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Notas sobre o regime da proteção legal dos jogos eletrônicos no PL 2796/21

Sendo um dos segmentos da indústria do entretenimento que mais cresce atualmente, sua relevância econômica no mercado mundial é indiscutível, gerando milhares de empregos, engajando bilhões.

17/11/2022

Você sabia que a indústria de jogos eletrônicos gera atualmente uma receita anual superior às indústrias musical, cinematográfica e de streaming juntas?

De fato. Em 2021, enquanto se estima que a indústria da música obteve uma receita anual de cerca de 25 bilhões de dólares1 e a indústria do cinema e home entertainment movimentou aproximadamente 100 bilhões de dólares mundialmente2, a indústria de jogos eletrônicos, sozinha, movimentou, no mesmo ano, nada menos que cerca de 175 bilhões de dólares, com expectativas muito positivas para ultrapassar os 200 bilhões de dólares em 20223.

Sendo um dos segmentos da indústria do entretenimento que mais cresce atualmente, sua relevância econômica no mercado mundial é indiscutível, gerando milhares de empregos, engajando bilhões (você não leu errado!) de jogadores e organizando campeonatos cujas dimensões, patrocínios e premiações equiparam-se ao de tradicionais competições de futebol.

Nesse contexto, as discussões sobre a necessidade de regulamentação dessas atividades naturalmente chegaram ao Brasil, onde o mercado cresceu visivelmente nos últimos anos, catalisado pela pandemia. No vácuo legislativo, a Agência Nacional do Cinema - ANCINE chegou a aprovar sua Agenda Regulatória para o biênio 2021/2022 incluindo a regulamentação do setor4.

Em meio aos debates, fato é que, até a iniciativa do projeto de lei PL 2786/21 (aprovada pela Câmara dos Deputados e ora em análise pelo Senado Federal), não havia na legislação brasileira proposta que expressamente regulamentasse os jogos eletrônicos5. Até então, a sua tutela se via resguardada, de forma (ao nosso ver) adequada, pela aplicação análoga de conceitos, princípios e dispositivos originários da Lei de Direitos Autorais6, da Lei de Software7 e da Lei da Propriedade Industrial8.

Traçado esse contexto e focando nos aspectos gerais do projeto de lei em questão, seu artigo 3º privilegia o princípio da livre iniciativa ao dispensar a necessidade de obtenção de qualquer licença ou permissão pública para “fabricação, importação, comercialização e desenvolvimento dos jogos eletrônicos”.

No que se refere à proteção legal, em um primeiro momento, o mesmo arcabouço jurídico citado foi referenciado como fonte das proteções cabíveis aos jogos eletrônicos no texto original do PL que foi apresentado à Câmara dos Deputados9. Entretanto, talvez pela própria complexidade e especificidade dos jogos eletrônicos, a redação original pecava na melhor aplicação dos institutos da propriedade intelectual. Vejamos o texto proposto para o artigo oitavo:

Art. 8º. A patente [sic] das músicas e outras formas de arte desenvolvidas para os jogos eletrônicos seguirão as regras do direito autoral.

Parágrafo único. O registro da propriedade intelectual dos jogos eletrônicos observará o mesmo regime do registro de software. (grifos nossos)

Vale mencionar que esse artigo foi removido sem maiores explicações da redação final aprovada do projeto, mas em uma interpretação integrada do caput com o parágrafo único, o texto parecia sugerir que a proteção dos jogos eletrônicos, em si, observaria àquela atribuída ao software. É fato que muitas decisões judiciais já equiparavam os videogames aos programas de computador para fins tributários10, assim como é certo que os games possuem um código-fonte tutelado pelo regime da Lei de Software.

Entretanto, ao tentar determinar que “o registro da propriedade intelectual” dos games seguiria o regime aplicável ao software, seu escopo de proteção estaria se limitando ao código-fonte, apenas garantindo proteção aos demais elementos criativos, isoladamente, por direito autoral.

Essa concepção não nos parece ser a melhor solução. Ao negar aos jogos eletrônicos proteção como verdadeira criação autônoma, tem-se consequências práticas que podem gerar conflitos nas sistemáticas adotadas para atribuição da titularidade dos direitos relativos a programa de computador e dos direitos autorais.

De forma simplificada, a Lei de Software garante exclusivamente a proteção do código-fonte (art. 1º e 11) e a titularidade é do empregador ou contratante do serviço, salvo acordo dispondo de forma diversa (art. 4º). Por outro lado, o direito autoral protege a forma de expressão de uma obra e, em regra, sua titularidade é da pessoa física que criou a obra (art. 11 da Lei de Direitos Autorais).

Aplicando esses conceitos a um caso prático, o código-fonte do jogo eletrônico seria de titularidade originária da desenvolvedora, ao passo que as contribuições criativas individuais teriam múltiplos titulares originários.

Ao nosso ver, tanto a redação original do PL quanto o texto final aprovado perderam a oportunidade de harmonizar essa questão, adotando o conceito de obra coletiva, previsto na Lei dos Direitos Autorais, para os jogos eletrônicos. Fugindo à regra da titularidade garantida ao criador, na obra coletiva é o organizador – aquele que tem a iniciativa e responsabilidade de coordenar os envolvidos e publicar a obra sob seu nome – quem detém a titularidade dos direitos patrimoniais de autor sobre o conjunto da obra coletiva.

Nesse sentido, a classificação dos jogos eletrônicos como obra coletiva concentraria na figura das desenvolvedoras a titularidade originária do jogo eletrônico, compreendendo todos os seus múltiplos aspectos: os personagens, as músicas, o roteiro e seus demais atributos gráficos, para além do ganho de garantir uma proteção autônoma para o conjunto da obra, não apenas aos seus elementos isolados.

Resta, então, aguardar a tramitação do PL no Senado, com as desejáveis contribuições de especialistas e de atores do ecossistema de jogos eletrônicos, na expectativa de que o debate seja aprofundado pelos legisladores e se chegue a um texto que efetivamente contribua para a adequada regulamentação do setor.

______________

1 Disponível em: https://www.ifpi.org/ifpi-issues-annual-global-music-report-2021/- acesso em: 27.10.2022

2 Disponível em: https://www.filmeb.com.br/noticias/mercado-global-cresce-81-em-2021 - acesso em: 27.10.2022

3 Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2022/01/com-2022-decisivo-mercado-de-games-ultrapassara-us-200-bi-ate-2023/ - acesso em: 27.10.2022

4 Acirrando os questionamentos, eis que sua finalidade, nos termos da Medida Provisória nº 2.228-1/2001, que institui a Agência, se refere ao fomento, regulação e fiscalização no âmbito das indústrias cinematográfica e vídeo-fonográfica

5 Vale a referência de que no Guia Prático de Classificação Indicativa (3ª Edição, 2020), organizado pela Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), do Ministério da Justiça, tem-se a menção aos jogos eletrônicos como compreendidos no conceito de obras audiovisuais, cuja competência para atribuição de classificação indicativa é do Ministério da Justiça.

6 Brasil. Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 – Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências.

7 Brasil. Lei nº 9.609 de 19 de fevereiro de 1998 – Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências.

8 Brasil. Lei nº 9.279 de 14 de maio de 1996 – Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.

9 O texto final aprovado remove o dispositivo oitavo que tratava do regime de proteção da propriedade intelectual nos jogos eletrônicos.

10 Vide: TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO ADUANEIRO. CD/DVD CONTENDO JOGO ELETRÔNICO PARA APARELHO DE VIDEOGAME. SOFTWARE.

Para fins aduaneiros, os jogos eletrônicos para aparelhos de videogame gravados em suporte físico (CD/DVD) devem ser classificados como softwares, na forma do art. 81, caput, do Decreto nº 6.759/09, cumulado com o art. 1º da Lei nº 9.609/98, e não como arquivo audiovisual similar a CD musical ou DVD de filme.

TRF-4 – Apelação Cível 5003137-40.2012.4.04.7208, Primeira Turma Cível, Relator: Jorge Antonio Maurique, J. em 23.10.2013.

Gabriela Lima Silva
Sócia do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

Marcos Chucralla Moherdaui Blasi
Sócio do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

Davi Ramos Wanderley Santos
Colaborador do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

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