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O Trust no direito brasileiro: novo regime geral da fidúcia

O trust é comumente incorporado como um valioso instrumento de planejamento sucessório e patrimonial, especialmente em função das proteções legais garantidas ao patrimônio colocado sob este regime.

25/11/2022

No último mês, foi recebido pelo Senado Federal, para apreciação, o Projeto de lei 4.758/20, aprovado pela Câmara dos Deputados em 02/08/22, que estabelece o regime geral da fidúcia no direito brasileiro e regulamenta as regras aplicáveis aos contratos dessa natureza. A fidúcia é um instituto jurídico baseado na confiança e na boa-fé, por meio do qual o proprietário de um bem ou titular de um direito, denominado fiduciante, destina-o para uma finalidade específica, transmitindo-o a um terceiro, denominado fiduciário, que o recebe com o encargo de administrá-lo, em benefício do próprio fiduciante, ou alguém por ele indicado, doravante beneficiário.

A fidúcia, na sua origem, em muito se assemelha com a figura do trust, típico instrumento jurídico há muito tempo utilizado no direito internacionala. O trust é comumente incorporado como um valioso instrumento de planejamento sucessório e patrimonial, especialmente em função das proteções legais garantidas ao patrimônio colocado sob este regime.

No Brasil, algumas operações envolvendo transmissões fiduciárias já são objeto de normas em vigor, como por exemplo, o financiamento, a incorporação imobiliária e as operações de crédito com garantia real. Suas disciplinas, na maioria dos casos, visam proteger o patrimônio daquele que o confia à gestão de terceiros, para um fim específico, de forma a compensar a posição de vulnerabilidade do proprietário do bem. O PL 4.758/20 busca, nesse contexto, unificar a sistematização da matéria em um único texto legal, sem, contudo, revogar as normas vigentes, que permanecerão regulamentando em primazia seus respectivos objetos, aplicando-se subsidiariamente as regras do referido projeto de lei, caso aprovado.

O objetivo do regime geral da fidúcia na legislação brasileira é atender a demanda dos agentes econômicos em operações cada vez mais diversificadas e frequentes no contexto atual, especialmente na gestão de investimentos financeiros e na sucessão patrimonial. O cerne da regulamentação da fidúcia é disciplinar a separação do patrimônio transferido fiduciariamente, denominado propriedade fiduciária, do patrimônio particular do próprio fiduciário, impedindo, dessa forma, que a propriedade fiduciária possa ser alcançada por eventos de responsabilidade do fiduciário, como por exemplo, no caso deste vir a sofrer alguma constrição de penhora, que, a partir da separação legal dos patrimônios, não poderá recair sobre a propriedade fiduciária instituída pelo fiduciante, mas tão somente sobre o patrimônio pessoal do próprio fiduciário.

Para que a propriedade seja considerada fiduciária, todavia, é preciso que esteja subordinada a uma condição resolutiva, que se extinguirá mediante seu implemento, ou mediante o termo do prazo acordado entre as partes, quando, então, será dada à propriedade a destinação prevista na lei ou no contrato, como por exemplo, a restituição dessa ao fiduciante.  

A autonomia da propriedade fiduciária garante-lhe, ainda, sua independência dos efeitos de eventual falência ou recuperação de empresas das quais sejam parte o fiduciante ou o fiduciário, não estando submetida a seus efeitos, exceto mediante o termo da fidúcia ou o cumprimento da sua finalidade, quando, então, se extinguirá a propriedade fiduciária, e o administrador judicial poderá, conforme o caso, somar o saldo remanescente à massa falida ou inscrevê-lo na classe própria de créditos a que pertencer.

Adicionalmente, o PL 4.758/20 objetiva disciplinar os requisitos mínimos de validade do ato constitutivo da fidúcia, estabelecendo suas especificidades, cláusulas obrigatórias, direitos e obrigações das partes, condições de revogação e outras. É de se destacar, nesse sentido, que a constituição da propriedade fiduciária se condicionará ao registro do seu ato constitutivo no cartório competente, seja o Cartório de Registro de Imóveis, quando o objeto da propriedade fiduciária for um bem imóvel, seja o Cartório de Títulos e Documentos, para os demais casos, como por exemplo, quando tratar-se de um veículo, obras de arte, títulos de crédito, participações societárias e outras. Sem prejuízo, o Projeto de Lei prevê, ainda, que a fidúcia poderá ser constituída por ato unilateral, por meio de testamento.

O Projeto de lei disciplina, também, as condições de remuneração do fiduciário, que deverão ser fixadas pelas partes no próprio contrato, ou, na sua ausência, por arbitragem, não podendo o fiduciário se valer dos frutos da propriedade fiduciária em proveito próprio, estando, ainda, obrigado a indenizar todos os prejuízos que causar ao fiduciante, por negligência ou administração temerária, os quais correrão em solidariedade passiva, caso haja mais de um fiduciário.

Do ponto de vista fiscal, o projeto de lei, por outro lado, é omisso em relação a aspectos relevantes, como a tributação da transferência da propriedade fiduciária e das receitas auferidas. É possível, nesse sentido, que sejam propostas emendas ao texto atual, ou ainda, que novas normas tributárias ou soluções de consulta da Receita Federal e/ou das Secretárias Estaduais da Fazenda surjam para esclarecer o tema.

O PL 4.758/20 foi aprovado tacitamente na Câmara do Deputados e, então, encaminhado à apreciação do Senado Federal em 19/10/22. Se aprovado, e posteriormente sancionado pelo Presidente da República, mantida sua redação original, o projeto de lei entrará em vigor na data da sua publicação, havendo, desde já, boas expectativas quanto à regulamentação da matéria, especialmente pela sua capacidade de refletir novas alternativas de operações econômicas aos setores público e privado, com a efetiva segurança jurídica que delas se espera. 

Vinicius Melo Santos
Advogado da área contratual e societária do escritório Lopes Muniz Advogados. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC- Campinas) - Pós-Graduação em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV

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