Não, em um contrato de crédito que a recuperanda ofereceu cessão fiduciária em garan-tia, esta não protege todo o contrato. O que não quer dizer que ela não proteja a totali-dade do valor contratado, porque sim, ela protege. Contudo o contrato vai muito além do valor contratado, pois também é formado por cláusulas que vão por vezes são mais importantes que o próprio montante. Cláusulas estas que podem inclusive constituir mais alguma garantia, para a qual a propriedade fiduciária não traria qualquer benefí-cio.
Este artigo irá tratar sobre a forma mais comum de contratos de cessão fiduciária de cré-ditos de arranjo de pagamento (maquininha de cartão de crédito e débito). Que diferente do que se acredita, possui não uma, mas duas garantias estabelecidas em contrato:
- Cessão Fiduciária dos créditos das máquinas de cartão de crédito;
- Conta Vinculada.
Sim, a Conta Vinculada cuja qual se pede liberação dos valores retidos, é em si, garantia quirografária, regida por diploma legal distinto e com características diametralmente opostas. Como pode se ver no quadro que segue.
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Cessão Fiduciária |
Conta Vinculada |
Propriedade |
Os valores são recebidos em nome do Banco |
Os valores são mantidos em conta no nome do Cliente |
Legitimidade Passiva |
Imune a ordens Judiciais e similares que tenham como alvo o Cliente |
Suscetível a ordens Judiciais e similares que tenham como alvo o Cliente |
Despesas |
Cabe ao Banco arcar com os custos e despesas do registro da Cessão Fiduciária |
O Cliente arca com tributos e/ou encargos referentes à Manutenção da Conta |
Destinação |
Amortização ou Liquidação de Obrigações Pecuniárias |
Chamada de Margem |
Natureza |
Fiduciária |
Contratual |
Diploma LEgal |
Lei 9.514/97 |
Resolução 2.525 do Banco Central |
classificação na RJ |
Extraconcursal |
Quirografária |
Logo após a lei 11.101/05 entrar em vigor, percebe-se uma omissão legislativa referen-te à consolidação processual, momento em que a jurisprudência rapidamente se consoli-da em torno de permitir o procedimento. Contudo, um aspecto desta discussão ficou es-quecido por algum tempo. Aprovada a consolidação processual, sem qualquer tipo de questionamento, considerou-se automática a consolidação substancial, como se a conso-lidação dos processos automaticamente consolidasse todo o ativo e passivo em um único aglomerado.
Situação similar acontece agora com a discussão sobre a cessão fiduciária, durante muito tempo o debate ficou em torno de discutir se estaria a cessão fiduciária sujeita ou não à Recuperação Judicial, com a jurisprudência se moldando a favor de se retirar estes crédi-tos da Recuperação Judicial e se manter a proteção da cessão fiduciária. O que leva a questões como:
- QUAL A REAL EXTENSÃO da proteção da cessão fiduciária? e;
- Haver cláusula de cessão fiduciária automaticamente protege nos mesmos termos AS OUTRAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS?
E as respostas são que a real proteção é muito menor que a que se presume, ao passo que a proteção da propriedade fiduciária não se estende automaticamente ao restante do contrato.
- QUAL A REAL EXTENSÃO DA PROTEÇÃO DA CESSÃO FIDUCIÁRIA?
A Propriedade Fiduciária é Propriedade Resolúvel, ou seja, de acordo com o art. 1.359 do Código Civil uma propriedade resolvida pelo implemento de condição ou termo.
Código Civil - Art. 1.359 - Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha. (Grifos Nossos)
Desta forma, qual seria a condição ou termo que resolveria a cessão fiduciária dos crédi-tos não performados das maquininhas de cartão de crédito: A hora que a venda é reali-zada, mesmo ante de paga? A hora que o cliente paga a compra com o cartão? A hora que a cessionária recebe os valores da operadora de cartão de crédito? Para que se tenha melhor análise é importante observar o que rege artigo 19, § 1º da Lei 9,514 que cria a cessão fiduciária.
Lei 9.514/97 - Art. 19. Ao credor fiduciário compete o direito de:
IV - receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciaria-mente.
§ 1º As importâncias recebidas na forma do inciso IV deste artigo, depois de deduzidas as despesas de cobrança e de administração, serão credi-tadas ao devedor cedente, na operação objeto da cessão fiduciária, até final liquidação da dívida e encargos, responsabilizando-se o credor fi-duciário perante o cedente, como depositário, pelo que receber além do que este lhe devia. (Grifos Nossos)
De forma temos que a lei institui o momento que o cessionário recebe os créditos do car-tão de crédito e deve decidir, se há dívida exigível para abater o crédito, caso contrário se torna mero depositário de valores que são da propriedade do lojista. Assim, as duas pos-síveis formas de ser resolvida a propriedade são:
- Consolidação da PROPRIEDADE AO CESSIONÁRIO com a amortização ou liquidação da dívida; ou a
- Consolidação da PROPRIEDADE AO CEDENTE já que agora o cessionário se responsa-biliza como depositário frente ao cedente.
Assim, a proteção da cessão fiduciária se extingue no momento do recebimento, motivo pelo qual o banco adiciona ao contrato outra forma de garantia, a “Conta Vinculada” (Resolução 2.525 do BACEN) para que possa controlar o risco de sua operação.
DA CONTA VINCULADA: UMA PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL E IRRETRATÁVEL
A Conta Vinculada é operação regulada pela Resolução 2.525 do Banco Centra que esta-belece:
BACEN - Resolução 2.525 - Art. 1º Facultar às instituições financeiras a manutenção de contas vinculadas às suas operações de crédito, em nome dos clientes, não movimentáveis por esses e remuneradas com os mes-mos encargos incidentes em cada operação.
Parágrafo único. As contas vinculadas referidas neste artigo devem ter por finalidade exclusiva a constituição de garantia da operação de crédito específica. (Grifos Nossos)
Observa-se que o próprio Banco Central regulamenta que a Conta Vinculada se destina à Constituição de garantia, ou seja, há na abertura de Conta Vinculada a criação de garan-tia distinta da Cessão Fiduciária.
De forma que apesar de não poder movimentar os valores da Conta Vinculada, esta está em nome do Cliente, tem seus custos arcados pelo Cliente e estão ao alcance de ordens judiciais e outras medidas legais ou regulamentares que visem o Cliente.
Ou seja, uma mera conta corrente, de Posse e Propriedade do Cliente, para a qual o Ban-co, é o único que pode movimentar a conta através de instrumento que se iguala à uma PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL E IRRETRATÁVEL pelo Contratante.
Tendo a Instituição Financeira, não posse, nem propriedade sobre o bem, mas única e simplesmente autorização contratual para fazer sua movimentação.
CHAMADA DE MARGEM: A SEGUNDA GARANTIA
Prática muito comum aos operadores do mercado financeiro é a de “Operar Alavancado”, situação em que o Trader oferece garantias à Corretora para trabalhar com dinheiro em-prestado em montantes muito maiores que as garantias apresentadas. Situação análoga acontece com o empresário, que ao pegar empréstimo com o banco, consegue trabalhar com montantes muito maiores que aqueles que compunham originalmente o patrimônio da empresa.
No caso dos Traders, quando o risco da operação se deteriora e as chances de ruína au-mentam, ao operador é requerida CHAMADA DE MARGEM, que nada mais é que a obri-gação de apresentar mais bens para garantir a operação e trazer os riscos da instituição operação à patamares adequados.
Dispositivo similar é permitido na Resolução 4.734 do Banco Central:
Resolução 4.734 do Banco Central
Art. 4o Nos contratos que formalizem as operações mencionadas no art. 1o, as instituições financeiras devem: (...)
II - especificar, no caso de operação de crédito garantida por recebíveis:
a) os recebíveis de arranjo de pagamento constituídos e a constituir da-dos em garantia da operação, observado o valor de que trata a alínea "b" deste inciso no caso de recebíveis constituídos; e
b) o valor de recebíveis constituídos que poderá ser mantido perma-nentemente em garantia, durante a vigência da operação; (Grifos Nos-sos)
Conclui-se assim que a obrigação de manter os valores referentes à Chamada de Margem em Conta Vinculada nascem, não da propriedade fiduciária dos recebíveis, mas de DISPOSITIVO CONTRATUAL que mantém o dinheiro de Propriedade do Cliente MERAMENTE BLOQUEADO,
Já que lembremos, a Resolução 4,734 não regulamenta a Cessão Fiduciária, mas sim: “Es-tabelece condições e procedimentos para a realização de operações de desconto de recebíveis de arranjo de pagamento” (máquina de cartão de crédito). Logo não se pode presumir au-tomaticamente fiduciários todo e qualquer dispositivo deste regulamentado, muito pelo contrário, deve-se presumir que somente possua proteção fiduciária aquele dispositivo que EXPRESSAMENTE A INSTITUIR.
BURLANDO OS LIMITES DA CESSÃO FIDUCIÁRIA
Sabendo que na impossibilidade de liquidar obrigação pecuniária o banco se torna mero depositário dos valores em sua posse, busca maneira de burlar os limites oferecidos pela Cessão Fiduciária e estabelece a seguinte sequência de ações para manter o controle so-bre o dinheiro ao qual não é mais proprietário e está, momentaneamente, apenas em sua posse.
De forma a contornar o caráter resolúvel da cessão fiduciária, a Instituição Financeira en-contra maneira de manter controle sobre os valores por meio de Chamada de Margem realizada após exaurida a proteção conferida pela cessão fiduciária.
A CESSÃO FIDUCIÁRIA E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A Recuperação Judicial, de acordo com o em seu artigo 49, § 3º dispões sobre os créditos pertencentes a credor titular de posição fiduciária de bens móveis:
Lei 11,101/05 - Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...)
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorpora-ções imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação ju-dicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as con-dições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
Então, naqueles casos em que o juízo afaste a aplicação da cessão fiduciária e, ao mesmo tempo, não reconhecer a essencialidade do caixa da empresa, o banco pode utilizar-se da propriedade fiduciária para receber crédito exigível que possa amortizar ou liquidar uni-lateralmente, e entregar seu excedente para a recuperanda. Atividade que nos casos mais comuns é feita em Conta Vinculada, em nome da recuperanda, para a qual a prote-ção conferida pela propriedade fiduciária jamais existiu, restando apenas a PROTEÇÃO CONTRATUAL QUIROGRAFÁRIA.
Deixando assim duas possíveis interpretações para o § 3º do art 49 da lei 11,101/2005: 1) A primeira mais restritiva que considera como “condições contratuais” as condições contra-tuais de pagamento, valores das parcelas, quantidade de parcelas, juros, multas, encargos, datas de vencimento e forma de pagamento; 2) A Segunda mais abrangente, considera como “condições contratuais” todos os dispositivos contratuais.
No primeiro caso, os valores na Conta Vinculada devem ser entregues à recuperanda pois fazem parte do seu caixa e são imprescindíveis para a manutenção da atividade produti-va, independente da recuperanda estar ou não protegida pelo Stay Pediod.
No segundo caso, ainda assim o dinheiro deve ser entregue à recuperanda, por se tratar de Bem de Capital, essencial para a manutenção da atividade produtiva, mas que só deve ser observado dentro do Stay Pediod.
A INTERPRETAÇÃO MAIS CORRETA
Sendo mais correta a interpretação de que apenas as características inerentes ao crédito devam ser mantidas inalteradas. Já que é possível que um mesmo contrato enseje a criação de mais de um crédito, com garantias diferentes, podendo um ser garantido por garantia fiduciária enquanto o outro qualquer garantia apresente.
Interpretação corroborada pela leitura atenta do próprio dispositivo legal que afirma “seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais” (Grifos Nossos). Logo, às condições contratuais para qual se refere a lei são aquelas condições que se liguem umbilicalmente ao crédito. Restando inalterado o poder do juízo recuperacional sobre quaisquer outras características contratuais que não se refiram à propriedade fiduciária ou as condições que definam o crédito em sim, como valor, forma de pagamento, datas de vencimento, entre outras.
De qualquer forma, o juízo, ao reconhecer e manter a vigência da propriedade fiduciária neste tipo de contrato, deve autorizar o desconto mensal das parcelas de acordo com o cronograma de pagamento e liberar o excedente para que seja utilizado pela empresa. Salvo apresentação de prova pela instituição financeira que comprove outro direito que incida sobre a propriedade retida.