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Lei 14.470/22: uma nova era para a persecução concorrencial privada no Brasil

Esta tendência global em fortalecer os sistemas de persecução privada remete à importância do instrumento no fortalecimento da política concorrencial.

24/11/2022

Após longo e produtivo debate no Congresso Nacional, foi sancionada, em 16/11/22, pelo Presidente da República a lei 14.470/22, que modifica a Lei Brasileira de Defesa da Concorrência (LBDC ou Lei 12.529), de 30 de novembro de 2011, alterando o teor de seus artigos 47, além de inserir os novos 46-A e 47-A.

A nova lei reestrutura o sistema de persecução privada concorrencial e, ao fazê-lo, detalha temas cruciais ao seu desenvolvimento, como o prazo prescricional aplicável e o termo inicial que deve ser utilizado na sua contagem, a distribuição do ônus probatório, a possibilidade de utilização de arbitragem pelas vítimas e um tipo de “repetição de indébito”, que prevê a indenização em dobro das perdas e danos sofridas em função de infrações à ordem econômica.

Apesar de pouco difundidas, as ações indenizatórias concorrenciais estão previstas desde a lei 8.884/94 (anterior à atual LBDC). Entretanto, tanto a redação anterior quanto a atual restringem-se à previsão a possibilidade de ingresso em juízo, arrolando como legitimados não apenas as empresas e os consumidores diretamente prejudicados, como também o rol previsto no art. 82 da lei 8.078, de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), ou seja, Ministério Público, União, Estados, Municípios e Distrito Federal, entidades e órgãos da Administração Pública Direta e Indireta, bem como associações legalmente constituídas há pelo menos um ano, desde que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC.

Assim, a nova lei cria incentivos para um efetivo sistema privado de defesa da concorrência no Brasil, concedendo segurança jurídica sobre temas que há anos encontravam-se indefinidos nos tribunais, como é o caso do termo a quo aplicável a este tipo de responsabilização civil – uma vez que a aplicação da data da lesão ou a data da abertura do Processo Administrativo Sancionador perante o Cade inviabilizavam a propositura da demanda, dada a natureza das infrações concorrenciais, especialmente se estamos tratando de infrações colusivas, como é o caso dos cartéis.

Além de fixar o prazo prescricional em cinco anos, a lei define como marco para o início da contagem da prescrição a condenação do Cade, o que já era o entendimento predominante nos tribunais, uma vez que é de fato neste momento que as vítimas passam a tomar ciência da existência do ilícito e, portanto, também da possibilidade de procurar o respectivo ressarcimento na seara judicial.

Outro ponto importante objeto da lege ferenda diz respeito à inversão do ônus probatório com relação à tese de defesa usualmente apresentada pelos infratores, de que a vantagem auferida a partir da prática da infração haveria sido repassada na cadeia produtiva. Esta tese de repasse, globalmente conhecida como pass-on defense vinha sendo utilizada como uma tática de guerrilha, impondo aos prejudicados o ônus de provar que o repasse não foi realizado, a despeito da gigante assimetria informacional.

Além de mitigar os obstáculos procedimentais hoje existentes no judiciário – questões que são ou foram discutidas em pelo menos um terço das ações hoje em trâmite ou já arquivadas1 - a lei também impõe o ressarcimento em dobro das perdas e danos sofridos pelos legitimados do art. 47, excepcionando a submissão à regra aos compromissários de Acordos de Leniência e Termos de Cessação de Compromisso, além de tornar a decisão do Cade apta a fundamentar a concessão de tutela da evidência, confirmando a deferência do judiciário às decisões da Autarquia.

Ou seja, com a nova lei 14.470/22, institui-se um verdadeiro sistema de persecução concorrencial privada no país,  contribuindo para a convergência da política concorrência brasileira às melhores práticas internacionais, alinhando-se não apenas ao modelo americano, cujo sistema é prioritariamente construído com a participação do judiciário2, como também à experiência da União Europeia, que recentemente estruturou e harmonizou o sistema de private enforcement no bloco europeu, a partir da entrada em vigor da Diretiva 2014/104/EU3, assinada em 26/11/14.

Esta tendência global em fortalecer os sistemas de persecução privada remete à importância do instrumento no fortalecimento da política concorrencial. Isto porque facilitar pleitos indenizatórios dos agentes prejudicados fortalece a atividade persecutória estatal ao aumentar o custo do delito e, consequentemente também, a dissuasão de sua prática. É um grande passo na trajetória do Cade na missão de combater infrações à ordem econômica e um passo maior ainda na construção de um país mais competitivo4.

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1 Conforme dados do último levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC), cuja base de dados foi atualizada até 01/07/2020. Disponível em https://ibrac.org.br/observatorio-jurisprudencia.htm. Acesso em 12/07/2022.

2 No caso norte-americano, as autoridades responsáveis pela defesa da concorrência (Federal Trade Commission – FTC e Department of Justice – DOJ) litigam contra os infratores no judiciário, não existindo a figura de um Processo Administrativo Sancionador como no Brasil. Em função disto, autores como Landes e Davis (2011, p. 349) destacam a impossibilidade de replicar os resultados da persecução privada no sistema americano. In DAVIS, Joshua P.; LANDE, Robert H. Comparative Deterrence from Private Enforcement and Criminal Enforcement in the U.S. Antitrust Laws. University of Baltimore Law Review, 315 (2011), p. 315-389.

3 Assinada em 26/11/2014, a diretiva foi publicada no Official Journal of the European Union em 05/12/2014 e está disponível no site da Comissão Europeia https://eur-lex.europa.eu/legal-content/en/ALL/?uri=CELEX%3A32014L0104. Acesso em 12/07/2022.

4 No Brasil, é ampla a literatura que defende o caráter dissuasório/preventivo do enforcement privado, como por exemplo, FERRAZ JUNIOR, Direito da concorrência e enforcement privado na legislação brasileira, RDC, Vol. 1, n. 2, Nov 2013, p. 13; e FRANCISCO, Responsabilidade civil por infração da ordem econômica, Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 70. Há ainda autores como Pereira que defendem um efeito punitivo (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, Vol. II, p. 380).

Alexandre Barreto
Superintendente Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Ana Sofia Monteiro Signorelli
Coordenadora-Geral Antitruste CGA2 / SG e Professora de Direito Econômico e Empresarial (IDP).

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