Inspirado na genial canção “o pulso” escrita por Arnaldo Antunes e que ficou consagrada na voz dos Titãs nos idos dos anos 80 estes escrito serve de provocação para que seja feita, urgentemente, uma reflexão sobre as enfermidades que os tribunais superiores têm causado ao combalido, mas fundamental, instituto da responsabilidade patrimonial. Há muito que este tema tão importante pede uma análise sob o prisma do direito material.1
A questão de direito objeto do tema n° 1232 do Supremo Tribunal Federal é a seguinte:
“possibilidade de inclusão no polo passivo da lide, na fase de execução trabalhista, de empresa integrante de grupo econômico que não participou do processo de conhecimento”.
O referido “tema” é fruto do reconhecimento da existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada em recurso extraordinário interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal Superior do Trabalho tendo por fundamento a violação aos arts. 5º, II, LIV e LV, 97 e 170 da Constituição Federal.
Quando o ‘excelso pretório’ colocá-lo em julgamento terá a ímpar oportunidade de pavimentar um caminho mais lúcido do que aquele que tem sido trilhado até aqui pelo STJ e TST não apenas para a questão de direito extraída do próprio recurso extraordinário n° 1.387.795 de MG, mas também para tantas outras questões que emergem em razão da aplicação inadequada do instituto da responsabilidade patrimonial.
Pra começar, é de se dizer que tem sabor de obviedade a regra do art. 513, §5º do CPC que assim diz:
“O cumprimento da sentença não poderá ser promovido em face do fiador, do coobrigado ou do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento”.
Até o sujeito mais míope enxerga, à distância, que este dispositivo do CPC é uma natural projeção da a cláusula pétrea de que “ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LV da CF/88), ou seja, a regra básica e lógica de que primeiro revela-se o direito, depois parte-se para a excussão do patrimônio. Essa “revelação do direito” é estampada nos títulos judiciais (art. 515) e extrajudiciais (art. 784) de forma que neles possam estar evidentes a existência de uma obrigação líquida, certa e exigível.
Ocorre que – e aqui começa o problema - o que deve estar revelado de modo evidente no título executivo judicial e extrajudicial não é apenas a relação débito/crédito que vincula credor e devedor, mas também a relação acessória que envolve o credor e o responsável, afinal de contas, ambas integram a relação jurídica obrigacional.
Assim, é pressuposto da atividade executiva sobre o patrimônio, que esteja identificado no título executivo tanto a (a) a relação entre o credor e devedor atinente à prestação devida, quanto a (b) relação entre o credor e o responsável que garante com seu patrimônio os prejuízos decorrentes de eventual inadimplemento da prestação. Trocando em miúdos, deve constar de modo evidente no título executivo judicial ou extrajudicial as seguintes informações: a quem se deve, quem deve e quem responde, se é devido, e o quê ou quanto se deve.
Não se duvida que tudo seria mais simples se o sujeito que encarnasse o papel de “responsável” fosse também o mesmo que personificasse o “devedor”, como aliás acontecesse na maior parte dos casos. Assim, por exemplo, Marcelo deve pagar uma quantia a Guilherme e o patrimônio de Marcelo é que responde pelo seu inadimplemento. Marcelo é o devedor e também o garantidor da dívida por ele assumida.
Por outro lado, tudo fica mais complexo, e todo cuidado passa a ser pouco, quando os tais sujeitos descoincidem, ou seja, quando, por meio de lei ou convenção das partes, Marcelo é o devedor de Guilherme, mas o responsável pelo débito de Marcelo é, além dele mesmo, um outro sujeito chamado de Pedro. Assim, Pedro, que não é o devedor, é “co-garantidor” da dívida de Marcelo. Nesta hipótese, portanto, existem duas pessoas, e, dois patrimônios, que respondem pela dívida de apenas uma delas.
Especialmente nestes casos de responsabilidade pela dívida de outrem é preciso ter muita cautela e atenção porque no título executivo que aparelhará o processo de execução ou o cumprimento de sentença devem estar revelados os elementos objetivos e subjetivos do vínculo que une credor e devedor (da prestação devida) como também do que une o direito de garantia que conecta o responsável com o credor. Trocando em miúdos, é isso que diz o ululante art. 513, §5º citado mais acima.
Segundo este claríssimo dispositivo do CPC, mesmo que a lei ou o contrato aponte que “C” seja o garantidor (ou corresponsável) pela dívida de “A” é preciso que o título executivo espelhe esta situação jurídica. Melhor explicando, numa ação condenatória proposta elo credor contra o devedor, caso o primeiro pretenda obter um título executivo judicial que lhe autorize uma futura expropriação patrimonial contra todos os responsáveis, deveria preocupar-se em colocar no polo passivo desta demanda, além do próprio devedor, os sujeitos que a lei ou o contrato impute a responsabilidade (garantia) pela referida dívida. Por “n” razões – estratégicas, econômicas, afetivas etc. – pode o credor optar por ajuizar a demanda condenatória apenas contra o devedor ao invés de colocar no polo passivo todos aqueles que a lei ou o contrato preveem como meros garantidores de dívida. Assim, num contrato sem eficácia de título executivo é perfeitamente possível que o credor A proponha demanda apenas contra o devedor B, ou contra o seu fiador C, ou contra ambos.
Por outro lado é preciso que fique claro o reverso da moeda, ou seja, a consequência desta opção legitimamente feita por A: acaso a demanda proposta apenas contra B venha a ser julgada procedente, não poderá direcionar o cumprimento da sentença contra C, posto que este último, mesmo sendo fiador de B, não foi demandado por A e contra ele não se formou título executivo judicial.
O problema não está na formalidade de se ter ou não se ter o título executivo judicial contra determinada pessoa, e tampouco se trata de uma punição mesquinha à opção de A quando decidiu propor a demanda apenas contra um dos responsáveis.
O verdadeiro motivo é que existe um direito fundamental de que ninguém pode ser “executado” e sofrer uma expropriação judicial se não lhe for concedido o direito de exercer o contraditório, defesa de mérito (direta e indireta), tanto a respeito da relação principal (débito/crédito), quanto da relação acessória (crédito/responsabilidade) da qual ele figura como suposto responsável garantidor.
Frise-se mais uma vez que acaso a demanda condenatória seja proposta apenas contra o devedor, esta é uma opção do credor, de forma que apenas contra aquele réu por ele escolhido é que terá sido formado um título executivo judicial; título este que revelará uma obrigação (tanto o vínculo do débito, quanto da responsabilidade) líquida, certa e exigível. Apenas este sujeito, e, seu patrimônio, é que será legítimo para suportar a execução por expropriação.
A obviedade do §5º do art. 513 do CPC é chocante: em respeito ao preceito constitucional de que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo, não é possível executar (expropriar) patrimônios de quem quer que seja se contra estas pessoas não houver “títulos executivos”, sejam eles judiciais ou extrajudiciais.
Retomando a análise do tema 1232 o que a situação ali revela é que naquele caso concreto houve a formação do título executivo judicial apenas contra o devedor e apenas contra este foi iniciado o cumprimento de sentença. Contudo, após ser verificado que aquele devedor não possuiria patrimônio expropriável é que se pretendeu alcançar o patrimônio de outros sujeitos sob a alegação de que “integrariam o mesmo grupo econômico de fato”.
Definitivamente não é possível redirecionar [mudar a direção] a execução contra estes outros sujeitos, como se a execução fosse a mira de uma arma onde, mascado o primeiro tiro, pudesse o calibre ser ajustado para pessoa diversa sem lhe permitir exercer o pleno e prévio contraditório à formação do título executivo. Não dá para inverter a lógica e exigir, no curso do cumprimento de sentença, que o “redirecionado” é que tenha que provar que ele não pertence ao mesmo grupo econômico de fato.
Não basta uma petição avulsa do exequente justificando a insuficiência patrimonial do atual executado e contendo argumentos de que haveria indícios de que os “novos alvos” integrariam o mesmo grupo econômico.
A decisão judicial que deferir esse “redirecionamento” está, na verdade, inventando um título executivo judicial contra novos executados e seus patrimônios sem que estas pessoas tivessem tido a oportunidade de defesa prévia num processo cognitivo, seja em relação a dívida, seja em relação à responsabilidade patrimonial. Vejamos o absurdo: contra o executado sem patrimônio foi necessário um processo judicial, mas contra os sujeitos que se presume integrar o mesmo grupo econômico de fato basta um “redirecionamento” da execução....
A hipótese é tão grave que não se trata apenas de violar o petrificado direito constitucional ao devido processo onde gravita o mantra de que o patrimônio de uma pessoa só pode ser expropriado se e quando contra ela exista um título executivo que revele de forma evidente quem deve (e quem é responsável pela dívida), o quê ou quanto se deve, a quem se deve, se é devido.
Uma de duas: ou o título executivo foi obtido por meio de prévio processo cognitivo, caso em que haverá uma fase subsequente de cumprimento de sentença contra aquele que participou do processo cognitivo, ou o título executivo insere-se naquelas taxativas hipóteses do artigo 784 do CPC, caso em que será proposto um processo de execução. Em ambas as hipóteses só pode ser executado o sujeito que integre o título executivo.
O que é mais cruel nesta hipótese que deu origem ao tema 1232 é que além de lhe ser negado o direito de discutir em processo cognitivo antecedente à formação do título executivo judicial as relações de débito e de responsabilidade, também lhe foi tolhido o direito de opor-se a alegação - feita em petição avulsa - de que “compõem o mesmo grupo econômico de fato”. Observe-se que na hipótese trazida pelo Tema 1232 não apenas redireciona-se a execução contra “terceiros” sem lhes outorgar o direito de discutir o débito e a responsabilidade, como ainda por presume-se esta responsabilidade pela premissa fixada no redirecionamento de que tais pessoas compõem, de fato, o mesmo grupo econômico.
Incrível como tudo se passa como se fosse um simples giro do cano da espingarda executiva, ou seja, possivelmente com base em elementos indiciários trazidos numa petição avulsa do exequente no curso do cumprimento de sentença, o magistrado recebe aquela petição e simplesmente decide que “X, Y e Z” devem ser também sujeitos passivos de um cumprimento de sentença sem que nunca tenham figurado em nenhuma demanda cognitiva prévia onde pudessem defender-se não apenas da alegação de que compõem o mesmo grupo econômico de fato, como ainda por cima, de questões envolvendo a dívida e a própria responsabilidade que lhes é imputada ali no curso da curso do cumprimento da sentença.
Observe-se que uma coisa é o reconhecimento judicial de que X, Y e Z compõem o mesmo grupo econômico de fato [decidido superficialmente no “redirecionamento”], outra coisa é o reconhecimento judicial que aqueles sujeitos que supostamente integrariam o mesmo grupo econômico de fato seriam corresponsáveis pela dívida do executado originário. É óbvio que tudo isso deve estar acertado previamente no processo cognitivo que dá origem ao título executivo judicial. Foi opção do autor da demanda condenatória ter colocado no polo passivo não apenas aquele que deve, mas todos aqueles que são corresponsáveis pela dívida por integrarem o mesmo grupo econômico de fato. Todo credor sabe que 10 entre 10 demandas condenatórias procedentes desaguam em cumprimento de sentença para expropriar do patrimônio do executado o valor devido. Conta-se no dedo os devedores que, condenados pagam o que é devido espontaneamente. Assim, quando se propõe demanda contra todos – devedores e responsáveis – por um lado amplia-se a dificuldade e o tempo da tutela cognitiva, mas por outro, abre-se a possibilidade de se formar títulos executivos judiciais contra mais pessoas, permitindo que mais patrimônios possam ser atingidos pela mira da execução.
De outra banda, tratando-se de título executivo extrajudicial não é diferente: ou os executados constam no título executivo extrajudicial e contra eles podem ser promovidas as execuções, ou não estão e contra eles não poderá ser iniciada nenhuma execução. Sem título executivo prévio não há execução aparelhada, e, se, eventualmente, ao iniciar o processo de execução o exequente se dá conta poderia ter inserido no título extrajudicial outras pessoas e respectivos patrimônios garantidores (ex. que integrariam o mesmo grupo econômico), não há a possibilidade de, como uma biruta ao sabor do vento, redirecionar a execução contra novos executados e novos patrimônios que não constam do título executivo extrajudicial.
Não pode o credor que decidiu propor demanda cognitiva apenas contra o devedor deixando de fora os garantidores responsáveis (corresponsáveis ou responsáveis subsidiários), pretender inseri-los no curso da execução sob alegação de que o patrimônio do devedor se mostrou insuficiente. Todo credor deveria lembrar-se que ao propor uma ação condenatória para pagamento de quantia que no final das contas, se for procedente a demanda, será o patrimônio do réu-executado que suportará a expropriação, se não for espontaneamente cumprida a sentença, como quase nunca é.
É opção potestativa do credor propor a demanda condenatória contra todos os corresponsáveis e responsáveis subsidiários além do próprio devedor. O que não dá para aceitar é que, sendo infrutífera a execução por falta de patrimônio do executado, possa ser dado um salto carpado afastado grupado duplo e neste instante redirecionar a execução para atingir o patrimônio de quem o credor, por opção, decidiu não demandar. É isso que deixa claro o art. 513, §5º do CPC.
O que se está querendo dizer é que assim como há o direito de se discutir a dívida previamente à formação do título, há também o direito de se discutir a garantia (responsabilidade) patrimonial desta dívida, e, registre-se, todas as vezes que existir um responsável patrimonialmente que não seja o próprio devedor, este outro sujeito deverá ser citado para integrar a relação jurídica cognitiva prévia a formação do título executivo judicial caso o credor pretenda, futuramente e se procedente a demanda, excutir o patrimônio deste responsável.
Caminhando para o final é preciso ainda fazer dois apontamentos.
O primeiro é a distinção entre responsabilidade patrimonial prevista na lei ou na relação negocial como no caso do fiador, do responsável solidário, do responsável subsidiário etc., e, outra coisa, completamente diferente é a imposição judicial da responsabilização patrimonial como sanção pelo ato ilícito de alguém que, por fraude, abuso etc. viola a garantia patrimonial de determinada dívida.
Se a lei ou o negócio jurídico preveem que determinadas pessoas são corresponsáveis ou responsáveis subsidiários pela dívida de outrem, é o autor que deve decidir se propõe demanda contra um ou contra todos. O título executivo judicial será formado contra aquele que participou do processo cognitivo. No caso de título executivo extrajudicial apenas aqueles que figuram como responsáveis no referido documento é que poderão ser executados.
Não tem cabimento, com a finalidade de driblar a opção equivocada de não propor a demanda contra todos os responsáveis, que o credor/exequente possa valer-se de um redirecionamento executivo ou, pior ainda, utilizar-se de um incidente de desconsideração da personalidade jurídica, incabível nesta hipótese, para trazer para o polo passivo do cumprimento de sentença aquele que já poderia ter participado do processo cognitivo porque já era corresponsável ou responsável subsidiário da dívida.
Não serve o IDPJ para remediar ali no cumprimento da sentença a escolha estratégica feita pelo autor quando ajuizou a demanda condenatória apenas contra o devedor, deixando de fora os demais responsáveis (integrantes do mesmo grupo econômico).
Em segundo lugar, é preciso dizer que onde há responsabilidade patrimonial legal ou convencional não há razão para “desconsideração da personalidade jurídica”. A desconsideração só tem sentido logico quando o sujeito atingido pela desconsideração não é formalmente responsável, pois passará a sê-lo por decisão judicial que reconheça o ilícito cometido com o devedor para violar a garantia patrimonial. Assim, v.g. se a lei ou o negócio jurídico já estabelece a responsabilidade patrimonial subsidiária do sócio pela dívida da empresa, não há porque “desconsiderar a personalidade jurídica” desta última para atingir o seu sócio, simplesmente porque a lei já o considera responsável. Deveriam, portanto, por opção do autor da demanda ter figurado como réu em demanda condenatória para que contra ele pudesse ter título executivo como deixa claro o art. 513, §5º do CPC.
Por fim, toda a atenção merece o julgamento do tema 1232 pelo STF.
Como se disse mais acima, não apenas nesta hipótese deve-se ficar atento. Os nossos tribunais superiores tem aplicado de modo inadequado aa responsabilidade patrimonial, a saber, por exemplo: (i) quando aceitam o incidente de desconsideração da personalidade jurídica para inserir na execução corresponsáveis e responsáveis subsidiários (ex. execução fiscal e grupo econômico de fato) que deveria ter integrado a relação cognitiva prévia à formação do título judicial, (ii) quando, de forma rasa e inane admitem o redirecionamento de uma execução contra um responsável subsidiário que não participou previamente do processo que deu origem ao título, (iii) quando adotam a construção jurisprudencial equivocada da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica para assim admitir o ingresso do garantidor patrimonial subsidiário (iv) quando aceitam como suficiente a intimação do terceiro garantidor quanto à penhora do imóvel hipotecado em garantia, etc.
Mesmo com tudo isso ... “o corpo ainda é pouco e o pulso ainda pulsa”.
Até quando?
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1 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Responsabilidade patrimonial pelo inadimplemento das obrigações: introdução ao estudo sistemático da responsabilidade patrimonial. São Paulo: Foco, 2022.