A primeira cláusula mencionando arbitragem utilizada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) no âmbito de acordos celebrados com a Autarquia remete ao ano de 2014, quando da negociação dos remédios adotados no âmbito do Ato de Concentração 08700.000344/2014-47, que envolvia a constituição de uma joint-venture entre a Bromisa, a ICL Brasil e a Vale Fertilizantes.
Naquela primeira cláusula arbitral, determinou-se que “no caso de uma alegada recusa pela Fosbrasil no fornecimento de PPA de grau alimentício a um produtor independente de sais de fosfato de grau alimentício localizado no Brasil que tenha submetido pedido de boa-fé à Fosbrasil, e caso esse produtor alegue que a recusa da Fosbrasil não teve justificativa objetiva, o CADE poderá, se apropriado, solicitar à ICL Brasil que dê início a processo de arbitragem para dirimir a questão, de acordo com práticas usuais de negócio”1. Ou seja, o acordo previa que o Cade estaria então incumbido de solicitar especificamente a uma das requerentes (ICL Brasil) a instauração com um procedimento arbitral com o objetivo de “determinar se a Fosbrasil teve uma justificativa objetiva para a recusa de fornecer PPA” a determinado produtor independente.
Tal opinião instruiria uma decisão fundamentada do Cade. O produtor independente deveria ser intimado para concordar em se vincular à arbitragem como pressuposto para o prosseguimento do processo. Os custos do procedimento só seriam arcados pelo produtor independente em caso de má-fé reconhecida pelo Cade após opinião não vinculante do(s) árbitro(s). É questionável se o mecanismo estabelecido nessa cláusula pioneira poderia efetivamente ser reconhecido como uma arbitragem com a natureza e eficácia da lei 9.307/96. Parece-nos que ele se aproximaria mais de um sistema de arbitramento por terceiro especializado, sem caráter jurisdicional, cuja produção de efeitos práticos dependeria do exercício das competências próprias do Cade.
Embora não trate da natureza ou eficácia do procedimento adotado na cláusula em questão, Cavalcanti (2015) menciona trecho do voto da relatora, Conselheira Ana Frazão, sobre a delegação pelo Cade ao procedimento arbitral da função de avaliação e diálogo acerca de matéria que, de outro modo, imporia investigações custosas ao Cade. Também ressalta que tais temas “podem muito bem ser, pelo menos numa primeira instância, dirimidos pelo contraditório entre as próprias partes e pela decisão do árbitro, terceiro escolhido”.2
Apesar de o formato desta cláusula ser bastante distinto daquele observado em casos recentes, ela foi o pontapé inicial para as outras sete que viriam a seguir, todas elas celebradas no âmbito de Acordos em Controle de Concentrações (ACCs) firmados entre Cade e requerentes, no contexto da função preventiva, que remete ao controle de estruturas.
O texto doutrinário já referido também examina a cláusula inserida no ACC 08700.005719/2014-65 (caso ALL-Rumo), que protegia os interesses de algum usuário que “se sinta discriminado na contratação ou na prestação de quaisquer serviços pela NOVA COMPANHIA”3. Após etapa prévia administrativa, o usuário poderia “iniciar procedimento arbitral privado”, prevendo-se que “A NOVA COMPANHIA acatará, se satisfeita a condição do caput, todos os pedidos de arbitragem formulados pelos Usuários de serviço de transporte ferroviário”.
A referida cláusula estabelece ainda que “A decisão do Tribunal Arbitral será de constatação se a contratação e prestação do serviço de transporte ferroviário ocorreu de forma discriminatória, considerando-se a contratação e a prestação dos serviços com Partes Relacionadas”. Ora, a redação utilizada poderia ensejar dúvidas sobre a amplitude dos poderes do tribunal arbitral, especialmente quanto à possibilidade de proferir sentença condenatória à reparação dos danos. Entretanto, nota-se uma nítida evolução em relação à primeira cláusula, prevista no caso ICL-Fosbrasil, pois o item 2.33 deixa claro que a decisão arbitral é autônoma em relação ao exercício das competências do Cade, que inclusive não “se obriga a se manifestar ou a tomar providências a cada decisão arbitral prolatada”.
Para além destes dois primeiros exemplos, sabe-se que o Cade também se utilizou de cláusulas arbitrais no AC 08700.004211/2016-10, que analisava um acordo de negócio conjunto (Joint Business Agreement ou “JBA”) entre a TAM e o Grupo LATAM, de um lado, e a Iberia e British (Grupo IAG) de outro; no AC nº 08700.004860/2016-11, envolvendo a aquisição de controle da CETIP S.A. pela BM&FBOVESPA S.A. (“BVMF”); no AC nº 8700.001390/2017-14, que discutia a aquisição do controle unitário da Time Warner pela AT&T; no AC no 08700.004163/2017-32, que envolveu aquisição pelas empresas Petromex S/A e DAK Américas Exterior S.L. da totalidade das ações da Companhia Petroquímica de Pernambuco (“PSUAPE”) e da Companhia Integrada Têxtil de Pernambuco (“CITEPE”), então detidas pela Petrobrás; no AC no 08700.000726/2021-08, que tratou da aquisição pelas empresas Claro S.A., Telefônica Brasil S.A. e TIM S.A. da totalidade das ações Oi S.A. - Em Recuperação Judicial; e no AC nº 08700.006512/2021-37, que analisou a aquisição da refinaria de Manaus (REMAN/Petrobrás) pela Ream Participações S.A.
Como explica Burnier (2021), “a atual legislação concorrencial unificou a parte de investigação, tanto de práticas anticompetitivas, quanto de análise de concentrações, no âmbito do Cade, com a criação da Superintendência-Geral do Cade enquanto a função judicante”. Dessa forma, para além dos acordos firmados em sede de Atos de Concentração, a possibilidade de incluir cláusulas arbitrais em acordos com a Autarquia também remete ao controle de condutas.
Neste segundo contexto, ou seja, que diz respeito à utilização de cláusulas arbitrais em sede de Termos de Compromisso de Cessação (TCCs), as hipóteses de uso do procedimento arbitral se desdobram em dois tipos de contribuições. A primeira, uma contribuição direta ao fortalecimento do enforcement concorrencial público, muito similar à situação dos ACCs, em que a arbitragem é utilizada como um elemento dissuasório, criando incentivos ao cumprimento dos acordos celebrados com o Cade.
No segundo tipo, por sua vez, estamos tratando de uma contribuição indireta, que se dá através do enforcement concorrencial privado, a partir do momento em que a inclusão de cláusulas arbitrais em TCCs transfere o foro de discussão de litígios de natureza reparatória, com base no Art. 47 da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência, ou “LDC”), à seara arbitral. Em 17 de novembro de 2022, foi aprovada a lei 14.470/22, que modificou a LDC, alterando o teor de seu artigo 47, além de inserir os novos 46-A e 47-A. A nova lei reestruturou o sistema de persecução privada concorrencial e, ao fazê-lo, detalhou temas cruciais ao seu desenvolvimento, como o prazo prescricional aplicável e o termo inicial que deve ser utilizado na sua contagem, a distribuição do ônus probatório e a indenização em dobro das perdas e danos sofridos em função de infrações à ordem econômica4.
Não obstante todas as inovações trazidas ao enforcement concorrencial privado no âmbito do ordenamento brasileiro a partir da nova norma, a versão sancionada da lei 14.470/22 foi objeto de um veto presidencial em relação à proposta5, que prevê a possibilidade dos investigados celebrarem Termos de Compromisso de Cessação (TCC) com o Cade. O parágrafo vetado obrigava que os compromissários de TCCs incluíssem cláusulas arbitrais nestes acordos, possibilitando aos prejudicados a oportunidade de acessar o foro arbitral para resolver tais controvérsias.
Termos de Compromisso de Cessação (TCCs) são acordos firmados entre o Cade e as pessoas físicas e jurídicas (compromissárias) objeto de investigações que visam a apurar o cometimento de infrações à ordem econômica. É a partir da celebração de um TCC que seus compromissários poderão comprometer-se a cessar as práticas investigadas, além de assumir outras obrigações, que podem ou não ser de natureza pecuniária6.
Em que pese a figura dos TCCs já existir desde a vigência da 8.884/1994, há um evidente descompasso entre a quantidade de acordos firmados no período da lei antiga (38) com relação àqueles celebrados após a nova lei (349)7. Essa expressiva diferença provavelmente decorre da maior regulamentação que a LDC trouxe à utilização deste instituto, com incentivo da Autarquia em fortalecer sua política de acordos,8 além do evidente crescimento no número de casos investigados.
Assim, ao passo que compromissários de TCCs são motivados pela possibilidade de reduzir a multa aplicável à infração possivelmente cometida, além de estancar os custos com a sua defesa e encerrar uma discussão com o Cade – discussão esta que poderia ter implicações negativas à reputação da companhia e das pessoas físicas investigadas – signatários de ACCs estão mais preocupados em aprovar a operação, sempre procurando garantir que a eventual necessidade de aplicar remédios concorrenciais seja menos danosa à manutenção do curso de seu negócio.
Diferentemente dos TCCs, não há ACCs celebrados antes da vigência da LDC, considerada como o marco legal para o início do controle prévio de estruturas no Direito Concorrencial Brasileiro. Na estrutura de controle ex post utilizado na lei anterior, eventuais acordos em sede de controle de concentração eram realizados na forma dos Termos de Compromisso de Desempenho (TCDs), cuja lógica não se confunde com aquela utilizada nos ACCs, uma vez que a aplicação de remédios hoje é uma condicionante à consumação da operação.
Apesar de o texto original da LDC haver previsto um dispositivo próprio que tratava especificamente do regime dos ACCs (o antigo Art. 929), esse dispositivo acabou sendo excluído da versão final da lei, restando tão-somente menções esparsas, como é o caso dos artigos 9º, inciso V; 13º, inciso X e 46º, § 2º, além da regulamentação infralegal trazida no âmbito da Resolução 1/201210.
Entretanto, mesmo na ausência de precedentes que remetam à utilização de cláusulas arbitrais em TCCs e com apenas oito ACCs que tenham, de fato, se utilizado do referido método heterocompositivo, o tema da arbitragem concorrencial não é uma novidade em outras jurisdições.
A adoção da arbitragem para o enforcement privado de regras concorrenciais é amplamente conhecida na prática norte-americana. Um dos casos mais relevantes da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre arbitragem – Mitsubishi v. Soler Chrysler-Plymouth, 473 U.S. 614 (1985) – diz respeito exatamente a uma situação de aplicação das regras da legislação antitruste (Sherman Act) por um tribunal arbitral. A Suprema Corte concluiu que pleitos concorrenciais são arbitráveis, independentemente do interesse público no enforcement privado como forma de aplicação do direito antitruste.
Ainda em 2010, ou seja, antes mesmo do início da vigência da LDC, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) publicou o documento “Hearings: Arbitration and Competition”. Esse documento resume as contribuições dos professores Luca Radicati e Laurence Idot a respeito do tema, fruto das audiências realizadas no âmbito do Comitê de Concorrência da OCDE, que reflete a experiência acumulada sobre o tema da arbitragem concorrencial principalmente nos Estados Unidos e na União Europeia. Os leading cases sobre o tema, nas respectivas jurisdições, remetem ao século passado, respectivamente, aos anos de 1985 – o já referido caso Mitsubishi11 – e 199912. A experiência acumulada no assunto originou uma série de questionamentos, especialmente no que se refere aos limites dos poderes que deveriam ser delegados ao árbitro, considerando a competência privativa atribuída às agências antitruste em se tratando do julgamento das infrações concorrenciais.
Inclusive, um dos temas explorados nesse documento remete ao fato de que as cláusulas arbitrais utilizadas nestes acordos se têm tornado cada vez mais padronizadas13. No Brasil, com a maior frequência do uso de cláusulas arbitrais em ACCs, bem como das discussões que motivaram o veto do PL 11.275/18, originando a atual versão da lei 14.470/22, foi instaurado, a partir da Portaria 14, de 15 de junho de 2022, um Grupo de Trabalho (GT) com o intuito de “elaborar estudos e pesquisas sobre a utilização de cláusulas arbitrais e trustees em sede de acompanhamento de decisão no âmbito do Cade, abrangendo ACCs e TCCs”.
Diferentemente de uma arbitragem com a Administração Pública, a arbitragem concorrencial envolverá o Cade apenas na qualidade de interveniente, uma vez que sua natureza jurídica muito mais se assemelha a uma “proposta de arbitragem”, ou, nas palavras de Blessing (2003), uma “oferta unilateral erga omnes”14, através da qual o compromissário de um acordo perante a Autarquia compromete-se em concordar com o uso do foro arbitral por terceiros, ainda desconhecidos quando da assinatura da arbitragem.
Com o veto parcial do PL 11.275/18 e a menos que ele seja rejeitado pelo Congresso Nacional, a oferta unilateral erga omnes de arbitragem para o exercício de direitos por terceiros prejudicados por condutas anticoncorrenciais não decorrerá diretamente da lei. Porém, continuará a ser prevista em ACCs e TCCs, em cláusulas de cada vez maior sofisticação e com as contribuições do GT instituído pela Portaria 14/22.
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1 Redação final da cláusula 4.6 do Acordo em Controle de Concentrações (nº SEI 0013475).
2 CAVALCANTI, Rodrigo de Camargo. Acordos em controle de concentrações e o instituto da arbitragem.
RDC, Vol. 3, nº 2. Novembro 2015, pp. 28-45.
3 Redação final da Cláusula 2.30 do Acordo em Controle de Concentrações (nº SEI 0022458)
4 Mais detalhes sobre as modificações trazidas com a nova lei foram esmiuçados no artigo recentemente publicado por Barreto e Signorelli (2022) neste mesmo veículo, em BARRETO, Alexandre; SIGNORELLI, Ana Sofia Monteiro. Lei 14.470/2022: uma nova era para a persecução concorrencial privada no Brasil. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/377527/uma-nova-era-para-a-persecucao-concorrencial-privada-no-brasil. Acesso em 01/12/2022.
5 A proposta trazida no âmbito do então Projeto de Lei 11.275/2018 possuía a seguinte redação: "§ 16. O termo de compromisso de cessação de prática que contenha o reconhecimento da participação na conduta investigada por parte do compromissário incluirá obrigação do compromissário de submeter a juízo arbitral controvérsias que tenham por objeto pedido de reparação de prejuízos sofridos em razão de infrações à ordem econômica, quando a parte prejudicada tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com sua instituição." Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2022/lei-14470-16-novembro-2022-793395-veto-166412-pl.html. Acesso em 12/11/2022.
6 Conforme prevê o § 2o do Art. 85 da LDC, “Tratando-se da investigação da prática de infração relacionada ou decorrente das condutas previstas nos incisos I e II do § 3º do art. 36 desta Lei, entre as obrigações a que se refere o inciso I do § 1º deste artigo figurará, necessariamente, a obrigação de recolher ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos um valor pecuniário que não poderá ser inferior ao mínimo previsto no art. 37 desta Lei”. Neste sentido, a contribuição pecuniária será requisito necessário à celebração de acordos no âmbito de investigações que tratem das condutas contidas nos incisos I e II, as quais consistem, respectivamente, em “I - acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: (a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente; (b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços; (c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos; e (d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública; e II - promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes” .
7 Conforme levantamento realizado por Saito (2021) In SAITO, C. Documento de Trabalho TCC na Lei 12.529/11. p. 10. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. 2021. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/TCC%20na%20Lei%20n%C2%BA%2012.52911/TCC%20na%20Lei%20n%C2%BA%2012.529-11.pdf Acesso em 15/05/2022.
8 Inclusive, a Resolução 21, de 11 de setembro de 2018, foi uma expressão clara do cuidado do Cade em resguardar a atratividade da política de acordos da Autarquia, considerando que os compromissários de TCCs e Acordos de Leniência poderiam perder o incentivo de negociar tais acordos, na hipótese de que fosse concedido acesso prematuro (em relação aos demais representados que compõem o polo passivo) aos documentos que contenham sua assunção – o que estimularia a enxurrada de ajuizamento de ações reparatórias por partes que tenham sido lesadas por determinada conduta. Disponível em http://antigo.cade.gov.br/assuntos/normas-e-legislacao/resolucao/resolucao-no-21-de-12-de-setembro-de-2018.pdf/view. Acesso em 15/03/2022.
9 Art. 92. A Superintendência-Geral poderá, na forma previamente fixada pelo Tribunal, antes de impugnar a operação, negociar acordo com os interessados que submetam atos a exame, na forma do art. 88 desta Lei, de modo a assegurar o cumprimento das condições legais para a respectiva aprovação.
10 BRASIL, Resolução 1/2012, conforme Arts. 125 e ss. Disponível em http://antigo.cade.gov.br/assuntos/normas-e-legislacao/resolucao/resolucao-no-01_2012/view. Acesso em 15/03/2022.
11 Ano do julgamento do caso Mitsubishi Motors Corp. v. Soler Chrysler-Plymouth, Inc. 473 U.S. 614.
12 Ano do julgamento do caso Eco Swiss China Time Ltd v Benetton International N.V., 1325.
13 OCDE. Hearings: Competition and Arbitration. DAF/COMP(2010)40.
14 BLESSING, M. Arbitrating Antitrust and Merger Control Issues. Swiss Commercial Law Series, v. 14, Helbing & Lichtenhahn: 2003. Disponível em https://media.baerkarrer.ch/karmarun/image/upload/baer-karrer/4_3_14.pdf. Acesso em 05/11/2022, p. 164.