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A necessidade da analogia “in bonam partem” no inciso III art.112 da LEP

Os Juízes de primeira instância devem obediência às decisões dos Tribunais Superiores e, sobretudo, ao direito subjetivo da pessoa presa em progredir com lapso temporal mais benéfico, dada a omissão legislativa e ao uso analogia in bonam partem. Não há margem para se negar o referido direito. É chegada a hora, uma vez mais, de o Supremo Tribunal Federal manifestar-se sobre o conteúdo da lei 13.964/19.

22/12/2022

É cediço que a entrada em vigor da lei 13.964/19, conhecida como “pacote anticrime”, trouxe o endurecimento da lei penal e processual penal, implicando globalmente na piora da situação do apenado.

Desde o início de sua vigência o Supremo Tribunal Federal foi chamado a se manifestar algumas vezes sobre seu conteúdo, como no questionamento da inconstitucionalidade do juiz das garantias (ADI’s  6.298, 6.299, 6.300), bem como na omissão legislativa acerca da progressão de regime prisional (Tema 1.169).

Neste ponto, o presente artigo visa a demonstrar que embora o Supremo Tribunal Federal, quando provocado, supriu lacuna na lei referente à progressão de regime, há ainda necessidade de se colmatar lacunas nessa matéria.

Para se compreender a omissão legislativa e a necessidade de analogia é preciso fazer breve resumo da disciplina legal anterior da progressão de regime prisional.

Prescrevia o artigo 112 da lei de Execuções Penais, LEP, com redação dada pela lei 10.792, de 2003, que:

“A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão".

O requisito temporal de 1/6 diferenciava-se apenas quantos aos condenados por crime hediondo, cujopara os quais os requisitoss temporais eram de 2/5 (dois quintos) da pena, para o condenado primário, e de 3/5 (três quintos), para o condenado reincidente, previstos no artigo 2º, parágrafo 2º, da lei 8.072/90, consoante ensinam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2020, p.1859-1860).

O pacote anticrime alterou profundamente a progressão de regime, revogando o aludido parágrafo 2º, do artigo 2º da lei de Crimes Hediondos e modificando o artigo 112, da LEP, que passou a trazer, inclusive, os lapsos temporais dos crimes praticados com hediondez, vejamos:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:

I -16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;

II - 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;

III - 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;

IV - 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;

V - 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário;

VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for:

  1. condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional;
  2. condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; ou
  3. condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada;

VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado;

VIII - 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional.

As alterações promovidas pelo “pacote anticrime”, além de mudar o quantum necessário para progressão de regime, verdadeira novatio legis in pejus, também cuidou de inovar no que pertine à reincidência específica.

Como visto, a lei de Execução Penal exigia apenas como requisito objetivo o cumprimento de 1/6 da pena para a progressão de regime. Já a lei de Crimes Hediondos exigia como requisitos temporais, 2/5 (dois quintos) da pena, para o condenado primário, e 3/5 (três quintos), para o condenado reincidente.

É preciso destacar que a reincidência é verificada, segundo o artigo 63 do Código Penal, quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.

Assim, a lei 8.072/90 exigia a reincidência genérica, ou seja, a suficiência da prática de crime anterior – independentemente das suas características, (GRECCO. Rogério. Curso de Direito Penal,, 2020, p. 718) quando o crime anterior (portanto já transitado em julgado) e o novo delito são de espécies diferentes, por exemplo: cometeu um furto e, depois, tráfico de entorpecentes.

O famigerado “pacote anticrime” passou a exigir nos incisos, II, IV, VII e VIII do referido artigo 112, a reincidência específica, que ocorre quando o crime anterior e o novo delito praticado são da mesma espécie, por exemplo: crime com grave ameaça ou violência à pessoa e outro, crime com grave ameaça ou violência à pessoa.

Como cediço, o Supremo Tribunal Federal (Tema 1.169 com repercussão geral) e o Superior Tribunal de Justiça (Tema repetitivo 1.084) foram convocados a se manifestar sobre tal artigo, uma vez que a exigência de reincidência específica nos referidos incisos, veio acompanhada por lacunas na legislação, cuja solução de colmatação fora a aplicação da analogia in bonam partem.

“Nullum crimen nulla poena sine legis stricta”. Tal brocardo traduz o princípio da legalidade penal, ou seja, somente a lei pode criar crimes e penas, donde surge a proibição do uso de costumes e da analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas.

Do princípio da legalidade penal, vetor condutor da atuação do legislador e do julgador, surge a proibição da analogia in malam partem:

“É proibido criar hipóteses que, de alguma forma, venham a prejudicar o agente, seja criando crimes, seja incluindo novas causas de aumento de pena, circunstâncias agravantes, etc”’. (GRECCO, 2019. Curso de Direito Penal: parte geral, volume 1, 21ª Ed. Impetus, 2019, p. 147).

Em Direito Penal não é permitido o uso de interpretação extensiva, para prejudicar o réu, devendo a integração da norma se operar mediante a analogia in bonam partem, que não encontra obstáculo a ser transposto, nem doutrinário, nem jurisprudencial.

Sendo a lei omissa, o juiz deve decidir de acordo com a analogia, nos termos do art. 4º da LINDB: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Ressaltando-se ainda, que o Código de Processo Penal admite a aplicação analógica: “art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.

Assim, sempre que a aplicação for favorável ao réu e existir uma efetiva lacuna a ser preenchida, operar-se-á a analogia in bonam partem.

Os sobreditos temas 1.169 STF e 1084 STJ analisaram especificamente a progressão de regime do condenado reincidente em crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, cuja a inexistência de percentual para reincidência genérica, culminou em decisão que determinou a utilização do lapso temporal de 40%, veja-se:

“Tendo em vista a legalidade e a taxatividade da norma penal (art. 5º, XXXIX, CF), a alteração promovida pela lei 13.964/2019 no art. 112 da LEP não autoriza a incidência do percentual de 60% (inc. VII) aos condenados reincidentes não específicos para o fim de progressão de regime. Diante da omissão legislativa, impõe-se a analogia in bonam partem, para aplicação, inclusive retroativa, do inciso V do artigo 112 da LEP (lapso temporal de 40%) ao condenado por crime hediondo ou equiparado sem resultado morte reincidente não específico”.

STF. Plenário. ARE 1327963/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 17/09/2021 (Repercussão Geral – Tema 1169)

Tema Repetitivo n. 1.084, no sentido de que "é reconhecida a retroatividade do patamar estabelecido no art. 112, V, da lei 13.964/2019, àqueles apenados que, embora tenham cometido crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, não sejam reincidentes em delito de natureza semelhante". A tese fixada no referido tema repetitivo limita-se à retroatividade do art. 112, inciso V, da lei 7.210/1984 (Lei de Execução Penal - LEP), na redação da Lei n. 13.964/2019, aos condenados que, embora tenham cometido crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, não sejam reincidentes em delito de natureza semelhante (STJ. 3ª Seção. REsp 1.910.240-MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 26/05/2021. (Recurso Repetitivo – Tema 1084) (Info 699).

Importante destacar que ambas as decisões devem ser observadas por todos os tribunais e juízes do país, no entanto, por ter a tese sido limitada aa aplicação do art. 112, inciso V, da Lei 7.210/1984 (Lei de Execução Penal – LEP) muitos juízes de primeira instância não estão utilizando a analogia in bonam partem no inciso III, do mesmo artigo.

Trata-se da mesma lacuna, o “pacote anticrime” não disciplinou, de forma expressa, o percentual para progressão do condenado por crime cometido com violência ou grave ameaça reincidente em crime comum:  IV - 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça.

Assim, diante da ausência de previsão legal, deve-se fazer analogia in bonam partem e à pessoa condenada deve ser aplicada a mesma fração do condenado primário, ou seja, a regra do inciso III, do art. 112 (25%).

Embora o Superior Tribunal de Justiça já tenha se debruçado sobre o tema no AgRg no HC 675062 / SP de Relatoria do Ministro Sebastião Reis Junior, por não se tratar de recurso repetitivo, há diariamente, nas Varas de Execução Penal, o indeferimento de pedidos de retificação do cálculo de penas ou de progressão de regime, com a referida manutenção do lapso de 30%, fazendo com que muitos agravos em execução sejam interpostos, sobrecarregando o Poder Judiciário, e, principalmente, obstaculizando o direito subjetivo da pessoa presa referente à progressão de regime.

No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, os Agravos em Execução nº 0004405-87.2022.8.26.0041; 0004572-07.2022.8.26.0041; 0000602-44.2022.8.26.0026; 0001929-64.2021.8.26.0509, recentemente, utilizaram a analogia in bonam partem e aplicaram o percentual de 25%.

No entanto, há Câmaras que não aplicam a referida analogia in bonam partem, fundamentando-se que a 'ratio legis' do Pacote Anticrime não pode ser olvidada, a exemplo dos Agravos em Execução 0009231-41.2021.8.26.0041;0021377-69.2021.8.26.0041 ;0005497-2.2021.8.26.0026.

No Tribunal de Justiça Mineiro, não raro, os Desembargadores precisam se debruçar acerca do tema, para garantir os direitos subjetivos da pessoa presa, como nos Agravos em Execução 1.0000.21.121474-7/001;1.0000.21.148960-4/001; 1.0027.18.006242-7/002 ; 1.0000.20.561835-8/002.

Assim, conclui-se que se a progressão de regime do reincidente não específico em crime hediondo ou equiparado com resultado morte deve observar o que previsto no inciso VI, “a”, do art. 112 da LEP e se a progressão de regime do reincidente não específico em crime hediondo sem resultado morte deve observar o que previsto no inciso V, logo, a progressão de regime do reincidente não específico em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça deve observar a previsão no inciso III.

Os Juízes de primeira instância devem obediência às decisões dos Tribunais Superiores e, sobretudo, ao direito subjetivo da pessoa presa em progredir com lapso temporal mais benéfico, dada a omissão legislativa e ao uso analogia in bonam partem. Não há margem para se negar o referido direito. É chegada a hora, uma vez mais, de o Supremo Tribunal Federal manifestar-se sobre o conteúdo da lei 13.964/19.

Evelin de Oliveira Leite
Advogada, pós-graduanda em Direito da Família e Sucessões, pós-graduanda em Direito Privado

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