado por ela, porém unicamente pela transportadora aérea, que aliás tem responsabilidade objetiva pela bagagem que lhe é entregue” .
Inclusive, o voto vencedor do ministro Moura Ribeiro também ressaltou que segundo entendimento em diversos outros julgados, o STJ já expressamente reconheceu e determinou que a “vendedora da passagem (agência de viagem) só deve responder pelos fatos subsequentes quando de se tratar de “pacote de viagem””, “hipótese em que a agência de viagens assume a responsabilidade de todo o roteiro da viagem contratada”.
Ou seja, a jurisprudência do STJ admite a responsabilidade solidária das agências de turismo apenas na comercialização de pacotes de viagens, não respondendo solidariamente pela má prestação dos serviços na hipótese de simples intermediação de venda de passagens aéreas.
Com isso, o voto vencedor divergiu da teoria genérica da solidariedade na relação de consumo, adotando posicionamento restritivo e limitado. A raiz do racional da decisão está no pressuposto básico da teoria genérica de que ela emerge quando a ofensa tem mais de um autor, sendo que no caso julgado ficou evidente que apenas uma empresa foi autora da ofensa – a empresa de transporte aéreo, que nas palavras do ministro Moura Ribeiro “se descurou do seu dever de cuidado e deixou extraviar a bagagem”.
Pontuou, ainda, que a “simples venda da passagem aérea não pode ser alçada a esse mesmo nível de vinculação. Ao contrário, ela ocorreu e foi perfeita, esgotando-se sem nenhum defeito, tanto que a viagem para a qual o bilhete foi vendido acabou realizada.”.
Lembramos lição de Miguel Reale: “A norma jurídica não pode ser pensada como um inventário de fatos passados: sua destinação é reger fatos futuros. Não disciplina, porém, os fatos futuros como um esquema estático: ela não pode deixar de sofrer o impacto de novos e imprevistos fatos e valores, cuja superveniência implica nova compreensão normativa.”3. Assim, a decisão acertadamente restringiu o dever de reparação à parte que deu causa ao extravio da bagagem, que por sua condução e atuação no escopo do contrato de transporte entabulado, resultou fato danoso ao consumidor passível da indenização.
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1 LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ : Vozes, 2019, pág. 45
2 BRASILIA, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 1.994.563 - MG (2022/0091365-9). Relatora Ministra Nancy Andrighi. Relator para o Acórdão Ministro Moura Ribeiro. Data do julgamento: 18/10/2022. 3ª. Turma. Após a vista regimental da Sra. Ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma, por maioria, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Moura Ribeiro, que lavrará o acórdão. Votaram vencidos os Srs. Ministros Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino. Votaram com o Sr. Ministro Moura Ribeiro os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva (Presidente) e Marco Aurélio Bellizze.
3 REALE, Miguel. A Filosofia do Direito e as Formas do Conhecimento Jurídico. IN Revista dos Tribunais, Ano 51, v. 315, janeiro de 1962, pág. 384