Migalhas de Peso

Tijolinho por tijolinho: Binding Precedents & Stare Decisis

Uma faceta interessante da Common Law é a força vinculante das decisões prolatadas em instâncias superiores sobre as varas de entrância. Falei difícil, mas é uma questão bastante simples e faz muito sentido.

17/11/2022

O caso em questão se chama “Balfour v. Balfour 2 KB 571”, que é um caso decidido na ‘Court of Appeal’ da Inglaterra nos idos de 1919. Todas as vezes que procuramos precedentes vemos os nomes dos ‘cases’ dessa forma ‘Plaintiff v Defendant’ (autor versus o réu) a data da decisão do caso (no caso, ‘1919’) e a identificação de onde foi prolatada a decisão (‘King’s Bench = ‘KB’). Tudo isso para que o profissional consiga se localizar dentre os milhares e milhares de casos, inclusive com nomes repetidos.

A isso se dá o nome de ‘citation’. Em síntese, a ‘citation’ deve conter o endereço completo do caso, geralmente encontrado nos ‘law reports’. Todos as grandes ‘firms’ contém uma boa biblioteca com tomos e mais tomos de law reports. Obviamente, hoje em dia há programas que conseguem aglutinar os precedentes de forma mais lógica (pense nas pesquisas prontas do STJ por exemplo). Perdeu-se o encantamento do cheiro dos livros. Melhor para os alérgicos.

Vou te contar esse caso mas já alerto que tomarei licença poética para florear a narrativa com eventos sob os quais a certeza é incerta, vez que é dentro do que mais gostamos de fazer, que é alterar o passado.

O Mr. Balfour era um engenheiro, casado com a Mrs Balfour desde o verão do ano de 1900, servidor público de alta patente no reino do George V. Era um senhor honrado, de boa aparência e fala elegante. 

Fiel ao Rei, de quem era parceiro de bridge1, aceitou representa-lo na colônia onde hoje convencionamos em chamar de Sri-Lanka. Levou sua esposa e todos os funcionários da casa para a capital Colombo, onde viviam felizes de 1913 até que resolvem voltar para Londres de férias em Novembro 1915.

Era uma visita para trazer os resultados contábeis dos lucros e dividendos agropastoris, rever os amigos e familiares, respirar os ares chuvosos do Hyde Park e fazer um checkup médico. Nada sério, mas a Mrs Balfour estava reclamando de dores nos joelhos há algum tempo, além de se sentir sozinha, melancólica e mal-humorada. Não se sabe ao certo se esses últimos sintomas era próprio de sua natureza, fato é que se descobriu que estava com uma doença reumática.

Por recomendação médica, preferiu não tomar o navio de volta a Sri-Lanka em agosto de 1916. Mr Balfour não demonstrou uma consternação profunda, mas garantiu (leia-se: ‘prometeu’) que enviaria 30 libras por mês para a mantença do lar e de suas necessidades (‘30 pounds per month for her maintenance’).

Ele a deixa um cheque inicial de GBP 24,00, ou outro de GBP 30,00 para o mês seguinte, e toma o seu rumo. Atente ao fato que hoje em dia, GBP 30,00 equivalem a quase GBP 4.000,00, o que era uma grande fatia (quase 50%) do salário do Mr Balfour à época. Ou seja, tratava-se de uma promessa bastante generosa a sua sôfrega esposa.  

Pois bem, o tempo passa, as monções caem e um ar romântico paira entre Mr Balfour e uma funcionária do grande gabinete – linda, jovem e exótica. Há trocas de olhares e frases de amor ‘bege’ (são ingleses, afinal de contas). Sentindo-se desalmado e blasfemo, decide abrir o jogo com sua enferma esposa, e, por meio de uma gélida carta, informa primeiro seu advogado – companheiro e confidente desde os tempos de Oxford – e depois a Mrs Balfour: ele queria o divórcio.

Mrs Balfour não chora. Nem esboça reação. De certa forma já sabia e somatizara a traição. Austera e com um desespero silencioso tipicamente inglês (“The English grieve in silence2”), resignava-se: “This is the end”. Enquanto isso, em Colombo, a ‘outra’ (‘the mistress’) deu um ultimato ao Mr Balfour: “Mas que coisa, pare já de enviar metade de seu salário a Londres, gastemo-lo todo” (percebe-se a pompa do Sinhala3 por ela falado). Desalmado e constrito pela cegueira da paixão, Mr Balfour cessa os envios de dinheiro, legando a sua ex uma vida de miserê, desgraça e morcilha. Nada disso aconteceu, lógico.

O que de fato ocorreu foi que o marido volta para Colombo em Agosto e não mais envia as ‘allowances’ (leia-se: as ‘mesadas’, sem caráter oficial de ‘alimentos’) prometidas à esposa. Então, tomada por um espírito indomável, ela contrata um advogado entra com um processo em face de seu ex marido. ‘I’ll see you in court’, telegrafou-o. Em março de 1918 ela ajuíza o processo para que se restituam as allowances (‘started proceedings for restitution of conjugal rights’).

No juízo singular (‘trial court’), em julho de 1918, ela consegue um ‘decree nisi4’ (vamos tomar a liberdade de traduzir essa como ‘liminar em cognição não exauriente’), que se estabiliza em dezembro em ‘alimony5’ (alimentos à ex cônjuge). O juiz da causa sustentou que “o marido tinha a obrigação de sustentar sua esposa, e as partes haviam contratado que a extensão dessa obrigação deveria ser definida em termos de um valor mensal6”(sic).

Para o juízo da trial court, portanto, havia um contrato entre as partes. Um ‘binding contract’ (um contrato strictu sensu, com nós entendemos, existente, válido e eficaz).

Por óbvio, Mr Balfour apelou da decisão, alegando que nunca tinha havido um contrato entre as partes. Em 1919, a Court of Appeals, por unanimidade, reformou a sentença (‘reversed the judgement’), entendendo que, de fato, não houvera contrato entre as partes7; pelo menos não um capaz de gerar obrigações mútuas e ensejar uma possível execução judicial:

"A questão realmente se reduz a um absurdo quando consideramos os fatos. Porque se fôssemos sustentar que havia um contrato neste caso, teríamos que também o considerar em relação a todas as outras questões triviais da vida (...). Tudo o que posso dizer é que não existe contrato aqui. Essas duas pessoas nunca tiveram a intenção de fazer uma avença que pudesse ser executável em juízo.” (sic).

Em suma, como podemos ver acima neste obiter dictum8 (a parte do voto do magistrado que conta o caminho processual do caso até ali) quando não há intenção, não há contrato. Para os Lord Justices da Court of Appeals, o que houve foi uma reprodução forçosa nas vias judicias de uma comunicação doméstica entre cônjuges. Apenas.

Vamos ver na sequência com outros artigos os quatro pilares9 dos contratos na Common Law de forma pormenorizada, mas fato é que, para a Court of Appeals, promessas domésticas não geram contratos passíveis de serem executados judicialmente (‘enforceable10  contract’) pois nunca fora a intenção das partes que o fosse.

Veja, se eu teço um contrato qualquer – dizemos ‘draft a contract’ – o que eu quero é que esse contrato seja ‘binding between the parties’. Afinal de contas, de nada adianta criar um contrato que não crie essa ligação. Se o contrato for legitimamente construído, por pessoas capazes, e há intenção de vinculação das obrigações mútuas, então esse contrato é ‘enforceable in a court of law’ (passível de ser executado judicialmente). O contrato, então, passa a ter força de lei entre as partes por ter esse potencial de ‘enforceability’.

Portanto, pobre da Mrs Balfour, perdeu em sede de apelação; por outro lado, o mundo ganhou uma ratio dicidendi11 que se torna stare decisis12 dalí para frente. Traduzindo: é preciso que as partes contratantes anuam expressamente com a exequibilidade do contrato que firmam, sob pena de não existir força executiva em caso de descumprimento. Essa foi a parte da decisão que chamamos de ratio dicidendi, ou seja, as razões de ser da decisão tomada. A ratio em Balfour v. Balfour pode ser resumida de várias maneiras, mas eu gosto muito do seguinte: “A contract is only enforceable in court if both parties intended that way”.

Em consequência lógica, a decisão advinda de Balfour se torna obrigatoriamente vinculante a todas as outras lides semelhantes dali para frente, tornando-se o que chamamos de stare decisis.  Balfour agora é um ‘Landmark Case’. Um tijolinho na nossa estrutura.

Assim, se seu cliente é uma pessoa que por um acaso teve o azar de ser processado por conta de um contrato que ele nem sabia que existia (por exemplo um filho processa o pai por que o pai não deu um carro para ele de presente quando ele fez 18 anos, sabendo que o pai tinha feito essa promessa em um ambiente puramente familiar, leia-se: doméstico, social) então você está com sorte porque já sabe como isso vai terminar.  A previsibilidade da Common Law é implacável nesse caso.

Essa é uma das maiores vantagens desse sistema. Portanto obriga o ‘settlement’ (o acordo) entre as partes porque esse caso já foi decidido antes mesmo de ser apreciado. O sistema jurídico é desafogado e a vida segue seu fluxo.

O peso daquela ratio vai vincular decisões até que surja um caso semelhante, mas com um detalhe interno que o faz um tiquinho diferente. Estamos diante de um ‘distinguishable case’ (um caso minimamente diferente do anterior).

Por exemplo, a ratio de Balfour foi aplicada no caso Jones v. Padavatton ([1969] 2 All ER 616), para decidir que “o acordo entre uma mãe e seu filho adulto não gerava um contrato”. Então, como por um passe de mágica jurídico, temos mais um tijolinho na nossa estrutura, que vai montando em cima da stare decisis de Balfour.  

Após, em Coward v. MIB ([1963] 1 QB 259), a stare decisis composta por Balfour e Jones (os dois casos anteriores que se aplicariam ao caso em questão) é aplicada para decidir que “um acordo para dar carona para um amigo em troca de dinheiro de gasolina carecia de intenção”. Temos o nosso terceiro tijolinho.

Mas aí surge o caso Merritt v Merritt ([1970] 2 All ER 760) querendo a aplicação dessa mesma stare decisis, mas com uma consequência diversa. Por conta de uma singela diferença (‘dintinguishability’) a decisão nesse caso fez com que fosse acrescentado um tijolinho de excepcionalidade a nossa estrutura, pois em Merrit os cônjuges claramente já estavam separados e foi explicitado que “o acordo tinha a intenção de criar relações jurídicas” (importante ler o caso para entender porque Balfour não foi aplicado em Merritt, ok?) E assim, de tijolinho por tijolinho13 o ordenamento jurídico vai crescendo de tamanho e criando mais previsibilidades implacáveis.

É notório: o comportamento humano é bastante previsível, mas comporta alterações pontuais de tempos em tempos. É por isso que a Common Law deve reproduzir o dinamismo da experiência humana e responder com agilidade quando de suas pequenas nuances.

Ainda, com a intenção de facilitar o entendimento, de tempos em tempos o poder legislativo deles consolida todos os entendimentos vigentes mais importantes em um Act (que devemos traduzir apenas como ‘Lei’). Quase como em videogame, pausa-se o jogo e legisla-se. Portanto, os Acts não surgem da cabeça dos legisladores, mas sim de um entendimento já consolidado no sistema, preparando-se o terreno para a inserção de novos tijolinhos.

Hoje em dia, graças aos nossos processualistas mais altivos, sabemos que o nosso caminho está sendo trilhado com um espírito semelhante ao da Common Law. Imagine só um mundo onde somos capazes de prever com exatidão quais serão as decisões dos magistrados. Uma utopia tão linda que “vai ter amor espalhado nas paredes, teto e chão” (RABELO, Enzo. 2018).

And now, let’s get Legal!.

______________________

1 Quer conhecer mais sobre a tradição do Bridge? Veja aqui https://www.britannica.com/topic/bridge-card-game

2 Não acredita? Leia aqui https://www.researchgate.net/publication/271668339_A_culture_of_silent_grief_The_transformation_of_bereavement_care_in_20th_century_England

3 Entenda sobre a língua Sinhala https://www.britannica.com/topic/Sinhalese-language

4 Veja a definição e o procedimento aqui https://www.gov.uk/divorce/apply-for-conditional-order-decree-nisi

5 Veja a definição aqui https://www.divorce.co.uk/your-finances/alimony

No original: “the husband was under an obligation to support his wife, and the parties had contracted that the extent of that obligation should be defined in terms of so much a month”. Tradução nossa.

7No Original do Lord Justice Warrington: “The matter really reduces itself to an absurdity when one considers it, because if we were to hold that there was a contract in this case we should have to hold that with regard to all the more or less trivial concerns of life where a wife, at the request of her husband, makes a promise to him, that is a promise which can be enforced in law. All I can say is that there is no such contract here. These two people never intended to make a bargain which could be enforced in law. The husband expressed his intention to make this payment, and he promised to make it, and was bound in honour to continue it so long as he was in a position to do so. The wife on the other hand, so far as I can see, made no bargain at all. That is in my opinion sufficient to dispose of the case. Tradução nossa.

8 Veja a definição aqui https://www.britannica.com/topic/obiter-dictum

9 Se está curioso, veja aqui https://courses.lumenlearning.com/suny-monroe-law101/chapter/elements-of-a-contract/

10 Veja a definição de “enforceable” aqui https://www.lawinsider.com/dictionary/enforceable

11 Veja a definição aqui https://www.law.cornell.edu/wex/ratio_decidendi

12 Veja a definição aqui https://www.law.cornell.edu/wex/stare_decisis

13 Sim, estou me referindo a esse https://www.youtube.com/watch?v=UybGw37WbuY

Fabio Berthier da Cunha
Professor Especialista em Inglês Jurídico da 'Legal. English for Lawyers'. Graduado em Letras, Pós-graduado em Educação. Graduando em Direito pela UniCuritiba.

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