No último dia 29, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 4401/21, que trata da regulamentação do mercado de criptoativos.
Esse PL já havia sido aprovado em abril deste ano pelo Senado Federal e agora segue para sanção presidencial. Uma vez sancionada pelo Presidente da República, a nova lei entrará em vigor em 180 dias contados de sua publicação.
O texto aprovado do PL traz, principalmente, conceitos, princípios e diretrizes que deverão nortear a prestação de serviços no mercado de criptoativos, tais como, a livre concorrência, a proteção de dados pessoais, a proteção à poupança popular, a defesa de consumidores, a prevenção à lavagem de dinheiro, entre outros. Além disso, dá poderes para a autoridade ainda a ser designada pelo Poder Executivo, que se espera seja o Banco Central do Brasil (BCB), para autorizar, regulamentar e fiscalizar as prestadoras de serviços de ativos virtuais. Esses serviços incluem, entre outros, serviços de troca, transferência, custódia e administração desses ativos.
O PL traz também algumas outras mudanças que buscam reforçar a segurança no mercado de criptoativos: (i) criação de um novo tipo penal específico para fraude utilizando ativos virtuais; (ii) equiparação das prestadoras de serviços de ativos virtuais a instituição financeira, especificamente para os fins da lei 7.492/86, que dispõe sobre os crimes contra o Sistema Financeiro; (iii) inclusão de tais entidades, de forma expressa, no rol do artigo 9º da lei 9.613/98, que trata dos crimes de lavagem de dinheiro e outros crimes financeiros; e (iv) aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais.
A aprovação do PL 4401/21 é um passo importante para que haja maior segurança jurídica para aqueles que operam no mercado de criptoativos no Brasil, bem como para a proteção dos investidores desse mercado. No entanto, dado o seu caráter principiológico, a regulamentação infralegal terá um papel crucial.
Espera-se que essa regulamentação principalmente defina os requisitos necessários para o funcionamento de uma prestadora de serviços de ativos virtuais, incluindo, entre outras, as regras relacionadas ao processo de autorização, capital e patrimônio mínimos, gerenciamento de riscos, relacionamento com clientes e prevenção à lavagem de dinheiro, de forma semelhante ao que existe atualmente para as demais instituições autorizadas a operar pelo BCB. Ainda, acredita-se que o BCB estabelecerá determinadas regras para proteger os criptoativos e recursos financeiros mantidos por clientes junto a corretoras de criptoativos (exchanges).
No entanto, tal regulamentação pelo BCB estará restrita aos ativos virtuais que não sejam valores mobiliários. Isso, porque estão expressamente excluídos do conceito de ativos virtuais que consta do texto aprovado do PL 4401/21 aqueles criptoativos que sejam valores mobiliários, os chamados security tokens.
Como fica então a regulamentação dos security tokens no Brasil? Essa pergunta já vem sendo feita há alguns anos, desde quando os criptoativos começaram a ter um papel mais relevante no mercado de capitais ao redor do mundo, com o crescimento das ofertas iniciais de tokens como forma de captação de recursos, de fundos de investimento com exposição em criptoativos e da oferta de derivativos por exchanges. Porém, em diversas jurisdições falta ainda clareza sobre o tratamento legal e regulatório do uso dos criptoativos no mercado de capitais. No Brasil, embora esses ativos não tenham sido abrangidos pelo PL 4401/21, e ainda não haja uma regulamentação específica para eles, dois passos foram recentemente tomados com o intuito de começar a trazer essa clareza.
O primeiro passo foi a publicação, no dia 11 de outubro de 2022, de um novo parecer de orientação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o Parecer de Orientação 40 (Parecer de Orientação), que apresenta uma visão preliminar do regulador sobre as ofertas de criptoativos que estejam sujeitas ao escrutínio regulatório da CVM. Esse parecer objetiva esclarecer os limites de atuação e como devem se dar a normatização e a fiscalização pela autarquia.
Até então, a CVM havia se manifestado sobre o tema em poucas oportunidades. Por meio de comunicados, divulgados em 11 de outubro de 2017 e 16 de novembro de 2017, a CVM ressaltou o risco de investimentos relacionados a criptoativos e a possibilidade de a oferta de tais ativos ser considerada oferta de valores mobiliários e, portanto, sujeita ao regime aplicável às ofertas públicas de valores mobiliários no Brasil. Posteriormente, em 2018, por meio do Ofício Circular 11/2018/CVM/SIN, a CVM confirmou a possibilidade de fundos de investimento brasileiros investirem indiretamente em criptoativos.
Desde 2018, a autarquia não havia apresentado nenhuma nova orientação de caráter preventivo sobre criptoativos, tendo concentrado sua atuação em ações punitivas, com a emissão de uma gama de alertas para suspensão de ofertas consideradas irregulares e decisões no âmbito de Processos Administrativos Sancionadores envolvendo tais ofertas.
O Parecer de Orientação divide os criptoativos, ou tokens, como a CVM também se refere aos criptoativos ao longo do parecer, em três categorias: (i) token de pagamento, o que inclui, entre outras criptomoedas, o bitcoin, (ii) token de utilidade, utilizado para adquirir ou acessar determinados produtos ou serviços e (iii) token referenciado a ativo, o qual representa um ou mais ativos, tangíveis ou intangíveis. Entre os tokens referenciados a ativo estão os security tokens, as stablecoins, NFTs e outros ativos objeto de operações de “tokenização”.
Diante dessas três categorias, a CVM indica que o token referenciado a ativo é que pode ser um valor mobiliário, a depender da essência econômica dos direitos conferidos a seus titulares bem como da função que assuma ao longo do desempenho do projeto a ele relacionado. Ou seja, a CVM indica o seu entendimento, com o qual concordamos, de que os tokens de pagamento e os tokens de utilidade não devem ser considerados valores mobiliários.
Concentrando-se, então, nos tokens referenciados a ativo, o Parecer de Orientação destaca três hipóteses de enquadramento: (i) tokens que sejam derivativos, que são necessariamente valores mobiliários, independentemente da natureza do ativo subjacente, conforme o disposto no art. 2º, inciso VIII, da lei 6.385/76; (ii) tokens que sejam contratos de investimento coletivo ofertados publicamente, com base no conceito aberto previsto no inciso IX do artigo 2º da Lei nº 6.385/76; e (iii) tokens que sejam certificados de recebíveis previstos na lei 14.430/22.
Com relação aos contratos de investimento coletivo, o Parecer de Orientação esclarece que o Colegiado da CVM tem considerado as seguintes características essenciais para determinar se um ativo é, ou não, valor mobiliário: (i) existência de característica de investimento mediante aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica; (ii) formalização do título ou contrato que resulte da relação entre investidor e ofertante; (iii) caráter coletivo do investimento; (iv) expectativa de benefício econômico, representado por alguma forma de participação, parceria ou remuneração; (v) esforço preponderante de terceiro que não seja o investidor para gerar tal benefício econômico; e (vi) oferta pública do ativo.
O Parecer de Orientação também aborda os elementos que caracterizam uma oferta de valor mobiliário como pública. A CVM ressalta nesse parecer que a exibição de página contendo ofertas de valores mobiliários apenas a usuários identificados por login e senha ou a inexistência de divulgação não tem o condão de, isoladamente, afastar o caráter público de uma oferta. Devem ser levados em consideração outros aspectos, tais como, o número de investidores alcançados, o número de subscritores e a existência de medidas efetivas que restrinjam o acesso à página por brasileiros (a exemplo de mecanismos de “geoblocking”). Nessa linha, a CVM esclarece que a existência de texto para atrair investidores residentes no Brasil, ainda que em idioma estrangeiro, é um critério relevante na caracterização de uma oferta pública.
Adicionalmente, a CVM destaca o papel relevante que possuem os intermediários que atuam no mercado de criptoativos, principalmente para garantir a transparência de informações aos investidores, assegurando acesso a informações corretas, claras e completas. Vale lembrar que a disciplina jurídica do mercado de capitais brasileiro foi desenvolvida sob a égide do princípio intitulado de “full disclosure”, inspirado no direito inglês e no direito norte-americano. O full disclosure representa o dever de divulgação de informações relativas aos valores mobiliários de modo claro e transparente, para permitir que os investidores possam tomar decisões de investimento de forma consciente e informada. Os recentes escândalos no mercado de criptoativos, como o da FTX, reforçam ainda mais a preocupação com transparência.
Ainda, o Parecer de Orientação deixa claro que em nada altera o entendimento da CVM a respeito da possibilidade de fundos investirem diretamente em criptoativos, de forma que continua permitido apenas o investimento indireto. Ou seja, fundos de investimento não podem adquirir criptoativos no Brasil, a não ser por meio de fundos de investimento constituídos no exterior ou exchanges estrangeiras reguladas em suas respectivas jurisdições.
O Parecer de Orientação não traz, assim, um novo entendimento da CVM sobre a oferta de criptoativos, mas consolida entendimentos já refletidos em comunicados anteriores, alertas de suspensão de oferta e processos administrativos conduzidos pela autarquia.
O segundo passo importante foi recentemente tomado pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), que, no dia 3 de novembro de 2022, colocou em audiência pública novas regras para fundos e carteiras administradas que investem em ativos digitais (Consulta Pública). As propostas, que farão parte do Código de Administração de Recursos de Terceiros, visam aumentar a transparência das informações disponibilizadas aos investidores.
Em geral, a nova regra tem como objetivo determinar que veículos de investimento poderão adquirir ativos digitais, na forma permitida pela regulação, desde que os regulamentos dos fundos de investimento e documentos das carteiras administradas destaquem que tais veículos podem investir em ativos digitais e que este tipo de investimento envolve uma série de riscos específicos, os quais devem ser considerados pelos investidores.
No caso de fundos ou carteiras administradas que buscam retorno por meio de investimentos em ativos digitais concentrando sua exposição e/ou riscos nesses ativos, além dos riscos gerais do investimento, deverão ser indicados os riscos relacionados aos ativos digitais. De maneira não exaustiva, a regra indica que devem ser informados o risco de custódia, risco de contrapartes, risco cibernético e de dependência tecnológica, risco de mudanças legislativas e regulatórias, risco de ambientes de negociação, risco de volatilidade, risco de alterações no protocolo blockchain e risco de não se conseguir realizar os potenciais benefícios econômicos de um airdrop (distribuição, em teoria gratuita, de tokens).
O Parecer de Orientação e a Consulta Pública contribuem para trazer mais luz acerca das regras aplicáveis às ofertas dos chamados security tokens, mas ainda há muitas questões em aberto.
Uma dessas questões é como viabilizar uma oferta pública de um security token, fazendo o uso da tecnologia de registro distribuído (distributed ledger tecnology - DLT), tal como uma blockchain e, ao mesmo tempo, seguindo todas as normas do mercado de capitais tradicional. Se for necessário, por exemplo, que a oferta conte com todos os participantes exigidos pelas regras atuais, incluindo, entre outros, escriturador, custodiante e depositário central, e não for permitido o uso da tecnologia DLT para exercer esses papéis, não se verá a redução de custo que tal tecnologia poderia propiciar.
Ainda não temos clareza também sobre o enquadramento de determinadas ofertas de criptoativos como oferta de valor mobiliário. Para citar apenas um exemplo, é o caso do popular staking, o ato de se “bloquear” uma parte das criptomoedas a fim de fornecer liquidez ao mercado de criptoativos e receber, em troca, uma remuneração na forma de criptoativos. O presidente da SEC (Comissão de Valores Mobiliários dos EUA), Gary Gensler, já sinalizou que o staking pode estar sujeito às regras do mercado de valores mobiliários, mas no Brasil ainda não temos uma manifestação pública da CVM a respeito dessa operação.
Diante deste cenário, o desenvolvimento de um mercado de security tokens no Brasil depende de uma revisão das regras atuais. Espera-se que o primeiro ciclo do sandbox regulatório da CVM, que será concluído em junho de 2023 e conta com dois projetos envolvendo emissão, distribuição e negociação, em mercado de balcão organizado, de valores mobiliários emitidos ou representados na forma de tokens em redes de blockchain, possa contribuir para tal revisão.
Em suma, tivemos recentemente alguns passos importantes para a regulamentação do mercado de criptoativos no Brasil, mas ainda temos um cenário regulatório bastante incompleto. Faltam peças importantes, principalmente a regulamentação pelo BCB e pela CVM e a autorregulação, que terão um papel crucial no desenvolvimento do mercado de criptoativos no Brasil.
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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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