Migalhas de Peso

Primeira consideração sobre o anteprojeto regulamentador da relevância nos recursos especiais

A maior discussão, de ordem racional e prática será como adequar essa distinção criada pelo texto constitucional na arguição de relevância em comparação com a repercussão geral.

8/12/2022

Foi divulgado recentemente, no último dia 7/12/22, o anteprojeto encaminhado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao Senado Federal que, enfim, regulamenta a arguição de relevância para os recursos especiais, decorrente da Emenda Constitucional 125/22, que incluiu os parágrafos 2º e 3º ao art. 105 da Carta Magna.

No texto apresentado pela Corte Superior percebe-se uma tentativa de aproximação na regulamentação da arguição de relevância com o já exitoso regime da repercussão geral. O caminho, de início, parece acertado. Porém, algo de diferente parece-me sobressair e ter ficado sem resposta.

 Logo num primeiro momento, se infere que não houve uma proposta para extinguir os outros mecanismos de fixação de precedentes vinculantes, como o recurso repetitivo e o Incidente de Assunção de Competência (IAC).  Mas, se por um lado não houve uma revogação destes mecanismos, o texto tal qual proposto, pode indicar, num futuro próximo, a ausência de utilização desses mecanismos como aconteceu no Supremo Tribunal Federal. A Repercussão Geral no Supremo acabou por inutilizar, na prática, os regimes ora positivados de formação de precedentes (e, não há, qualquer vedação na lei para não aplicarmos tais regimes no âmbito do Supremo, ao contrário).  

Em artigo de minha autoria, publicado no Migalhas (A relevância e a repercussão geral não são institutos com os mesmos efeitos) defendi que a arguição de relevância deveria ser compatibilizada com as técnicas já existentes – até por terem surtido interessantes e práticos efeitos – fazendo com que a Corte Superior pudesse reconhecer a relevância e afetar o julgamento a um dos regimes de formação de precedentes vinculantes (seja via recurso repetitivo ou IAC).

Ainda que o texto proposto não preveja expressamente tal possibilidade, a ausência de proposta de revogação de tais técnicas poderá vir a permitir que o STJ atue desta forma (e, de fato, seria uma maneira de prestigiar técnica construída, debatida e aprimorada na elaboração do CPC/15) que, repita-se, tem gerado bons resultados, inclusive na racionalização e gestão de processos nos tribunais.

Porém, ao se aproximar muito da regulamentação da repercussão geral, o texto encaminhado ao Senado não responde a uma singularidade que foi inserida no texto constitucional e que difere da repercussão geral.

Trata-se da relevância de existência obrigatória que são aqueles casos em que a relevância, pelo texto constitucional, será admitida quando decorrente não propriamente de discussão de fundo do recurso. Não me parece adequado, neste ponto, a redação pretendida ao art. 1.035-A, § 4º do anteprojeto, que utiliza a expressão “presume-se a relevância”. Não se trata de presunção. A escolha constitucional parece clara ao afirmar no art. 105 § 3º da CF que “Haverá relevância...” não acobertando possibilidades para afastar, em sede de lei federal, de uma escolha feita constitucionalmente. A regulamentação deve preservar a opção já feita pela Carta Magna. São casos em que se reconhece objetivamente haver relevância e disto não pode o legislador infraconstitucional se afastar.

Para se entender melhor essa diferenciação com a repercussão geral, decorrente do § 3º do art. 105 da CF, pode-se utilizar como exemplo a ação que possui valor superior a 500 salários-mínimos. Ou seja, pelo texto constitucional, a relevância se impõe mesmo em casos em que a matéria de fundo não representa contornos que ultrapassem interesses subjetivos. A relevância se impõe por um fator externo à discussão de aplicação da legislação infraconstitucional. Poderia se dizer que, nestes casos, há um elemento econômico que justifica a apreciação, pela Corte Superior, de um recurso especial. Porém, não é difícil pensar em causas de elevado valor, mas que a discussão de fundo não ultrapasse os interesses subjetivos, não representando questão de interesse que se pudesse, a partir do caso concreto, gerar uma tese jurídica sobre a matéria ou ainda que seria razoável a definição de um tese vinculante pois a questão jurídica travada sequer aparenta-se como abrangente (tanto no aspecto qualitativo como no potencial quantitativo). Nesses casos, a relevância poderia ser afastada pelo STJ para inadmitir o recurso especial, mesmo que, num primeiro momento, se encaixasse na hipótese prevista na constituição? Admitir essa possibilidade é dizer que o legislador tratou de uma presunção o que, repito, não me parece (e que, portanto, a redação do § 4º do art. 1.035-A do anteprojeto deve ser revisto).

Seria mais interessante ter feito uma cisão clara entre aquilo que deve ser considerado relevante para a Corte se manifestar e aquilo que, além de relevante, possa gerar tese definidora e vinculante sobre a matéria infraconstitucional debatida (e neste ponto, adotando-se, preferencialmente, os procedimentos já previstos no código, seja em recurso repetitivo ou IAC).

Seria interessante que, na tramitação do projeto no Congresso Nacional, fosse, desde logo, definida como se dará a questão dos casos em que se impõe o conhecimento da relevância (relevância de existência obrigatória) e especialmente se, todo o caso que for assim admitido, inevitavelmente, gerará um precedente vinculante sobre a matéria infraconstitucional tratada. A sugestão do texto do STJ, garante, que todos os casos julgados sob o regime de relevância terão natureza vinculativa, tanto que inclui um novo inciso no art. 927 do CPC.

A maior discussão, de ordem racional e prática será como adequar essa distinção criada pelo texto constitucional na arguição de relevância em comparação com a repercussão geral.

Talvez (e apenas talvez) os dois regimes não sejam tão gêmeos como se quer fazer aparentar...

Scilio Faver
Advogado e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados. Pós-graduação em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

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