Anteriormente à Constituição Federal de 1988, como órgão de cúpula da justiça comum, existia tão somente o Supremo Tribunal Federal que, via recurso extraordinário, fazia o controle e uniformização na interpretação do direito constitucional e/ou infraconstitucional, não sendo difícil a qualquer um imaginar o grande volume de feitos a ele dirigido, razão por que, com a Constituição Federal de 1988, pretendeu-se superar referido obstáculo com a criação do Superior Tribunal de Justiça.
Com o novo tribunal, o Supremo Tribunal Federal transformou-se em corte predominantemente constitucional, deixando para o Superior Tribunal de Justiça todas as causas de direito infraconstitucional, anotado que a criação deste novo tribunal era algo que já vinha sendo discutido pela comunidade jurídico-legislativa.
Com efeito, o pleito de criação da Corte Nacional remonta ao ano de 1965, quando a FGV realizou uma mesa redonda em torno do tema, surgindo a proposta apresentada pelo Professor Miguel Reale. Em 1975 o assunto voltou a ser ventilado pelo Ministro Aliomar Baleeiro, do Supremo Tribunal Federal e em 1976 o Tribunal Federal de Recursos encaminhou ao Congresso Nacional um anteprojeto de Reforma do Judiciário em que era proposta a descentralização da Justiça Federal, com a criação dos Tribunais Regionais Federais, ao tempo em que era destacada a imprescindível criação de um órgão uniformizador do Direito Federal. Assim, ao instalar-se a Assembléia Nacional Constituinte em 1987, já havia um consenso quanto à criação de um tribunal nacional: o nosso Superior Tribunal de Justiça.
O STJ atualmente é composto de, no mínimo, trinta e três membros, nomeados pelo Presidente da República, dentre brasileiros com mais de 35 (trinta e cinco) anos e menos de 65 (sessenta e cinco), de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal (art. 104 e parágrafo único da CF/1988). Um terço dos membros do STJ é formado de juízes dos Tribunais Regionais Federais, um terço de desembargadores dos Tribunais de Justiça e um terço, em partes iguais, dentre advogados e membros do Ministério Público Federal, Estadual e do Distrito Federal, exigindo-se que, em qualquer escolha, tenha o representante mais de dez anos de efetiva atividade profissional.
O Superior Tribunal de Justiça tem sua competência explicitada na CF/88, art. 105 e para fins do presente estudo interessa-nos primeiramente a competência do Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos chamados recursos especiais.
O que é recurso especial?
É o recurso extraordinário, porém voltado à matéria infraconstitucional, exigido à sua prosperidade pressupostos gerais, que são:
a) existência de causa decidida em única ou última instância pelos Tribunais;
b) existência de questão federal, como explicitado nas alíneas do inciso III do art. 105 da CF/88; e
c) prequestionamento explícito das questões ventiladas no recurso, na decisão impugnada.
Além de tais pressupostos gerais, há outros mais específicos encontrados nas alíneas do inciso III do art. 105 da Constituição Federal, os quais preveem o cabimento de recurso especial quando a decisão recorrida:
(a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
(b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal e;
(c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
Este último pressuposto específico, aliás, é o mais problemático de todos e que até hoje, ultrapassados quase 35 anos da criação do Superior Tribunal de Justiça, é causa de verdadeira crise de identidade da corte.
De fato, ao interpor recurso especial por divergência jurisprudencial, pretende o recorrente, em verdade, que prevaleça a interpretação dada à lei pelo acórdão paradigma, porque aquela está correta e a do acórdão recorrido, errada, não sendo demais dizer que para que o recorrente se valha do presente permissivo constitucional é preciso que haja acórdão tratando de situação fática semelhante e que tenha dado interpretação diversa ao direito.
Sob essa ótica, é possível afirmar que a finalidade imediata do recurso especial pela divergência é a uniformização interpretativa acerca de um mesmo dispositivo de lei federal, tendo por escopo a preservação da ordem pública, no que diz respeito à manutenção da unidade do ordenamento jurídico, bem como a manutenção da segurança das relações jurídicas. Não se pode olvidar, destarte, que o recurso especial exerce função de cunho político, ao tornar único o sentido da lei. De maneira mediata, visa o recurso especial pela alínea “c” à tutela de interesses próprios dos litigantes, por meio da fixação da exegese que lhe seja mais conveniente.
Manutenção da unidade do ordenamento jurídico e órgão uniformizador do direito federal foram, pois, expressões acima utilizadas e que refletem a razão de ser do Superior Tribunal de Justiça em nosso direito pátrio, mas que carregam, como também já explicitado, a causa da crise de identidade por que passa esse mesmo Superior Tribunal de Justiça ao ferir de morte a autonomia dos Estados-Membros.
Explica-se.
Dotadas de autonomia e, pois, da capacidade de autoadministração, as entidades federativas têm, por via de consequência, as suas próprias Administrações, ou seja, sua própria organização e seus próprios serviços, inconfundíveis com o de outras entidades.Nesse contexto, mostra-se no mínimo incoerente, a pretexto de unificar o direito nacional, o Superior Tribunal de Justiça suprimir a possibilidade de o Estado-Membro, exercendo a capacidade política e de autoadministração, de dizer o direito. Em outras palavras, porém mais diretas: trata-se de supressão do poder do Estado-Membro do exercício do poder jurisdicional, pois aos Estados são reservados todos os poderes que não lhes sejam vedados pela Constituição (art. 25, § 1º).
Ora, a autonomia estadual decorre da Constituição Federal, fonte matriz do Poder Constituinte Estadual, que estabelece uma série de princípios e vedações a serem observados pelos Estados federados na sua organização, razão por que possibilitar que o Estado exerça o Poder Jurisdicional e ao mesmo tempo coarctá-lo via Superior Tribunal de Justiça não nos parece nada razoável, ainda que constitucionalmente previsto.
Dir-se-ia que o quanto acima exposto é discussão meramente acadêmica, sem maiores reflexos práticos. Ledo engano.
Foi noticiado na imprensa especializada1que metade dos habeas corpus impetrados no STJ em julho de 2.020 tinha como origem o Estado de São Paulo e a isso não pode ser dada outra explicação senão o fato de não ter a parte interesse em fazer uso do recurso especial, que tem pressupostos gerais e específicos mais rígidos, com trâmite muito mais demorado, preferindo assim fazer uso do habeas corpus, que, pela sua celeridade e singeleza de rito, é bem mais fácil de ser manejado.
Num desses habeas corpus2, o relator em seu voto e mesmo na ementa constou considerações sobre a necessidade de uma atuação mais harmônica do Poder Judiciário e o aumento estatístico das impetrações de habeas corpus ano após ano. Disse ainda: “... alguma coisa está errada e ... precisamos mudar”.
Em julho, durante o recesso judicial, o Superior Tribunal de Justiça recebeu o número recorde de 8.451 habeas corpus. Segundo o ministro Schietti, 4.472 eram oriundos do Estado de São Paulo e fazendo uso das palavras do Ministro Sebastião Reis Junior: “... a discordância do Tribunal de Justiça de São Paulo com Superior Tribunal de Justiça só tem aumentado nos últimos anos".
E o Ministro Antonio Saldanha Palheiro: "... o que vemos em São Paulo é a reiteração permanente de descumprir, uma afronta realmente em nome do livre convencimento motivado. São fundamentos usados no Direito artesanal, não no Direito de massa que vivenciamos hoje. Esse tipo de posicionamento acaba por trazer um retrocesso para o sistema jurídico como um todo".
Segundo o Ministro Schietti: “... Não é possível que cada Estado interprete o Código Penal e de Processo Penal à sua maneira. Não é possível que tenhamos tantos Códigos Penais quanto temos de Estados. A geografia não pode determinar o Direito".
A discussão não é meramente acadêmica, pois.
A impressão que se tem para quem milita na área criminal e não se aprofunda no tema é que há algo realmente acontecendo entre os Estados-Membros e o Superior Tribunal de Justiça, não mentindo os números de habeas corpus lá impetrados, mas não é por outro motivo que escrevemos acima que a percepção de crise sentida pelos Ministros em seus dizeres não é fruto de elocubrações ou divagações. É algo realmente que está a acontecer, mas que tem na criação do Superior Tribunal de Justiça a causa de verdadeira crise de identidade da corte.
Como expusemos, o Superior Tribunal de Justiça foi criado para desafogar o Supremo Tribunal Federal, mas ao se postar como órgão último de interpretação e de unificação do direito e da jurisprudência do Brasil, como se isso fosse possível, acabou por ter a ele transferido todos os antigos problemas de volume e de divergência de posições.
Não é difícil de entender a perplexidade de quem não se debruça sobre o tema e acredita que magistrados de todo o país devam julgar segundo critérios previamente definidos.
As coisas não funcionam nem devem funcionar de tal forma, pois a autonomia do Poder Judiciário é condição sine qua non para exercer com eficiência sua finalidade central, chegando a ser tratada referida autonomia como garantia fundamental e até institucional da independência judicial e é por isso que chega a causar estranheza a argumentação segundo a qual o Estado não poderia interpretar o Código Penal e de Processo Penal à sua maneira.
A pretensão constitucional do Superior Tribunal de Justiça de ser o órgão uniformizador do direito federal foi e é a causa de seu problema, pois em assim sendo desconsidera princípio maior da Constituição Federal, que é o da autonomia dos Estados-Membros.
Segundo alegam os Ministros, a insistência de tribunais locais e juízes de primeira instância em reiteradamente desconsiderar posicionamentos pacificados no âmbito tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto do Supremo Tribunal Federal dá a entender que a função constitucional dessas cortes, de proferir a última palavra quanto à legislação federal (STJ) e quanto à Constituição (STF), é desnecessária, tornando letra morta os arts. 105, III, e 102, I, 'a', e III, do texto constitucional e aqui não se citam os números de habeas corpus impetrados, pois estes já o foram linhas acima, mas o que mais impressiona é que o percentual de habeas corpus concedidos integralmente ou em parte, que em 2015 era de apenas 21%, chegou a 48% em 2019, o que permite concluir, no caso do Estado de São Paulo, a discordância da corte bandeirante com o STJ só tem aumentado ao longo dos últimos anos.
Mas sobre que tratam tantos habeas corpus impetrados? Será que o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de seus Desembargadores da Seção Criminal, erra tanto assim em seu mister de julgar a ponto de quase metade dos habeas corpus impetrados merecer acolhimento?
Demoramos um pouco, mas enfim chegamos aonde queríamos chegar.
Grande parte dos habeas corpus impetrados no Superior Tribunal de Justiça referem-se a casos de tráfico de entorpecentes, que, não por mera coincidência, lidera o ranking dos delitos mais comuns entre os detentos do país, considerando as pessoas já condenadas e os presos provisórios em estudo feito no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2019, divulgado em fevereiro de 2.0203 pelo governo federal.
O estudo traçou um perfil da população carcerária e constatou um crescimento de quase 4%, chegando a 773 mil pessoas em junho de 2019 e nesse contingente há 163,2 mil incidências de crimes de tráfico de drogas.
De fato, segundo documento divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)4, cerca de 275 milhões de pessoas usaram drogas no mundo no último ano enquanto mais de 36 milhões sofreram de transtornos associados ao uso de drogas, apontando referido documento que, durante os últimos 24 anos, a potência da maconha aumentou em até quatro vezes em algumas partes do mundo. Apesar de a porcentagem de adolescentes que perceberam a droga como prejudicial ter caído em até 40%, persistem evidências de que o uso da maconha está associado a uma variedade de danos à saúde, sendo os mais afetados os usuários regulares a longo prazo.
Em pesquisas com profissionais de saúde em 77 países, 42% afirmaram que o uso da maconha aumentou durante a pandemia e com base apenas nas mudanças demográficas as projeções atuais sugerem um aumento de 11% no número de pessoas que usam drogas globalmente até 2030.
Apenas para fins de registro, os mercados de drogas na dark web5 surgiram há apenas uma década, mas os principais mercados valem agora pelo menos US$315 milhões em vendas anuais. Embora essa seja apenas uma fração das vendas globais de drogas, a tendência é de crescimento com um aumento de quatro vezes entre 2011 e meados de 2017 e meados de 2017 até 2020.
A rápida inovação tecnológica, combinada com a agilidade e adaptabilidade daqueles que utilizam novas plataformas para vender drogas e outras substâncias, provavelmente abrirá um mercado globalizado onde todas as drogas estarão mais disponíveis e acessíveis em todos os lugares, a desencadear mudanças aceleradas nos padrões do uso de drogas e acarretar implicações para a saúde pública, tudo isso sem se olvidar que após a interrupção inicial dada pela pandemia os mercados mercados de drogas retomaram rapidamente as operações, a demonstrar a capacidade dos traficantes de se adaptarem rapidamente a ambientes e circunstâncias diferentes.
Embora o impacto da COVID-19 nos desafios das drogas ainda não seja totalmente conhecido, a pandemia trouxe dificuldades econômicas crescentes que provavelmente tornarão o cultivo de drogas ilícitas mais atraente e fatalmente levarão mais pessoas a consumirem drogas e obviamente mais pessoas a venderem drogas.
É a velha lei da oferta e da procura.
Esse contexto não foi e não é ignorado pela corte de justiça paulista e talvez cause mesmo perplexidade no Superior Tribunal de Justiça, calhando à fiveleta registrar o mais recente dissídio em casos envolvendo tráfico de drogas e invasão domiciliar entre esses dois tribunais.
Segundo recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, o consentimento do morador para a entrada dos policiais no seu imóvel será válido apenas se documentado por escrito e, ainda, for registrado em gravação audiovisual, já consolidado o entendimento na corte superior de que provas obtidas por ingresso em domicílio sem consentimento documentado são ilegais.
O entendimento, fixado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC 598.051/SP, foi reafirmado recentemente pela corte em três decisões que anularam provas obtidas por meio de ingresso ilegal em domicílio por parte de agentes de segurança.
Segundo divulgado no site do Superior Tribunal de Justiça, em decisão de 21 de março de 2.022, o ministro Ribeiro Dantas não deu provimento a Habeas Corpus em favor de um homem condenado por posse ilegal de arma de fogo. O julgador, contudo, aplicou o entendimento da 6ª Turma para declarar — de ofício — as provas obtidas por busca domiciliar ilegais em razão de não haver comprovação de que a autorização do morador tenha sido livre e sem vício de consentimento. Diante disso, reconheceu a ilegalidade da busca domiciliar e determinou a expedição de alvará de soltura6.
Também no dia 21, o ministro Ribeiro Dantas declarou nulas provas obtidas por ingresso ilegal em domicílio e determinou a soltura de um réu condenado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais por tráfico de drogas com base no mesmo precedente7. Antes disso, no dia 18, o ministro Rogério Schietti decidiu revogar decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que havia negado provimento ao HC 0070050- 17.2021.8.19.0000, que pedia o trancamento da ação penal por ilicitude das provas obtidas por violação de domicílio por policiais. Na decisão, o ministro lembrou que o Plenário do Supremo Tribunal Federal já havia fixado o entendimento de que "a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparadas em fundadas razões", asseverando que as fundadas razões para ingresso de agente de segurança pública em residência alheia devem ter lastro em circunstâncias objetivas, no atual ou iminente cometimento de crime no local onde ocorre a diligência policial.
No caso concreto, os policiais receberam informações sobre a existência de drogas no interior da residência do réu. Quando questionado, o acusado teria confessado o fato e autorizado o ingresso dos agentes, soando ao Ministro inverossímil a versão policial, ao narrar que o réu, sem nenhum motivo, haveria espontaneamente confessado ter mais drogas em casa, levado os policiais voluntariamente até lá e franqueado a entrada em seu domicílio8.
Para o leitor mais afeito ao cotidiano das varas criminais da justiça comum, os casos acima são mais do que corriqueiros, pois isso é o que se vê todos os dias e se assim o é, a levar a ferro e fogo o quanto decidido pelo Superior Tribunal de Justiça e realmente não haverá nada mais que justifique ações penais por crimes de tráfico de entorpecentes derivadas de ações policiais com invasão domiciliar, a se ter a diretriz jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça como norte a ser seguido.
Sob pena de ser repetitivo, o tema da legalidade das provas decorrentes de entrada em domicílio sem autorização judicial é recorrente no Superior Tribunal de Justiça, pois o tráfico de drogas é crime praticado às escondidas, necessitando, pois, muitas vezes da pronta e imediata ação policial e de fato é bastante comum e até compreensível que ao ser detido por tráfico de drogas acabe por confessar, ainda que informalmente, o agente a existência de mais drogas em outras localidades.
Não se está aqui a incentivar práticas ilegais por parte da força pública, mas é de se convir haver exagero demasiado no entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça ao entender ilícita, v.g., a invasão nas hipóteses em que a abordagem é motivada por fuga de ronda policial9 ou mesmo de suspeito que correu do portão ao ver a viatura ou quando a autorização para invasão foi dada por moradores outros da residência. Em tais casos, é mais do que evidente que a entrada forçada em domicílio decorreu de uma situação prévia que a justificava, nos termos aliás do que preconiza a tese esposada no julgamento do RE 603.616/RO10.
Não são exemplos cerebrinos, portanto.
São casos reais em que foi a ordem concedida para o fim de declarar a ilicitude da prova, dando-se, pois, ensejo à absolvição do agente apenas e tão somente porque se entendera de forma diversa da jurisprudência dominante do Poder Judiciário do Estado-Membro.
Mas e quando a polícia efetua a busca pessoal motivada apenas pela impressão subjetiva sobre a aparência ou atitude suspeita do indivíduo, sem que se cogite de invasão domiciliar?
Para a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ainda assim é ilícita a prova, tendo os ministros em determinado caso considerado que à revista pessoal é necessário que a fundada suspeita a que se refere o art. 244, do Código de Processo Penal seja descrita de modo objetivo e justificada por indícios de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou outros objetos ilícitos, evidenciando-se a urgência para a diligência.
De outro modo, segundo o ministro relator, seria dado aos agentes de segurança um "salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias baseadas em suspeição genérica", sem relação específica com a posse de itens ilícitos.
Não se lê, entretanto, em tais acórdãos nada acerca do poder de polícia, importante instituto do Direito Administrativo e que, salvo melhor juízo, parece realmente ter morrido quando se está a estudar a atividade policial propriamente dita.
Conforme ensinamentos de alguns doutrinadores que abordam esse tema, o chamado poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado11.
De fato, o poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas a Administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequando, direitos e liberdades individuais.
É evidente que a polícia ao efetuar a busca pessoal num determinado cidadão não o faz pelo simples fato de ser negro, branco, amarelo ou porque torce para determinado clube de futebol ou ainda porque é de direita, centro ou esquerda. A polícia assim o faz, porque sabe de antemão quais são as regiões perigosas na área de seu patrulhamento, quais são as localidades em que o tráfico de drogas campeia, sabe que olheiros e traficantes agem de determinada forma em dada localidade, sabe que no mais das vezes usam pochetes, mochilas ou sacoletas com pouca quantidade da droga, assim o fazendo justamente para evitar perda maior de entorpecente em caso de abordagem policial, escondendo o restante em barracos desabitados, muros e buracos e sabe também qual é o modus operandi de quem está a traficar drogas e se depara de forma repentina com a presença da polícia em seu meio.
Toda profissão traz um substrato teórico, mas também um substrato prático e é o dia-a-dia que faz com o que profissional ao longo de sua carreira adquira a chamada experiência, a qual se não pode ser dimensionada em aspectos teóricos também não pode ser descartada, como se não representasse nada.
A famosa “atitude suspeita” tão proclamada em depoimentos policiais em verdade decorre da “expertise” de quem está a patrulhar e a zelar pela segurança pública e se goza de certa subjetividade também é permeada de alguma objetividade, pois, v.g., se o policial está a divisar alguém e este alguém busca escapar o olhar de forma repentina ou ainda muda repentinamente o sentido de direção em que caminha na via pública ou mais ainda passa a andar em passos mais rápidos ou até a correr e é evidente que está a demonstrar tratar-se de pessoa suspeita e que está a merecer ser abordada. Naquele momento em que de forma objetiva demonstrou com seu comportamento a quem o olhava uma atitude anormal deve sim seu direito constitucional à intangibilidade física ceder em benefício da coletividade ou do próprio Estado.
É assim que funciona o poder de polícia e é assim que deve funcionar.
Abusos devem sim ser coibidos, mas o exercício regular do poder de polícia não pode ser coibido, pena de, em assim sendo, ser absolutamente deixada ao léu a segurança da coletividade.
Não é o que se deseja e não é o que se espera, mas é o que se tem visto ao ser questionada a abordagem policial ocorrida em favelas e locais conhecidos pelo tráfico de drogas e por mais que o policial se explique e o que se tem visto em tais precedentes é que no mais das vezes o subjetivismo presente e perfeitamente compreensível naquelas situações não é aceito ainda que haja alguma carga de objetividade presente.
A ideia defendida de que não seria possível que cada Estado interpretasse o Código Penal e de Processo Penal à sua maneira esbarra na própria característica do ser humano de mudar de opinião quando é necessário.
De fato, o precedente jurisprudencial não é imutável e pode, a depender da mudança dos julgadores e mesmo da orientação de seus membros, sofrer alterações, nada impedindo, pois, que seja respeitado o precedente se este é amplamente utilizado pela corte estadual ou mesmo por outra corte.
Foi o que aconteceu no próprio Superior Tribunal de Justiça em precedente que possivelmente será aplicado a milhares e milhares de casos e justamente porque se refere a caso de tráfico de entorpecentes e aí já é de se indagar o que deveria ser feito em relação aos outros milhares e milhares de casos anteriores que motivaram impetração de habeas corpus porque eram baseados em precedente até então não autorizado pelo Superior Tribunal de Justiça e que agora passam a ser acolhidos.
Confira-se:
Tráfico de drogas. Causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da lei 11.343/06. Diretrizes firmadas no EREsp 1.887.511/SP. Uso apenas supletivo da quantidade e natureza da droga na terceira fase da dosimetria. Revisão de posicionamento. Manutenção do entendimento consolidado há anos pelas Cortes Superiores, acolhido no ARE 666.334/AM pelo STF. Expressiva quantidade de droga apreendida. Único elemento aferido. Modulação da causa de diminuição. Possibilidade.
“É possível a valoração da quantidade e natureza da droga apreendida, tanto para a fixação da pena-base quanto para a modulação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06, neste último caso ainda que sejam os únicos elementos aferidos, desde que não tenham sidos considerados na primeira fase do cálculo da pena.” (HC 725.534-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Terceira Seção, por maioria, julgado em 27/04/2022).
Embora o precedente acima citado não se refira a trancamento de ação penal por questões relacionadas à ilicitude da prova, como cuidamos de exemplificar linhas acima, é certo todavia que milhares e milhares de habeas corpus impetrados nas cortes superiores cuidam justamente da questão relacionada à dosimetria da pena quando da análise da figura do tráfico privilegiado e passados quase 20 anos da edição da lei 11.343/06 e até hoje não se pacificou entendimento do que se deve fazer em relação à dosimetria da pena, o que, aliás, se deve à péssima redação de tal figura legislativa.
Com efeito, o chamado tráfico privilegiado é, na realidade uma causa de diminuição de pena (natureza jurídica), pois o referido texto legal (art. 33, §4º, da Lei nº 11.343/06) determina que no crime de tráfico de entorpecentes e em outras figuras delitivas as penas podem ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Assim, à aplicação da referida causa de diminuição de pena é necessário que o acusado seja primário, isto é, não seja reincidente, de bons antecedentes, parecendo, pois, ao legislador não bastar a primariedade, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa, ou seja, não esteja envolvido na criminalidade, mesmo nunca tendo respondido a um processo criminal.
A grande questão e que causa absoluto caos na jurisprudência é saber como dimensionar o grau de redução de pena (1/6 a 2/3) e determinar se a quantidade de droga apreendida pode servir ou não como baliza à fixação do redutor da pena, mormente quando esta já foi utilizada na primeira fase da dosimetria da pena, pois há quem entenda que a grande quantidade de drogas é indicativo de dedicação à atividade delituosa e/ou integração à organização criminosa, sabido que a traficantes de primeira viagem não se confia grande quantidade de droga.
Para outros, todavia, haveria bis in idem, ou seja, levar em conta duas vezes a mesma circunstância. Esse, inclusive, foi o entendimento do Min. Gilmar Mendes no julgamento do HC 108.513/RS, segundo o qual a quantidade e a qualidade de droga apreendida são circunstâncias que devem ser sopesadas na primeira fase de individualização da pena, nos termos do art. 42 da lei 11.343/06, sendo impróprio invocá-las por ocasião de escolha do fator de redução previsto no § 4º do art. 33, sob pena de bis in idem.
A questão assim está longe de ser pacificada e é objeto de discussão na Terceira Seção daquele mesmo Superior Tribunal de Justiça, pois no julgamento do EREsp 1.887.511/SP, da Relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, foram fixadas as seguintes diretrizes para a aplicação do art. 33, § 4º, da lei 11.343/06:
"1 - A natureza e a quantidade das drogas apreendidas são fatores a serem necessariamente considerados na fixação da pena-base, nos termos do art. 42 da lei 11.343/06.
2 - Sua utilização supletiva na terceira fase da dosimetria da pena, para afastamento da diminuição de pena prevista no § 3º do art. 33 da lei 1.343/16, somente pode ocorrer quando esse vetor conjugado com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do agente à atividade criminosa ou a integração a organização criminosa.
3 - Podem ser utilizadas para modulação da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da lei 11.343/06 quaisquer circunstâncias judiciais não preponderantes, previstas no art. 59 do Código Penal, desde que não utilizadas na primeira etapa, para fixação da pena-base".
Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, a fim de querer harmonizar seus julgados com o quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal, propôs a revisão das orientações estabelecidas nos itens 1 e 2 do EREsp 1.887.511/SP, especificamente em relação à aferição supletiva da quantidade e da natureza da droga na terceira fase da dosimetria, pois no julgamento do ARE 666.334/AM, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Pleno do STF, em análise da matéria reconhecida como de repercussão geral, reafirmou a jurisprudência de que "as circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena". O resultado do julgado foi assim proclamado: "Tese: As circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena. Tema 712: Possibilidade, em caso de condenação pelo delito de tráfico de drogas, de valoração da quantidade e da natureza da droga apreendida, tanto para a fixação da pena-base quanto para a modulação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06".
É dizer: a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está longe de estar pacificada, ainda mais porque no caso em questão mudou apenas e tão somente para se ajustar ao que vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal Federal, a justificar mais do que nunca a nossa crítica a essa idealização de uma jurisprudência nacional e que não respeita o entendimento das jurisprudências dos Estados-Membros.
Dir-se-ia que nossa posição seria infundada porque não respeita o quanto é previsto no texto constitucional em relação à missão do Superior Tribunal de Justiça, mas a esse respeito cumpre dizer que a utilização de habeas corpus como vetor de unificação de jurisprudência escapa a qualquer previsão constitucional e somente assim se faz por conta do mau uso que dele se faz.
Veja-se e aqui mais uma vez se faz referência à questão da invasão da polícia a fim de coletar provas que a Quinta Turma do STJ, no bojo do HC 616.584, ratificou o entendimento de que, não havendo mandado judicial, cabe ao Estado demonstrar o consentimento expresso do morador para o ingresso de policiais em sua casa.
No caso em questão, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou legal a busca domiciliar, entendendo ser dispensável a apresentação do mandado judicial, em razão da natureza permanente do delito de tráfico de drogas. Além disso, a corte acolheu o argumento de que houve a autorização dos moradores para o ingresso policial, mas o Relator Ministro Ribeiro Dantas discordou do posicionamento da corte estadual e em seu voto citou precedentes do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a justa causa para a realização de busca domiciliar deve decorrer de algumas situações, como, por exemplo, o monitoramento prévio do local para constatar a veracidade de denúncia anônima quanto à movimentação atípica de pessoas e à suspeita de venda de drogas na residência. O Ministro destacou ainda em seu voto que, para salvaguarda dos direitos dos cidadãos e para a proteção da própria polícia, é impositivo que os agentes estatais façam o registro detalhado no ingresso em domicílio, com autorização por escrito do morador, a indicação de testemunhas da ação e a gravação da diligência em vídeo, dizendo por fim que no caso de confronto sobre consentimento, entre a versão policial e a versão do morador, essa dúvida não pode ser resolvida em favor do Estado, tendo em vista as situações de constrangimento ilegal que costumeiramente ocorrem contra a população mais pobre.
Como tivemos oportunidade de afirmar, é evidente que a polícia ao efetuar a busca pessoal ou domiciliar não o faz pelo simples fato do agente ser negro, branco, amarelo ou porque torce para determinado clube de futebol ou ainda porque é de direita, centro ou esquerda ou ainda porque é pobre ou rico. A polícia assim o faz, porque sabe de antemão quais são as regiões perigosas na área de seu patrulhamento, quais são as localidades em que o tráfico de drogas campeia, sabe que olheiros e traficantes agem de determinada forma em dada localidade, razão por que ao optar o julgador por aquela versão que mais atende à versão da defesa apenas e tão somente por argumentos sociológicos nada mais estará fazendo do que criar direito a seu talante e sem qualquer respaldo legal numa típica cena de ativismo judicial.
Não se trata de argumentação retórica, pois no caso em questão o Ministro Ribeiro Dantas concedeu o habeas corpus, lembrando, ainda, que a Sexta Turma estabeleceu o prazo de um ano para o aparelhamento das polícias, o treinamento dos agentes e demais providências necessárias para evitar futuras situações de ilicitude que possam, entre outras consequências, resultar em responsabilização administrativa, civil e penal dos policiais, além da anulação das provas colhidas na investigação.
Repita-se: em decisão de habeas corpus foi determinado que fossem as polícias aparelhadas no prazo de hum ano.
Mais não é preciso dizer, tamanho o descabimento e desproporção da determinação judicial e o meio pelo qual ela se fez presente.
A nosso ver, o instituto do habeas corpus, da forma como é manejado nas cortes superiores, reclama urgente mudança e qualquer mudança que se intente fazer no sistema recursal nacional deverá no mínimo por ele passar, pois de nada adianta criar recursos, súmulas, temas, ações constitucionais, taxas ou depósitos recursais e afins se em última instância remanescer o habeas corpus impetrado nas cortes superiores como válvula de escape para o velho decisionismo judicial12 usurpador da autonomia dos Estados Membros como se tem visto e como tem sido feito pelas cortes superiores.
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1 Habeas Corpus: sintomas e doenças.
2 Trata-se do Habeas Corpus nº 500.080/SP
3 Os dados da população carcerária no Brasil são atualizados e estão sempre disponíveis no site do DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional.
4 O relatório mundial sobre sobre Drogas elaborado pela ONU é documento importante a ser analisado, evitando-se assim impressões desprovidas de argumentação séria.
5 Dark Web é o coletivo oculto de sites da Internet que só podem ser acessados com um navegador de Internet especializado. Ela é usada para manter atividades anônimas e privadas na Internet, algo que pode ser útil em contextos legais e ilegais. Embora algumas pessoas a utilizem para evitar a censura do governo, sabe-se que ela também é empregada para atividades altamente ilegais.
6 Trata-se do HC nº 721.215
7 Trata-se do HC nº 158.140
8 Trata-se do HC nº 160.337
9 Trata-se do HC nº 720.178, obviamente originário de São Paulo
10 O Supremo Tribunal Federal, apreciando o tema 280 da repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Relator, negou provimento ao recurso e fixou tese nos seguintes termos: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.
11 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2.002, p.127.
12 Essa é a síntese do decisionismo: a total perda do valor das normas jurídicas como balizadoras dos pronunciamentos judiciais. A substituição da lei, que, bem ou mal, ainda é produto do que nos resta da democracia, pelas preferências do julgador.
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ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Atlântica Editora, 1951.
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