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Ato administrativo secreto idôneo: O ato equívoco de apuração da previc

Prescrição não é um palavrão jurídico como já disseram. A estabilização das situações jurídicas é um dos pilares da paz social e do estado democrático de direito. No entanto, nos processos sancionadores da Previc são admitidos atos administrativos secretos como se fossem atos inequívocos interruptivos de prescrição. O que seria o tal “ato administrativo secreto idôneo”?

5/12/2022

1. Introdução

Basta acompanhar a atuação da CRPC - Câmara de Recursos da Previdência Complementar para notar que a maior parte de suas decisões enfrentam o tema da prescrição. Isso, de plano, já demonstra que a fiscalização chega tarde demais às EFPC. Quase sempre, o ato fiscalizado ocorreu há mais de 5 anos. Em outras oportunidades, a fiscalização fica paralisada por mais de 3 anos o que enseja a prescrição intercorrente. Portanto, o debate jurídico a respeito da prescrição acaba centrado nos atos administrativos inequívocos que teriam o condão de interromper o curso dos prazos.1

Ora, prescrição não é um palavrão jurídico como já andaram dizendo.2 Qualquer manual introdutório explica que a estabilização das situações jurídicas é um dos pilares da paz social e do estado democrático de direito. De outro lado, em virtude do princípio da publicidade previsto no caput do art. 37 da Constituição, a expressão “ato administrativo secreto idôneo” tende a causar alguma perplexidade.3

Contudo, veremos que no âmbito dos processos administrativos sancionadores da Previc, a CRPC vem admitindo efeitos jurídicos dos atos administrativos secretos nos direitos individuais dos cidadãos.

2. Oscilação da orientação geral

Com efeito, a lei 9.873/99 e o decreto 4.942/03 limitam o exercício do poder de ação punitiva do estado ao prazo de 5 anos e fixam o prazo da prescrição intercorrente em 3 anos. Entretanto, a prescrição pode ser interrompida por algum ato inequívoco que importe apuração do fato. Ocorre que, paradoxalmente, há múltiplas interpretações quanto à expressão inequívoco.

Vejamos, sinteticamente, quais são elas.

(a) Instauração do processo administrativo sancionador

Tradicionalmente, a CRPC, a partir do julgamento unânime do Auto de Infração 95/07-93 [Processo 44000.002786/20007-50 com o voto condutor da Conselheira Lygia Avena] era firme no sentido de que a prescrição era interrompida apenas com a instauração do processo administrativo.4

(b) Ciência do investigado mediante qualquer meio pré-processual

Tempos depois, quando foi do interesse da autarquia defender que não teria ocorrido a prescrição, a Previc passou a sustentar até em juízo que era inequívoco o ato de ciência do suposto infrator em atos pré-processuais nos quais não era possível exercer o contraditório.5

(c) Carta sigilosa

 Surgiu, então, uma corrente oposta às duas anteriores que alegava ser inequívoco o ato administrativo secreto em que uma carta sigilosa era enviada pela Previc para a EFPC que teria sido vítima.6

(d) Início do processo formal de fiscalização

Há, ainda, outro entendimento da Previc de que a prescrição é interrompida, mesmo antes da ciência dos investigados quando — depois de se verificar uma irregularidade — se inicia o processo formal de fiscalização.

“administração verifica uma irregularidade e ela lança o processo formal de fiscalização. Ao longo dessa fiscalização, quando se verificar materialidade e autoria ou, pelo menos, indícios fortes de materialidade e autoria, ocorre a notificação do acusado e, aí sim, em razão do contraditório e da ampla defesa.”7

Manter o segredo desses atos administrativo no procedimento pré-processual não é fruto do acaso. Atualmente, por temer ser acusada de abuso de autoridade, a Previc conserva todo o processo formal de fiscalização longe do conhecimento dos investigados.

“Não há como se notificar alguém como acusado num ato inicial de fiscalização. Até porque seria temerário. Atualmente, para você acusar alguém de alguma coisa... você tem que ter justa causa para a acusação, sob pena até de eventual abuso de autoridade.8

(d) Carta sigilosa idônea

Finalmente, também na defesa dos atos secretos, decisão recente da CRPC apresenta os parâmetros do “ato administrativo secreto idôneo” que seria a carta sigilosa enviada para a EFPC vítima que contenha:

  1. um objeto ou investimento específico;
  2. data de expedição;
  3. assinatura competente;
  4. comprovante de entrega à EFPC vítima.9

3. Publicidade como direito fundamental

A ampla publicidade é a regra no direito administrativo. Apesar disso, sabe-se que não há direitos absolutos. Portanto, em casos muito específicos excepcionados pelo art.5º, LX da Constituição é exigida uma averiguação sigilosa. Essa inversão do preceito da publicidade, por evidente, só pode ocorrer nas hipóteses constitucionais de defesa de intimidade ou de interesse social.10

Tais procedimentos sigilosos de investigação logicamente são formados por uma sequência de atos administrativos secretos. É elementar, contudo, que esses atos secretos não provocam consequências jurídicas na esfera privada do cidadão. Recorde-se que uma parte substancial dos direitos fundamentais nasceram e se desenvolveram justamente para proteger o indivíduo de eventuais abusos do Estado. Assim, especialmente no que se refere à prescrição, não há como cogitar que o que ocorre sigilosamente nas entranhas da administração pública restrinja direitos fundamentais do cidadão.

Em situações parecidas, o STF já se manifestou várias vezes que não pode haver punição administrativa se o prazo prescricional entre o fato supostamente lesivo e a ciência do particular no processo administrativo for superado.11

Ao mesmo tempo, há diversas outras decisões do próprio STF que admitem a interrupção da prescrição independentemente da ciência do particular. Embora discordemos dessa interpretação, mesmo nesses casos, é exigida a “identidade entre as irregularidades investigadas e aquelas que futuramente venham a justificar o exercício da pretensão punitiva”.12

Ainda é certo que para aferir a existência de marcos interruptivos, em virtude do princípio do contraditório, a Previc deve instruir o processo administrativo com todos os documentos relativos aos fatos a que a fiscalização teve acesso.

Esse ônus abarca, até mesmo, documentos que a fiscalização acessou, mas não usou como fundamento da infração. Inclui, também, a integralidade do procedimento administrativo pré-processual de AFDE – Ação Fiscal Direta Específica e dos atos administrativos que o antecederam e fundamentaram sua instauração;

4. Projeto de lei 2481/22

Para aumentar a segurança jurídica quanto a esse tema e outros no processo administrativo no âmbito federal, está em trâmite o Projeto de lei 2481/22 que pretende reformar a lei 9.784/99. O anteprojeto da proposta foi elaborado por uma comissão de juristas e apresenta uma nova regra prescricional geral para o procedimento administrativo sancionador. Mais relevante para o tema deste artigo, privilegia o princípio da publicidade e determina que a pretensão punitiva tem a prescrição interrompida apenas por atos administrativos públicos.

Art. 68-J [..] §2º Interrompe-se a prescrição da pretensão punitiva da Administração Pública: I – pela intimação do acusado, inclusive por meio de edital;  II – pela decisão condenatória recorrível; III – por qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória no âmbito interno da Administração pública.  

Se houver êxito nessa proposta legislativa, estará definitivamente afastada a possibilidade de interpretar que um documento secreto possa ser considerado um ato inequívoco.

5. Conclusão

É dever da Previc,13 no exercício do poder punitivo do estado, observar os prazos prescricionais ao aferir se o administrador da EFPC falhou em seus deveres fundamentais de cuidado e lealdade.  Aliás, trata-se de matéria de ordem pública e sequer depende de provocação do interessado.

Destaque-se que a EFPC que pode ter sido vítima de um ato ilícito não integra relação de polaridade entre a pretensão punitiva do Estado e os direitos do cidadão. E, embora tenha o dever de cooperar com as investigações, a bem da verdade, na qualidade de suposta vítima não possui incentivo para colaborar na coleta de provas em defesa de um ex-administrador.

No plano teórico, pode mesmo haver um certo desinteresse em desviar recursos humanos que poderiam estar atuando na administração atual, para buscar documentos sobre processos decisórios de ex-administradores. Ao mesmo tempo, os ex-administradores, ao deixar a EFPC, perdem completamente sua possibilidade de obter documentos que possam servir de contraprova para as alegações da fiscalização.

Dito tudo isso, outro aspecto é potencialmente mais grave. Alguns processos sancionadores ainda em curso não atendem sequer aos alargados requisitos do “ato administrativo secreto idôneo” para interrupção da prescrição.

Esses processos merecem um olhar atento, pois parecem desperdiçar recursos públicos quando o poder da ação punitiva do estado está manifestamente prescrito. Portanto, seriam atos irracionais, ineficientes e antieconômicos.

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1 [Art. 32 do Decreto 4.942/2003 e §1º do Art. 1º da Lei 9.873/99.]

Dec. 4.942/2003. Art. 32. Ocorre a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, sendo os autos arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.

Lei 9.873/99. Art. 1º [...] § 1º Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.

2 https://www.migalhas.com.br/amanhecidas/332517/migalhas-n--4-924 

3 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

4 Portanto, antes da lavratura do auto de infração não há processo administrativo, que é, conforme o citado art. 2º, “o instrumento a apura responsabilidade de pessoa física ou jurídica, por ação ou omissão, no exercício de suas atribuições ou competências”. Sendo assim, conclui-se que o processo administrativo é “o” único meio legítimo de apuração de responsabilidade previsto na legislação. Tal entendimento decorre ainda do artigo 66 da Lei Complementar 109/2001, que estabelece o seguinte: “As infrações são apuradas mediante processo administrativo [...] Logo, somente há uma forma de apuração das infrações à legislação regente das entidades fechadas de previdência complementar, qual seja o processo administrativo, nos termos do Decreto 4.942/03 (regulamento a que se refere o artigo 66), que expressamente prevê o seu início somente com a lavratura do auto de infração ou a instauração do inquérito administrativo. Ademais, não se admite apurações de conduta à margem do contraditório e da ampla defesa, que somente podem ser exercidos quando o processo administrativo já estiver instaurado.[...] se não há como o Estado exercer seu poder punitivo fora do processo administrativo, também não há como ser interrompida a prescrição por ato senão no âmbito do processo administrativo.

https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/camara-de-recursos-da-previdencia-complementar/consulta-a-jurisprudencia-e-legislacao-aplicavel/integra-dos-acordaos/processos/03a-re-44000-002786-2007-50.pdf/@@download/file/03%C2%AA%20RE%20-%2044000.002786.2007-50.pdf

5 CRPC (implicitamente no 44011.000865/2017-7); TRF-1 0010028-61.2011.4.01.3400 (colacionado na decisão como fundamento); e da própria Previc [44011.000865/2017-79 (quando lhe interessou)] 

6 Em alguns casos muito específicos previstos em lei (art.5º, LX da CF) é exigida uma averiguação sigilosa. Tais procedimentos sem o conhecimento do investigado, por evidente, são formados por uma sequência de atos administrativos. Contudo, esses atos não provocam consequências jurídicas na esfera privada do cidadão. 

7 Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto a Previc – Procurador Federal Fábio Lucas de Albuquerque Lima, ao ministrar aula transmitida ao vivo pela Escola da AGU em 24/08/2021. [Com a presença do Diretor Superintendente da Previc Fábio Capelletto] 

www.youtube.com/watch?v=_TigEirZNWA&t=4813s 

8 Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto a Previc – Procurador Federal Fábio Lucas de Albuquerque Lima, ao ministrar aula transmitida ao vivo pela Escola da AGU em 24/08/2021. [Com a presença do Diretor Superintendente da Previc Fábio Capelletto] www.youtube.com/watch?v=_TigEirZNWA&t=4813s

9 “Requisitos mínimos como o objeto (ou investimento) específico de análise, data de expedição, assinatura de autoridade competente e comprovação de entrega se fazem imprescindíveis para a sua validade, de modo a torná-lo idôneo à interrupção do prazo prescricional” CRPC 44011.002085/2018-44.https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/camara-de-recursos-da-previdencia-complementar-2013-crpc/arquivos/44011.002085201844.pdf

10 Art. 5º LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

11 MS 36.477/DF, 21.06.2019. http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340481838&ext=.pdf; MS 35.971/DF, 14.02.2019. http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339530801&ext=.pdf; MS 35.294/DF, 06.03.2018. http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313847728&ext=.pdf; MS 32.201/DF 16.10.2013 http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=177746697&ext=.pdf; MS 37751/DF, 23.03.2022 https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15350299330&ext=.pdf 

12. A interrupção da prescrição por ato inequívoco que importe apuração do fato exige identidade entre as irregularidades investigadas e aquelas que futuramente venham a justificar o exercício da pretensão punitiva. [MS 37772 AGR/DF 22.11.2022] https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/obterInteiroTeor.asp?idDocumento=764458804 

13 Dec. 4.942 Art. 39. [...] a Secretaria de Previdência Complementar decidirá: I - pelo arquivamento, se concluir pela prescrição [...]

14 GOMES DOS SANTOS, Renato de Mello,  Do que devemos falar antes de processar um administrador de EFPC? Revista da ABRAPP maio/junho 2021 p.47/50 https://biblioteca.sophia.com.br/terminal/9147/VisualizadorPdf?codigoArquivo=56052

Renato de Mello Gomes dos Santos
Mestre em Direito dos Contratos e da Empresa - Universidade do Minho - Braga; MBA Gestão de Negócios IBMEC; Graduado UFRJ; Pós-Graduado - Direito Consumidor - EMERJ; Advogado no Brasil e em Portugal

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