Se você está acompanhando nossos artigos, já sabe que curiosamente, e por conta de todo o introito histórico e geográfico trazido no aqui nesse artigo [Reino Unido. Domínio, jurisdição e Bob Marley1], lá na Supreme Court of the United Kingdom’ existe um conselho, uma espécie de ‘mini Supreme Court dentro da Supreme Court’, chamado Judicial Committee of the Privy Council, que serve como a última instância de judicial review para uma série de casos de repercussão geral e, pasmem, serve também como a última instância para vários países da Commonwealth que ainda não declinaram a posição hierárquica superior dos precedentes britânicos.
Então, além de participarem de jogos a cada quatro anos nos Commonwealth games, os países mantêm um pé lá na English Common Law, mesmo que só em raríssimos casos. Em outras palavras, a corte de última instancia em Bahamas, por exemplo, é obviamente a Supreme Court of the Bahamas. No entanto, caso aconteça de um caso julgado na Supreme Court of Bahamas ir de encontro com algum precedente anterior da Supreme Court of the United Kingdom, é no Judicial Committee of the Privy Council que a interpretação será corrigida. O mesmo ocorre com Trinidad & Tobago, Antigua & Barbuda, Jamaica e... Canadá2. Local onde começamos nosso causo de hoje. Prepare-se para cair da cadeira.
Inicialmente, o que é o Canadá? Um país (lógico) que, em sua essência, faz parte do Reino Unido. Portanto, a soberana do Canadá era a jovem senhora Elizabeth II. É por isso que não há ‘presidente’ do Canadá, mas sim um ‘Prime Minister’; o mesmo ocorre com a Escócia, por exemplo.
A relativa independência do Canadá – para legislar, se autogovernar e autogerir seus interesses – se deu em 1867, marcada pelo documento histórico chamado ‘The British North America Act3’ (BNA Act). Esse Act, que em essência um diploma que une os três territórios separados do Canada, Nova Scotia e New Brunswick em uma única confederação (à época) chamada ‘Canada’, foi sancionado pela Rainha Victória (‘received the the Royal Assent’) em 29 de março de 1867, e entrou em vigor em 1º de julho de 1867.
O BNA Act, que inclusive serviu como constituição do Canadá até 1982, criava um novo governo federal e um parlamento federal bicameral (‘House of Commons and Senate’), juntamente com os governos e parlamentos (‘legislative assemblies’) das províncias. É aqui que mora o nosso problema do dia.
O sufrágio feminino foi uma conquista que, tecnicamente, titubiou no Canada. Como um exemplo disso, veja que no Quebec até os idos de 1940 as mulheres não podiam a exercer o direito de voto. Quanto ao direito de serem eleitas, o drama foi semelhante. Foi apenas em 1919 que as mulheres puderam concorrer a uma das casas legislativas do Canada, mais especificamente a ‘House of Commons’. Já no senado, a história foi outra. Nada de mulher!
O povo saxão, em geral, vê o Senado como ‘the cooling saucer’ (‘o pires de esfriamento’, estranho para os dias de hoje, mas um hábito da burguesia vitoriana, que absurdamente usava o pires para esfriar o chá e o bebia de lá mesmo, do pires), a casa legislativa da tradição e respiro, quem segura as rédeas do progresso endiabrado do tempo, quem age com parcimônia, medida e sapiência (ah, bons tempos). O Senado é visto, em síntese, como o contrapeso do destempero jovial acelerado. Uma frase ótima para um para-choque de caminhão, aliás.
Mulheres não poderiam ser eleitas no senado canadense por conta de uma interpretação restritiva do BNA Act §24 (leia ‘§’ sempre como ‘Section’, isso porque trata-se, na realidade de duas letras ‘s’ entrelaçadas em um simbólico amor legislativo). Vamos reproduzir só a parte que nos interessa aqui em baixo, mas não deixe de visitar o texto na íntegra em um dos meus sites favoritos da vida4. In verbis:
§24. Summons of senator.
The Governor General shall from Time to Time, in the Queen’s Name, by Instrument under the Great Seal of Canada, summon qualified Persons to the Senate; and, subject to the Provisions of this Act, every Person so summoned shall become and be a Member of the Senate and a Senator
“Summons of senator”: é o chamamento para o sujeito se tornar senador. ‘Summons’, que é a mesma palavra para se traduzir a nossa ‘citação’ no (e chamamento ao) processo, tem suas raízes no Latim, que, pasmem, nos deu o verbo ‘chamar’ em português. Seguindo o baile...
Vendo apenas o que nos interessa de forma reduzida (‘abridged’), temos a section com o seguinte conteúdo: “The Governor General shall […] summon qualified Persons to the Senate; and […] every Person […] shall become [...] a Member of the Senate” que, traduzindo, temos algo como “O Governador Geral deverá convocar pessoas qualificadas ao Senado, e toda pessoa (convocada) deverá se tornar membro do Senado”.
Para ser uma “qualified person” (“pessoa qualificada”), era preciso ter pelo menos 30 anos de idade, possuir propriedades no valor de pelo menos US$ 4.000 (e a gente aqui reclamando do projeto da ‘Constituição da Mandioca’) e residir na província de sua nomeação. Mas, incrivelmente, a lei não especificou se o conceito de “person” (“pessoa”) incluía mulheres.
Em 1867, person era legalmente entendido como se referindo apenas aos homens. Consequentemente, o governo canadense desde então interpretou person(s) na §24 como incluindo apenas homens. Em síntese, mulheres não estavam contidas no verbete persons; absurdamente (e de forma extensiva), mulheres não eram consideradas pessoas.
Um hábito, basicamente, bíblico de contagem populacional: o censo demográfico hebreu antigo nunca incluía mulheres. As origens desse despautério é lá da antropologia e da história. Não vem ao caso, mas dá uma explicação capenga para essa tradição apatetada.
O governo ocupou essa posição retrógrada até que, em 1922, Emily Murphy, a primeira juíza do Canadá (aliás, a primeira juíza na história do imenso império Britânico) quis pleitear um cargo para o Senado. Milhares de mulheres em todo o Canadá apoiaram a nomeação de Murphy. Foi um epicentro de um terremoto ideológico que dividiu opiniões, desfez amizades e separou famílias (estranho uma polarização ideológica dividir a população assim, não é mesmo? Parece familiar demais essa história).
No entanto, o governo respondeu que, “embora desejasse mulheres no Senado”, o BNA Act “não previa as mulheres” ... só pessoas.
Emily então convidou quatro ativistas proeminentes (Nellie McClung, Irene Parlby, Louise McKinney e Henrietta Muir Edwards) para sua casa em Edmonton. Seu plano era enviar uma petição ao governo canadense sobre a interpretação da palavra “persons” no BNA Act.
De acordo com §60 do Supreme Court Act, um grupo de cinco pessoas pode requerer ao governo que oriente a Supreme Court of Canada a interpretar uma questão de direito no BNA Act de uma certa maneira. Esse procedimento é conhecido como ‘reference question case’ ou simplesmente ‘reference’5.
Em 27 de agosto de 1927, ‘The Famous Five’, como ficaram conhecidas as cinco mulheres, assinaram a carta, que foi enviada ao Governor-General. Aquela reference demandava que a Supreme Court of Canada se pronunciasse sobre as duas questões seguintes6:
- Há poder investido no Governor-General (...) para nomear uma mulher para o Senado do Canadá?
- É constitucionalmente possível para o Parlamento do Canadá (...) prever a nomeação de uma mulher para o Senado do Canadá?
O ministro da Justiça à época, mais liso que bagre ensaboado, não quis entrar na briga. Ele reduziu ambas as perguntas a apenas uma, passando a bola para a Supreme Court of Canada. Eles que resolvam o embrolho.
A pergunta era simples: “Does the word ‘Person’ in section 24 of the British North America Act, 1867, include female persons?” ou seja “A palavra ‘Person’ na §24 do British North America Act de 1867 inclui pessoas do sexo feminino?”. Uma pergunta bastante complicada, não é mesmo? (leia com ironia, por gentileza).
Pois bem, em 24 de Abril de 1928, a Supreme Court of Canada decidiu unanimemente que ... NÃO! Para eles, a palavra ‘persons’ não incluía mulheres. E acabou o assunto.
Só que ainda não. Emily Murphy não iria desistir assim tão facilmente.
Agora vamos fazer um retornelo ao que trouxemos no primeiro parágrafo. É óbvio que a última instância jurídica do Canadá é a Supreme Court of Canada7, mas quando eles tomam uma decisão contrária a uma Stare Decisis já consolidada, então o caso vai ter que ser levado ao Privy Council, em Londres! E foi exatamente o que aconteceu.
Uma vez levado à Londres – sede do reino do qual o Canadá faz parte – o caso foi resolvido de golpe. A decisão de 18 de outubro de 1929. É óbvio que ‘persons’ inclui mulheres, dã!
Lord Sankey, relator do caso no Privy Council, também observou que a “exclusão de mulheres de todos os cargos públicos é uma relíquia de dias mais bárbaros que os nossos […] e para aqueles que perguntam por que a palavra ‘persons’ deve incluir mulheres, a resposta óbvia é: por que não deveria8?”. Em síntese, um tapa com luvas de pelica (eita, Canadá, tome tenência!).
Essa decisão do Privy Council repercutiu em todo o Império Britânico (mais tarde na Commonwealth), pois afirmava claramente que os anti-sufragistas não podiam mais suprimir os direitos das mulheres por meio de argumentos míopes e tradições preconceituosas.
Ainda, cite-se que a linguagem utilizada no Bill of Rights9 já era quase inteiramente neutra em termos de gênero e suas disposições sempre se aplicaram a mulheres. Portanto, se no Bill of Rights de 1689 ‘persons’ já incluía mulheres, não tinha como o BNA Act de 1867 deixar as mulheres de lado.
É contra o princípio mais basilar daquilo que conhecemos como Common Law: uma decisão anterior proferida por uma corte superior tem força vinculante sobre todas as decisões prolatadas por cortes inferiores quando apreciam casos semelhantes. Ou seja, ‘persons’ já incluía mulheres desde 1689, e não tem como agora o Canadá inventar que não pode!
Assim, a decisão da Supreme Court of Canada foi reformada (dizemos ‘reversed’) e reenviada para que alterassem sua interpretação (em inglês: ‘remanded’).
Como ponto lógico de toda essa história, eu te convido a perceber que mesmo quando um Act se refere a pessoas no singular como ‘he’ ou ‘his’, devemos ter esses pronomes como os ‘neutros’ da língua inglesa, que não contém pronomes neutros em seu léxico. Por exemplo, veja aqui no ‘Contracts (Rights of Third Parties) Act 199910’:
(1) Subject to the provisions of this Act, a person who is not a party to a contract (a “third party”) may in his own right enforce a term of the contract if -- (a) the contract expressly provides that he may, or (b) subject to subsection (2), the term purports to confer a benefit on him
Em outras palavras, quando você lê “a person [...] in his own right [...] a benefit on him” você na realidade está lendo a versão neutra do pronome, e não a que conhecemos (por pura convenção metalinguística) como ‘masculino’ (como se palavras tivessem representação de ordem sexual ou como se coisas inanimadas tivessem gênero extrínseco à linguagem). É uma característica da própria língua inglesa que também habita a nossa última flor do Lácio. Fazer o que?
Explico melhor: a ‘banana’ não passa a ser feminina por utilizar um artigo ou pronome que chamamos de ‘feminino’ por falta de melhor verbete (afinal, não há nada de essencialmente ‘feminino’ no verbete ‘banana’, nem de ‘masculino’, frise-se). O ‘rabanete’ não é masculino pelo mesmo viés. Posso ir ainda além e citar toda a feira, mas paro por aqui.
Chamamos metalinguisticamente pronomes, artigos e nomes de ‘masculinos’ e ‘femininos’ sem qualquer relação com o gênero humano, mas sim por falta de referencial interno próprio, entende? Importante deixar isso claro desde sempre (confie em mim, eu sou linguista).
Após os movimentos sociais do final da década de 1960 algumas legislações, tanto Acts nos Estados Unidos e Reino Unido, quanto Statutes dentro dos estados da Federação Norte Americana, preferiram ‘forçar’ uma inclusão pronominal feminina em seus textos legais de maneira completamente desnecessária, já que, como você já leu ali em cima, desde 1689 mulheres são ‘persons’. O que faz do texto uma colcha de pronomes que confunde a interpretação do leitor. Por exemplo, veja o despautério da abaixo, retirado do Government Code do estado da California, Chapter 13. Retirement Benefits (benefícios de aposentadoria), datado de 1996:
If a member retired for industrial disability has made contributions in respect to service rendered in a category of membership other than the category in which he or she was at the time he or she suffered the disability or incurred the disease causing his or her retirement for industrial disability, in addition to the disability retirement allowance to which he or she is otherwise entitled under this article, he or she shall receive an annuity purchased with his or her accumulated normal contributions made in respect to service rendered in the other category of membership.
É uma bagunça pronominal completamente desnecessária que dá até soluço (leia em voz alta a perceba). Muito mais simples seria tentar não ‘jogar para a galera’ e buscar objetividade no texto – assim, receber sua plateia com o desnecessário ‘boa noite a todos e a todas’ não é nada mais do que discurso hodiernamente asseado. Em outras palavras, utilizar ‘bom dia aos doutores e doutoras’ é usar o mesmo critério de literalidade léxica que usou a Supreme Court of Canadá; ou seja, é incorrer no mesmo erro – há muito já superado.
Pior ainda fica quando o legislador deles inventa de usar ‘they’, que é plural, como a opção de pronome neutro, mas acaba criando monstros semânticos que complicam a exegese (estaria falando de apenas uma pessoa ou de mais de uma? Essa lei é para uma pessoa ou só vale para duas ou mais?).
Em síntese, se antes a cidadania da mulher era cerceada pela sociedade, estamos hoje diante de um esforço ideológico - maquiado de bonzinho - que ignora a natureza da língua, que, convenhamos, não pode ser alterada por decreto. A inclusão das mulheres, no aspecto mais amplo da cidadania, exige um esforço de todos, principalmente do legislador, e estamos, infelizmente, longe de atingirmos plena paridade dos gêneros. Mas, acreditar que a inclusão de um pronome resolve o problema...aí é pura ingenuidade.
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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/370986/reino-unido-dominio-jurisdicao-e-bob-marley
2 Hoje em dia essa competência foi declinada pelo Canada, no entanto esse caso não fica menos interessante; https://www.jcpc.uk/about/role-of-the-jcpc.html
3https://www.parliament.uk/about/living-heritage/evolutionofparliament/legislativescrutiny/parliament-and-empire/collections1/parliament-and-canada/british-north-america-act-1867/#:~:text=The%20British%20North%20America%20Act,a%20single%20dominion%20called%20Canada.
4 https://www.legislation.gov.uk/ukpga/Vict/30-31/3/contents
5 4.2 References Regarding The Constitution And Other Matters
Unlike Governor in Council references regarding Parliament's authority relative to proposed or enacted legislation, certain references seek answers to other legal questions, most often concerning the interpretation of Canada's Constitution.
In the 1929 Reference re meaning of the word "Persons" in s. 24 of British North America Act, the Supreme Court was asked whether women were included in the meaning of "persons" such that women could serve in the Senate of Canada. Disponível em https://lop.parl.ca/sites/PublicWebsite/default/en_CA/ResearchPublications/201544E#txt36
6 1. Is power vested in the Governor-General in Council of Canada, or the Parliament of Canada, or either of them, to appoint a female to the Senate of Canada?
2. Is it constitutionally possible for the Parliament of Canada under the provisions of the British North America Act, or otherwise, to make provision for the appointment of a female to the Senate of Canada?
7 Importa salientar que o Canadá declinou o Privy Council como última intância de Judicial Review em 1949, portanto o caso ainda comportava apreço de Londres.
8 “the exclusion of women from all public offices is a relic of days more barbarous than ours […] and to those who ask why the word [persons] should include females, the obvious answer is why should it not.”
9 https://www.parliament.uk/about/living-heritage/evolutionofparliament/parliamentaryauthority/revolution/collections1/collections-glorious-revolution/billofrights/
10 https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1999/31/data.pdf