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Soft Power do Catar

O uso do esporte como arena de competição política e ideológica é antiga. Nos jogos Olímpicos de Berlim em 1936, Hitler usou a competição como construção estratégica de fortalecimento do sentimento nacional e promoção do nazismo.

15/12/2022

A Copa do Mundo da FIFA acontece no Catar e temos  pela primeira vez um megaevento esportivo desta dimensão no mundo árabe. Para o público brasileiro, é sempre uma oportunidade de exacerbar emoções e torcer por um esporte em que somos uma potência – o futebol. Para o público mais atento na esfera geopolítica internacional, é mais uma evidência de um movimento que prestigia países emergentes como sedes de competições importantes: Jogos Olímpicos de Pequim em 2008 (China), Copa do Mundo de 2010 (África do Sul), Jogos da Comunidade Britânica em 2010 (Índia), Copa do Mundo de 2014 no Brasil, Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, Copa do Mundo de 2018 (Rússia) e agora a Copa do Mundo de 2022 no Catar.

O uso do esporte como arena de competição política e ideológica é antiga. Nos jogos Olímpicos de Berlim em 1936, Hitler usou a competição como construção estratégica de fortalecimento do sentimento nacional e promoção do nazismo. O esporte também já foi utilizado como instrumento ideológico de demonstração de força, principalmente na Guerra Fria na disputa pela hegemonia de poder entre Estados Unidos e a extinta União Soviética, passando pelos boicotes dos jogos olímpicos de Moscou (1980) e Los Angeles (1984).

Sendo assim, a relevância destes megaeventos esportivos não pode ser ignorada para o impacto na imagem do país. Ela revela o uso de diplomacia pública para exercer uma liderança global, não regional, e uma forma relativamente barata de promoção que permite uma mídia espontânea e imensa divulgação da imagem do país e do governo, com estratégias para capitalizar em termos de credibilidade, estatura, competitividade econômica e uma possibilidade de atuar com agência no palco internacional.

Até a China, que também sediou as olimpíadas de inverno, em 2022, usa dessa estratégia para se estabilizar como liderança não apenas asiática, mas global. Especialistas afirmam que, para crescer como potência e expandir economicamente, a China precisa sair da sombra do Ocidente e ter mais influência na opinião pública global. A rigor, respeito e legitimidade externa significam legitimidade doméstica para Pequim. A novidade é que o esporte, no geral, e os megaeventos esportivos, no particular, se tornaram um poderoso instrumento de política externa conhecido como soft power, ou poder brando.

O conceito de soft power foi desenvolvido por Joseph Nye para explicar a demonstração de poder através da atração e não da coerção. Para ilustrar seu conceito, Nye usa a teoria do tabuleiro de xadrez tridimensional, no qual a primeira dimensão seria um tabuleiro de força militar, onde os EUA dominam as peças com dez vezes mais poder do que os dez abaixo dele somados. O segundo tabuleiro seria o da esfera econômica, onde os EUA ainda lideram, mas seguido de perto por outros atores fortes. Nye define essas duas dimensões de hard power, ou poder bruto, onde a coerção e ameaça são instrumentos fortes. A terceira dimensão deste tabuleiro seria o transnacional, com agências internacionais, mídia e o impacto da internet na era contemporânea que tornam as ações sem fronteiras. Este seria o contexto do soft power, onde a capacidade de atrair outros atores àquilo que se deseja são exercidas através da cultura e políticas adotadas para influenciar as instituições internacionais e determinar a agenda.

Quando se trata de um país, os três pilares de influência são valores (ideologia), cultura e política externa. As táticas para essas estratégias variam. No primeiro mandato do governo Lula durante a política externa “Ativa e Altiva” do chanceler Celso Amorim, algumas ferramentas de soft power foram utilizadas com a campanha Fome Zero, o uso da seleção brasileira de futebol no Haiti e movimentos financeiros que fizeram o país ser credor do FMI. Algumas táticas de soft power da China são a expansão mundial do Instituto Confúcio, a ajuda de $500 milhões para a América Central, a retirada de 700 milhões de chineses da pobreza, além da taxa de crescimento econômico e urbanização do país. É possível perceber a combinação do poder econômico (hard) com o político e cultural (soft) para gerar o que Nye batizou de smart power, o poder inteligente.

Sediar eventos de grande visibilidade é uma oportunidade de divulgar seus próprios valores para o mundo e potencializar sua área de influência para além de dimensões e fronteiras regionais. Um palco como Copa do Mundo e Olimpíada favorece pleitos para entrar em fóruns privilegiados de negociação e poder econômico, como a OMC (para a China ao anunciar que iria sediar os Jogos Olímpicos de 2008) e G20 (para a África do Sul após a Copa de 2010). Essa capacidade de gerar atratividade internacional ocorre mesmo se houver uma política doméstica pouco atraente, como o caso do Catar nesta edição . Para o país, sediar a Copa do Mundo serve para mostrar que o Catar se diferencia dos vizinhos árabes e pode ser um destino turístico pacífico, além de atrair investimentos externos para substituir os hidrocarbonetos, além de transformar o país em uma sociedade global.

Tal visibilidade se deve pelo tempo de pautas na mídia que extrapolam a cobertura esportiva. Sete anos antes da Copa, quando as sedes são definidas, o país se torna assunto internacional. A mídia contextualiza a audiência realçando a história e valores daquele país. Há potencial para desenvolver a diplomacia pública para atrair cidadãos (e empresas) de outros países. Essas competições atraem bilhões de telespectadores, além de oportunidades comerciais. O resultado pode ser a melhora na divulgação e qualidade da imagem do país, aumento da credibilidade política e econômica, atração de turismo durante e após o evento, investimento e comércio. A diplomacia pública é um instrumento de soft power ao sediar grandes eventos em busca prestígio e credibilidade e potencial papel de agência.

A China, em 2008, foi o primeiro grande exemplo de plataforma de inserção internacional. Alguns autores acreditam que o Partido Comunista Chinês usou a oportunidade para apresentar um país transformado à comunidade internacional, como uma potência mundial. O país passou a participar mais ativamente em assuntos globais e a defender reformas responsáveis em organismos internacionais, como a Organização Mundial de Comércio (OMC).

Em 2010, a estimativa da FIFA é que a copa do mundo da África do Sul atingiu uma visibilidade de 46% do mundo, servindo como uma grande plataforma de comunicação para melhorar a imagem do país. Apesar dos riscos de divulgar o quadro interno do país, como alta taxa de infecção de HIV, violência urbana e pobreza, autoridades consideram que foi a partir daí que o país entrou no mapa e a possibilidade de se tornar uma potência média internacional. Por sinal, em dezembro de 2010, a África do Sul se juntou aos BRICS, bloco de países emergentes composto por Brasil, Rússia, Índia e China.

Joseph Nye alega que esse poder brando não é apenas a habilidade de persuadir, mas de atrair e até de ser imitado. Na perspectiva de propriedade intelectual, imitar é um crime, mas aqui é uma inspiração. Armando Nogueira, que foi o diretor de jornalismo da Globo nas décadas de 1970 e 1980 dizia que “imitar é a melhor forma de elogiar”, uma vez que os padrões da Globo eram emulados em outras emissoras concorrentes. A questão é como garantir que essa imitação seja adequadamente remunerada. Essa atração passa pela cultura, valores e políticas (de estados ou empresas) autênticas. Sem essa credibilidade, o soft power não é possível.

Nesse contexto, esporte deixa de ser um nicho cultural para aplicação doméstica e se torna uma relevante ferramenta de política externa. A Premier League, a primeira divisão de futebol da Inglaterra, é um exemplo de investimento, marcas, atração de interesse e capital e exportação de modelo de sucesso. Grix & Brannagan apresentaram um modelo de análise de soft power na tentativa de tornar tangível o legado, qualificando a imagem do país e colocá-lo no mapa internacional com cinco pilares de recursos com variados parâmetros: cultura, turismo, branding, diplomacia e comércio.

O pilar de branding como um recurso de soft power já justificaria o interesse de propriedade intelectual, por atuar diretamente com marcas, e poderia explorar contribuições de indicação geográfica, por exemplo. Há diversas áreas de PI inseridas no contexto de um megaevento esportivo, como naming rights, pirataria de uniformes, espionagem de processos e metodologias de treinos, direitos de imagem de atletas, etc. A área de comércio, com foco em segurança e tecnologia, também está diretamente ligada. E até questões de ESG podem ser trabalhadas dentro do framework de soft power, em todos os pilares de recursos.  Este modelo ajuda a buscar resultados tangíveis que comprovem a eficiência do uso de soft power, onde sediar megaeventos esportivos seria uma tática. Mesmo assim, acadêmicos reconhecem a dificuldade de mensurar tais resultados, uma vez que eles rendem a longo prazo.

A Comissão de Turismo da Austrália acredita que os Jogos Olímpicos de Sydney (2000) aceleraram em 10 anos a “marca” australiana. Durante a Copa do Mundo de 2006, a Alemanha recebeu 2 milhões de visitantes estrangeiros e gastaram 600 milhões de euros. De acordo com autoridades do Catar, uma das razões de o estado não conseguir atrair mais turistas de longo prazo se deve à imagem que a mídia faz dos países do Oriente Médio como uma região homogênea e amaldiçoada por guerras civis. Sediar a Copa do Mundo seria uma forma de “educar” o público internacional sobre as diferenças entre o Catar e outros países árabes. O objetivo do Comitê Organizador é mostrar que o país é um destino turístico pacífico. O evento seria o ápice da estratégia de soft power catari que começou com o patrocínio do Barcelona em 2010, na época áurea do clube catalão, e compra do Paris Saint-Germain (PSG) em 2012.

Vale ressaltar que, apesar de a teoria ter sido idealizada para estados nações, o framework de soft power pode ser aplicado também em empresas. E assim como a agenda ESG tem o termo greenwashing, o uso inadequado e meramente publicitário do esporte gerou o termo sportswashing. O Catar, por exemplo, recebeu críticas de violação de direitos humanos e trabalhos em regime semiescravo durante as obras de preparação para a copa do mundo, além de alegações de corrupção. O conceito de lavagem desportiva encaixa na estratégia do Catar que procura deliberadamente alterar a sua reputação global enquanto desvia sem sucesso a atenção dos seus problemas políticos internos. 

Usar megaeventos para alavancar a diplomacia, inclusive comercial, é uma estratégia poderosa e cada vez mais utilizada. Entretanto, ela não pode ser manipulada para mascarar mentiras com modismo ou tendências. Há riscos de prejuízos incalculáveis para ativos intangíveis, como o greenwashing revela às empresas, e o sportswashing para governos. O mundo tem passado por uma mudança significativa e o poder está cada vez mais nos recursos transnacionais, nas mídias sociais, no soft power

Maria Eduarda Callai Negri
Head de Relações Institucionais e Governamentais (RIG) do Di Blasi, Parente & Associados. Com formação acadêmica que engloba graduação em Relações Internacionais, pelo Centro Universitário de Brasília, e duas pós-graduações, em Administração de Empresas pela FVG e em Transformação Digital pela BBI Chicago, ela possui experiência profissional em variados setores de RIG: PATRI Políticas Públicas & Public Affairs, SEBRAE Nacional, Embaixada dos Estados Unidos e Ministério da Fazenda.

Ronaldo Guimarães Gueraldi
Jornalista, mestre em Administração Pública pela FGV, especialista em Relações Internacionais pela UFRJ e coordenador editorial no Di Blasi, Parente & Associados

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