O Ano de 2022, em que pese as crises institucionais, políticas, econômicas e sanitária causada pelos efeitos da Pandemia da COVID-19, pode-se dizer que foi um marco para o controle externo brasileiro, notadamente quando nos referimos a prescrição da atuação fiscalizatória dos Tribunais de Contas.
Depois de décadas de debates do mundo jurídico, mormente aquele relacionado ao Controle Externo das contas públicas, realizado pelo Tribunal de Contas da União, no âmbito federal, pelos Tribunais de Contas Estaduais, no âmbito dos Estados e Municípios ,- onde não existe os TCM’s, e quando estes existem, eles são encarregados de fiscalizar as contas municipais, foi que o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento virtual da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.509-CE, Relator Ministro Edson Fachin, decidiu pela prescrição quinquenal – 5 (cinco) anos para a atuação fiscalizatória desses órgãos, observadas as regras de interrupção da prescrição.
Por meio dessa ação direta, impugnavam-se dispositivos da Constituição do Estado do Ceará1 e da Lei Orgânica do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará2 — órgão extinto em 2019. A maioria dos ministros acompanhou o relator, julgando parcialmente procedente a ADI 5.509-CE, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do inciso II do parágrafo único do art. 35-C da LOTCM. Significando-se dizer, que os Tribunais de Contas podem e devem atuarem no nobre e insubstituível exercício de controle externo quando apreciação das contas anual dos Prefeitos. Porém, devem também, observarem o prazo prescricional de 5 (cinco) anos, bem como as causas de interrupção dessa prescrição.
Antes do julgamento da ADI 5.509-CE, em 17 de agosto de 2016, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aprovaram ainda, as teses de Repercussão Geral decorrentes do julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários (REs) 848826 e 729744, quando foi decidido que é exclusividade da Câmara de Vereadores a competência para julgar as contas de Governo e de Gestão dos Prefeitos, cabendo ao Tribunal de Contas auxiliar o Poder Legislativo municipal, emitindo parecer prévio e opinativo, que somente poderá ser derrubado por decisão de dois terços dos vereadores. O STF decidiu além disso que, em caso de omissão da Câmara Municipal, o parecer emitido pelo Tribunal de Contas não gera a inelegibilidade prevista no art. 1º, inciso I, alínea “g”, da lei complementar 64/90 (com a redação dada pela Lei da Ficha Limpa).
A tese decorrente do julgamento do RE 848826-CE, foi elaborada pelo então Presidente do STF, Ministro Ricardo Lewandowski, designado redator do acórdão após divergir do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso, por entender que, por força da Constituição, são os vereadores quem detêm o direito de julgar as contas do chefe do Executivo municipal, na medida em representam os cidadãos. A tese de repercussão geral tem o seguinte teor: “Para os fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da lei complementar 64/90, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos vereadores”.
A segunda tese aprovada na sessão foi elaborada pelo Ministro Gilmar Mendes, Relator do RE 729744-MG, e dispõe que: “Parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo”.
É bom que se diga, que o entendimento adotado se refere apenas à causa de inelegibilidade do prefeito, não tendo qualquer efeito sobre eventuais ações por improbidade administrativa ou de esfera criminal a serem movidas pelo Ministério Público contra maus políticos. “A questão foi bem discutida e o debate foi bastante proveitoso porque havia uma certa perplexidade do público em geral relativamente à nossa decisão e os debates de hoje demonstraram que não há nenhum prejuízo para a moralidade pública, porque os instrumentos legais continuam vigorando e o Ministério Público atuante para coibir qualquer atentado ao Erário público”, afirmou o Ministro Ricardo Lewandowski, designado redator do acórdão.
Ante esses precedentes do STF, entendemos que a emissão de parecer prévio sobre as contas anual de Governo ou de Gestão emitidos pelos Tribunais de Contas, no sentido da prescrição da atuação punitiva desse órgãos, por obediência a supremacia dos vereditos da Suprema Corte de Justiça Brasileira, no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, § 2º3da CF/88), tais decisões não tem o condão de afastar as competências previstas no art. 494, inciso IX5 da Constituição Federal, quando se tratar de contas anual do Presidente da República, art. 25 da CF/1988, c/c a previsão Constitucional de cada Unidade Federativa, quando se referir as contas anual do Governador, bem àquela disposta no art. 316, §§ 1º7 e 2º8 da Carta Magna, quando nos referimos as contas anual do Prefeito (Governo ou Gestão).
Ao que me parece, no caso específico das contas anual de Governo e de Gestão, apresentadas anualmente pelos Prefeitos, o julgamento destas pela Corte de Contas, tratam-se de um ato administrativo de natureza complexo, ou seja, o ato administrativo formado por duas mais ou mais vontades independentes entre si. Digo, para os fins previstos no art. 1º, inciso I, alínea “g” da lei complementar 64/909, ele somente existe depois da manifestação dessas vontades – Tribunais de Contas e Poder Legislativo Municipal.
Tal conclusão é inescusável, uma vez que o parecer prévio sobre as contas, seja de Governo ou de Gestão que anualmente devem serem prestadas pelos Prefeitos Municipais na forma legal aos Tribunais de Contas, ressalvadas aquelas relacionadas transferências voluntárias (Convênios) ou Tomadas de Contas Ordinárias ou Especiais10 (norma aplicada aos Prefeitos por simetria11, tem o dever constitucional de passar pelo crivo do julgamento político das Casas Legislativas Municipais, que só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal. Se não fosse assim, haveria um esvaziamento de uma das mais importantes competências do Poder Legislativo Municipal (que representa a soberania popular - o povo), e haveria, por via de consequência, a quebra do princípio constitucional da simetria prevista no caput do art. 70, caput da Carta Cidadã.
Por tais razões, o TCU antecipando-se aos demais Tribunais de Contas e com escopo de compatibilizando a sua jurisprudência ao do STF, decidiu editar a Resolução - TCU 344, de 11 de outubro de 202212, que regulamenta, no âmbito do Tribunal de Contas da União, a prescrição para o exercício das pretensões punitiva e de ressarcimento. O normativo do Tribunal de Contas da União vai estabelecer que o prazo da prescrição da pretensão ressarcitória, assim como da punitiva, é de cinco anos, a contar do vencimento do prazo para a apresentação da prestação de contas ou, não havendo o dever de prestar contas, a partir do conhecimento do fato pelo TCU e estabelece, ainda, que as causas interruptivas da prescrição são as mesmas previstas na lei 9.873/99.
Portanto, não há que se falar, uma vez apreciada as contas anual de Governo ou de Gestão do Prefeito pelos Tribunais de Contas, com a emissão de parecer prévio pela prescrição da pretensão punitiva, não se pode ou deve jamais recriarmos uma nova regra constitucional ou interpretativa (novatio legis ou interpretatio) de que as Câmaras Municipais não podem deliberarem sobre tais decisões, pelos simples fato de que como a atuação fiscalizatória da Corte de Contas prescreveu, essa mesma prescrição deve ser aplicada de forma automática e peremptória ao desempenho da altivíssima função julgadora política e definitiva do Poder Legislativo Municipal, sob pena de aniquilarmos e transformamos em letra morta a previsão constitucional do art. 31, §§ 1º e 2º da Constituição Federal – ou julgamento ficto, inobstante sejam essenciais e nobres as finalidades constitucionais dos Tribunal de Contas, mas é crucial que sua atuação seja desempenhada de acordo com parâmetros temporais razoáveis, como sabidamente decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 5.509-CE - Relator Min. Edson Fachin, e nos Recursos Extraordinários 636.886-AL e 852475-SP (Repercussão Geral), ambos de Relatoria do Min. Alexandre de Moraes, sob pena de criarmos a babel.
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1 "Artigo 76 — (...)
§5º. O Tribunal de Contas do Estado, no exercício de suas competências, observará os institutos da prescrição e da decadência, no prazo de cinco anos, nos termos da legislação em vigor.
Artigo 78 — (...)
§7º. O Tribunal de Contas dos Municípios, no exercício de suas competências, observará os institutos da prescrição e da decadência, no prazo de cinco anos, nos termos da legislação em vigor".
2 Lei estadual nº 12.160/93, com a redação dada pela Lei nº 15.516/14:
"Artigo 35-A — A prescrição é instituto de ordem pública, abrangendo o exercício das competências do Tribunal de Contas, nos termos do disposto no §7º do artigo 78 da Constituição do Estado do Ceará.
Parágrafo único. O reconhecimento da prescrição poderá se dar de ofício pelo relator, mediante provocação do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas ou através de requerimento do interessado, sendo sempre submetida a julgamento por órgão colegiado do Tribunal.
Artigo 35-B — As competências de julgamento e apreciação do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará, inclusive as previstas nos artigos 1º, 13, 19 e 55 ao 59 desta Lei, ficam sujeitas à prescrição, conforme o prazo fixado nesta Lei.
Artigo 35-C— Prescreve em cinco anos o exercício das competências de julgamento e apreciação do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará previstas nesta Lei, como as previstas nos artigos 1º, 13, 19 e 55 ao 59.
Parágrafo único — O prazo previsto no caput:
I – inicia sua contagem a partir da data seguinte à do encerramento do prazo para encaminhamento da prestação de contas ao Tribunal, nos casos de contas de gestão e de governo;
II – nos demais casos, inicia-se a partir da data de ocorrência do fato;
III – interrompe-se pela autuação do processo no Tribunal, assim como pelo julgamento.
Artigo 35-D — O Regimento Interno deve disciplinar a sistemática do reconhecimento da prescrição no âmbito da jurisdição do Tribunal, no que for necessário, assim como as causas suspensivas da prescrição".
3 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
4 Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
5 IX - julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo;
6 Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.
7 § 1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.
8 § 2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
9 Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010 e Lei Complementar nº 184, de 2021
10 Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados:
11 II - proceder à tomada de contas do Presidente da República, quando não apresentadas ao Congresso Nacional dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa;
12 https://portal.tcu.gov.br/data/files/EE/66/BC/12/F02F3810B4FE0FF7E18818A8/Resolucao-TCU-344-2022_prescricao_punitiva_e_ressarcimento.pdf