Migalhas de Peso

Formatos e realities

Desenvolvidos internamente ou adquiridos, os formatos são como as sombras da alegoria platônica: projeções dependentes da incidência de uma luz sobre um objeto (in casu, a obra audiovisual).

16/11/2022

[Conteúdos audiovisuais]

Antes restritos a meios e estruturas quase que inteiramente “lineares”, os conteúdos audiovisuais trafegam hoje na “não linearidade” resultante da convergência midiática.1

E não deixa de ser evidente no presente contexto que “a obra, audiovisual, musical, uma vez produzida e fixada, deve ser veiculada [doit être diffusée]. O canal de televisão ou rádio, o site da internet, de certa forma, permitem que o público receba esses produtos culturais.”2

Eli Noam3, em uma sucinta mas esclarecedora perspectiva histórica, narra que:

“A produção do que hoje chamamos de conteúdo midiático [media content] vai ao encontro dos primórdios da humanidade, quando indivíduos e grupos se apresentavam para sua comunidade ou senhores. Com o tempo, isso se tornou organizado e institucionalizado — teatro na Grécia antiga, espetáculos de gladiadores na Roma Imperial, teatros na Londres elizabetana, palcos de ópera na Itália. Alguns artistas eram provedores [providers] de conteúdo individual, como bardos, trovadores e menestréis. Eles forneceram entretenimento e notícias. Outras eram equipes organizadas como empreendimentos de conteúdo [content companies] que produziam e realizavam espetáculos, peças de teatro e eventos musicais. Na América e na Europa do século XIX, o entretenimento popular era fornecido pelo teatro, ópera, circo e vários tipos de espetáculos burlescos. Mas a economia era desfavorável: eles eram relativamente caros para produzir, e o potencial limitado de automação e produção em massa significava que era difícil expandir as apresentações para públicos maiores. Essa produção e distribuição de conteúdo de estilo ‘artesanal’ estava pronta para ser substituída por um modelo de produção em massa, da mesma forma que a tecnologia impressa industrializou o livro enquanto meio após o século XVI. A tecnologia musical surgiu após 1877 com o fonógrafo Edison. E para imagens visuais em movimento, a tecnologia cinematográfica fez um grande sucesso depois de 1895.”

Eis que o percurso histórico culminou, na atualidade, também no entendimento do conteúdo audiovisual com alto aporte de investimento financeiro enquanto resultado de projeto sobremaneira organizado (não de maneira estática, mas dinâmica), associado a estruturas empresariais e a própria empresarialidade4:

“A maioria das empresas trabalha em fluxos de trabalho contínuos (produção em série de bens ou serviços), ou seja, têm uma atividade regular. Essas empresas geralmente são organizadas organicamente por meio de unidades ou departamentos, que são estruturas estáveis, com função claramente atribuída e com equipe e recursos próprios. Cada unidade ou departamento concentra sua atividade em uma fase específica do processo: compras, produção, operações, vendas, contabilidade etc. Este sistema de organização funcional tem-se mostrado muito eficaz para as empresas que asseguram uma atividade regular e contínua. Por meio de rotinas e protocolos, é fácil padronizar os processos de produção ou fabricação. No entanto, para realizar projetos únicos e ainda mais complexos como as criações audiovisuais, é necessária uma estrutura flexível, adequada à natureza irregular, descontínua e instável dessa indústria. Os processos muitas vezes se sobrepõem ou exigem a intervenção simultânea de recursos dependentes de vários departamentos. Para combinar ambas as necessidades (estrutura departamental da empresa e atenção a cada projeto), existem duas formas principais de organizar a atividade produtiva: a organização matricial, típica da produção interna, e a organização por projetos (organização de força-tarefa), típica de produção delegada ou terceirizada. Além disso, também é conveniente diferenciar entre produção individualizada ou unilateral e coprodução.”5

[Formato, gênero e conceito]

Não é novidade (ou pelo menos não é uma abordagem recente) que “o ambiente da televisão [e possivelmente de outras mídias – observação nossa] é determinado pelos chamados formatos. Este é um termo que vem do setor de mídia. [...]. Além de uma prática abrangente de licenciamento, houve numerosas disputas judiciais no passado. Porque onde quer que você olhe hoje, existem formatos semelhantes no ambiente da televisão, seja quiz, culinária ou programas musicais. Por este motivo, a tutela dos chamados formatos tem sido discutida há muito tempo.”6

Por tal discussão, “alguns autores apontam que o formato televisivo não é de caráter jurídico, mas sim técnico e de uso comum no meio audiovisual; outros apontam que podem ser abordadas sob três perspectivas: técnica, jurídica e econômica.”7

Mas muito relevante é o entendimento8 de que “o formato é o conjunto de informação e experiência de produção que permite a adaptação de um programa existente em outro espaço e tempo; e nesse sentido, pode-se considerar que um programa é bem-sucedido quando é adaptado em vários países seguindo a mesma estrutura”9, haja vista o objetivo quase que impreterível de internacionalização10 e adaptabilidade condicionada que percorre o desenvolvimento e aplicação dos formatos à novas obras11.

De interesse também são as lições do produtor executivo Bob Levy acerca das distinções entre format, genre e concept:

“A progressão do formato para o gênero para o conceito é uma progressão do geral para o específico. O formato é o mais geral. Gênero é mais específico e, efetivamente, um subconjunto de formato. O conceito é ainda mais específico. Para arriscar mergulhar no genuinamente acadêmico por um momento, é o equivalente no campo do entretenimento à progressão da biologia de família para gênero para espécie (se bem me lembro da minha biologia de liceu).”12 

[Reality]

A repercussão do programa advindo deste gênero de formato, tanto para quem organiza (e o patrocina13, visando ativações/merchandisings de estratégias várias, a exemplo do famigerado product placement) quanto para quem participa14, pode ser bastante intensa social, cultural e financeiramente.

Em tempo, em uma observância e percepção teórica de tal gênero, a professora de communication studies Laurie Ouellette assevera que:

“‘Reality television’ é um termo ambíguo que engloba um leque de programação ostensivamente não roteirizada [unscripted], apresentando pessoas comuns como concorrentes, participantes e sujeitos [...]. Embora os estudiosos tenham identificado definições [conventions] compartilhadas (participação de não-atores, mistura de elementos fictícios e factuais) e subgêneros distintos (makeovers, programas de encontros, docu-soaps, concursos de talentos etc.), pode ser difícil identificar as fronteiras exatas entre programas de reality, documentários e programas de televisão fictícios. Isto porque a reality television como um todo mistura-se [revels] com hibridismos genéricos e toma por empréstimo extensivamente outras formas televisivas. Esta ambiguidade é ainda mais o caso hoje, quando filmes, documentários e seriados de Hollywood, como The Office, incorporam as definições do entretenimento de realidade. No final das contas, pode não ser tão importante assim determinar o que exatamente é e o que não é o reality television. O foco em definições pode não ser a melhor maneira de identificar e abordar o que é mais relevante sobre o fenômeno do reality, definido de forma mais ampla.”15

Lição que bem casa com as descrições do professor Herbert Zettl, na gestão/produção de programas (ao fim e ao cabo, de todo e qualquer programa):

“O processo de produção, antes orientado pela ideia inicial, é agora orientado pela mensagem definida do processo – o efeito desejado sobre o público-alvo. Dessa forma, ela é mais inclusiva do que um mero objetivo do programa. Antes de prosseguir com sua produção, você precisa ter certeza de que irá atrair a atenção da audiência. Isso é normalmente feito com o ângulo do programa – um elemento do programa que fisga quem está assistindo, algo como quando se usa uma isca para pescar.”16

Em suma, “a popularidade do reality television significa um casamento funcional [workable] de conveniência e contentamento entre emissoras/redes [networks] e telespectadores”17, cujo formato pode se apresentar como uma “medida de custo-benefício nas dificuldades de programação enfrentadas pelas emissoras/redes”18, para “os executivos de programação que habitualmente se debatem com índices de audiência baixos e despesas crescentes.”19

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1 Entendendo-se aqui a evolução do tradicional broadcast às disruptivas plataformas e serviços. Tal convergência é complementar, e não necessária ou integralmente substitutiva. “O broadcasting percorreu um longo caminho desde que os primeiros programas de rádio foram transmitidos há cerca de um século. Tornou-se um sólido pilar das sociedades em termos de informação, entretenimento e educação da população. No entanto, o mundo mudou completamente com o início da revolução digital há algumas décadas. Obviamente, isso não deixou o broadcasting intocado. O setor de broadcasting pode ser subdividido em três áreas principais. Esses são geração de conteúdo, distribuição e consumo. As tecnologias contemporâneas dividiram ainda mais essas três áreas em mais ramos. Novos players entraram em cena e, portanto, as empresas de broadcasting tradicionais estão sendo cada vez mais confrontadas com uma concorrência severa.” (Beutler. Evolution of Broadcast Content Distribution. Suíça: Springer, 2016. [ebook] [tradução livre]). Certo é que atualmente muitos agentes econômicos da mídia que anteriormente só atuavam por broadcasting (podendo aqui esse termo ser entendido por radiodifusão) estão se transformando ou mesmo já se transformaram em “mediatechs”; ou seja, primam pelo desenvolvimento e adoção antecipados de tecnologias a substanciar a cadeia de valor de seus conteúdos. “Concessões” e “outorgas” estatais à operação de “canais” de televisão e rádio - vide escassez do espectro de radiofrequência (cfr. Filho. Rádio e Televisão: o novo procedimento para concessão, permissão e autorização de seus serviços. Curitiba: Juruá, 2013) - por sua vez tiveram seu papel à montante consideravelmente atenuado considerando a função à jusante da internet e das redes. E, em sede do tratamento jurídico-político pela regulação setorial, não é incomum verificar que “as mudanças cotidianas nas atividades digitais relativas ao audiovisual tornam rapidamente obsoletas as regras de direito”, em que pese que “o direito do audiovisual sobrevive e tenta se adaptar às diversas mudanças tecnológicas.” (Le Roy. Droit de l'audiovisuel: le droit positif, ce qui va changer, ce qui pourrait changer. França: edição do autor, 2020. [ebook] [tradução livre])

2 Vivant/Bruguière. Droit d’auteur et droit voisins. Paris: Dalloz, 2021. p. 1317 [tradução livre]

3 Managing Media and Digital Companies. Londres: Springer Palgrave Macmillan, 2019. p. 28 [tradução livre]

4 Ao mesmo tempo em que há, em período ainda mais recente, a produção de baixo orçamento e custo (o que, de forma nenhuma, significa necessariamente baixa qualidade, diga-se de passagem), geralmente independente, com a possibilidade de distribuição por sua vez com custos relativamente atenuados.

5 Pardo. Fundamentos de producción y gestión de proyectos audiovisuales. Navarra: EUNSA, 2016. [ebook] [tradução livre]

6 Czernik. Filmrecht. In: WANDTKE, Artur-Axel (ed.). Medienrecht Praxishandbuch. Berlim: De Gruyter, 2009. p. 378. [tradução livre]. Para referências jurisprudenciais brasileiras, vide (i) Goyanes. A tutela jurídica do formato de programa de televisão. Revista da ABPI, v. 70.; (ii) Pereira. Uma análise sobre os formatos de programas de televisão e o direito autoral. Revista da ABPI, v. 119.; (iii) Gusmão/da Cunha/Takeishi. A proteção dos formatos televisivos na jurisprudência. Revista da ABPI, v. 119. 2011.

7 Fuentes/Domínguez. Formatos televisivos y derechos de autor. Cidade do México: Tirant lo Blanch, 2015. p. 82 [tradução livre]

8 Curiosamente, no Ato de Concentração 08012.005396/2001-43 (Endemol/Globo), quando as partes foram oficiadas pela SEAE (ofício e resposta constante dos autos públicos) para prestar informações adicionais, uma das indagações feitas a elas foi a seguinte: “Explicar as atividades denominadas ‘desenvolvimento de conteúdo/formato para televisão’ e ‘produção de programas para televisão’ [...]”. Indagação a qual responderam do seguinte modo: “Desenvolver um formato para televisão significa criar (ou adaptar) um conceito ou proposta para um programa de TV, definindo os elementos que dele farão parte, tais como enredos, cenários, tipos de participantes, trilha sonora, sequência de gravação etc. e desenvolvendo know-how. Definidos aqueles elementos, ter-se-á um ‘modelo’ ou formato (semelhante a uma ‘receita de bolo’), a partir do qual poderão ser produzidos sucessivos programas, em vários países. Há diversos tipos de formatos, como por exemplo, jogos de perguntas (‘Who Wants to be a Millionaire”, formato inglês que inspirou a “Show do Milhão” do [emissora de televisão]); de ‘pegadinhas’ (‘Candid Camera’, as ‘pegadinhas’ americanas); de ‘reality shows’ (ou ‘novelas da vida real’), tais como Big Brother, de titularidade da [parte] e ainda formatos interativos, como o ‘Você Decide’, exportado pela [emissora de televisão] para vários países. Produzir um programa de televisão significa reunir recursos (tais como equipamentos, locações, cenários, equipe técnica, diretores, participantes e apresentadores) e dar início à gravação do programa de televisão em si. Os programas podem ser produzidos a partir de uma ideia original [...] ou se originar de formatos prontos, como aqueles mencionados acima. A expressão ‘desenvolvimento de conteúdo para televisão’ é genérica e abrange tanto a criação de formatos quanto a produção de programas”. Também o teor disposto no Formulário do Ato de Concentração 08012.002541/2008-19 (Sony Pictures Entertainment/2Waytraffic) constante dos autos públicos é complementar: “Muitas transmissoras [aqui provavelmente querendo se referir a emissoras ou canais – observação nossa] desenvolvem seus próprios conceitos de programas e competem neste mercado com formatos de programas que são desenvolvidos para uso de terceiros (ou seja, externo). Além das transmissoras, fornecedores independentes desenvolvem conceitos para programas nas seguintes condições: (a) eles produzirão internamente os programas para então explorar os direitos do programa finalizado, ou (b) licenciarão o formato para o conceito desenvolvido para terceiros, como produtores ou transmissoras de televisão, para sua produção e exploração [...]. Outros produtores independentes montam catálogos de programas ou formatos para oferecê-los a produtoras e transmissoras. Muitos fornecedores desenvolvem e/ou adquirem tais direitos de programação que abrangem diversos gêneros. O conteúdo programático é basicamente desenvolvido para mercados nacionais ou até mesmo locais [...]. Alguns desses programas podem demonstrar sucesso maior fora de seus mercados originais e podem ser explorados internacionalmente por meio de licenciamento dos direitos secundários aos programas destinados a transmissoras nacionais que geralmente produzem o programa com as adaptações locais adequadas. Esses direitos secundários, nos quais os programas se baseiam são chamados ‘formatos’.”

9 Fuentes/Domínguez. op. cit. loc. cit. [tradução livre].

10 Contextualmente, Laura Miñarro relata que “quando são feitas vendas de formatos, é muito comum que ambas as partes, vendedor e comprador, se visitem. O produtor do formato original visitará o produtor local para ajudá-lo a adaptar não só o formato, mas também a melhor forma de adaptação às estruturas que o produtor local possui. O produtor local, por sua vez, terá interesse em reunir-se com a equipe de produção original para conhecer o projeto, conhecer em primeira mão as dificuldades que essa equipe enfrentou no desenvolvimento do projeto e como eles resolveram essas dificuldades. Além disso, o produtor local terá interesse em visitar, na medida do possível, as filmagens da obra original, a fim de ter uma ideia clara e precisa de como desenvolver o projeto em seu país de origem.” (Cómo vender una obra audiovisual: una aproximación a la distribución de contenidos audiovisuales. Barcelona: Editorial UOC, 2013. p. 174-175 [tradução livre]). Instigantes, também, as seguintes passagens: “A compra de um formato obedece à necessidade de cobrir um espaço na programação [cubrir una franja en la parrilla] e significa a aquisição dos direitos para poder produzir e transmitir o programa, além de delimitar o território, número de países, preço por programa produzido... Na maioria dos casos, uma opção [uma espécie de pré-contrato ou garantia limitada de preferência – observação nossa] é feita primeiro por três ou seis meses,  em que são estudadas as reais possibilidades do referido formato na programação, em termos de seu conteúdo, horário e temporada de exibição, além de fazer um piloto em que as possibilidades de adaptação, desenvolvimento e apresentadores adequados. Após o momento da opção, é decidido se se exercerá a compra. Edu Arroyo, diretor do Caiga quien caiga [o formato que no Brasil foi executado como “CQC – Custe o que custar” – observação nossa], tem uma visão curiosa a esse respeito: «obter os direitos é a maneira legal de proceder para pegar a ideia de outra pessoa, importá-la para o seu país e poder trabalhar com ela. Os criadores de formatos têm duas formas de comercializá-los: vender os direitos a um distribuidor ou fazê-lo diretamente. Normalmente as grandes empresas se encarregam de sua comercialização através de seus escritórios em diferentes países do mundo, mas em outras ocasiões, como ocorre com os formatos Endemol, os produtores locais associados à empresa holandesa são os responsáveis pela sua implementação em cada território.” (Saló/Flórez. ¿Qué es eso del formato?: Cómo nace y se desarrolla un programa de televisión. Madri: Editorial Gedisa, 2021. p. 167 [tradução livre]); “Podemos comparar o mercado audiovisual com um hipermercado, onde existem produtos frescos como carne, peixe, legumes e também produtos cozidos, enlatados e embalados, que basta aquecer antes de os consumir. Assim, encontramos programas de televisão que já estão finalizados - a única coisa que falta fazer é dublá-los no idioma do país onde serão transmitidos e também propostas de programas, ou seja, ideias e formatos [...].” (Galán. Com fer un programa per a televisió: de la idea al format. Barcelona: Edicions de la Universitat de Barcelona, 2021. [ebook] [tradução livre]); “A maioria das media commodities hoje também tem a característica de ser commodities de signos/sinais [sign]. O exemplo mais óbvio é o media text ou, como diz o jargão da indústria, o conteúdo. A primeira delas aparece com a tecnologia de broadcasting, em que o programa de rádio ou programa de televisão, inicialmente transmitido ao vivo, consiste apenas em ondas de rádio. Na verdade, este é exatamente o ponto que Thomas Streeter fez quando chamou seu livro sobre a história da política de radiodifusão comercial nos EUA de Selling the Air [...]. A commodity na base do sistema de transmissão comercial era uma combinação de signos/sinais que eram codificados e decodificados tecnologicamente na transferência da emissora para a audiência que assistia e escutava. A transmissão era analógica, pelo menos inicialmente, e com a digitalização essa qualidade se estabelece ainda mais. No entanto, com a referida digitalização, mesmo os media texts que antes não eram puramente estruturas de signos/sinais, mas sim firmemente ligados a seus suportes tangíveis – por exemplo, o livro ou o jornal – agora se tornaram intangíveis e versáteis, podendo flutuar entre plataformas tecnológicas de armazenamento e distribuição. Com a digitalização, então, muitos (se não a maioria) dos media texts tornam-se puras commodities sígnicas. Uma forma de conteúdo [content form, por mais que esta expressão possa ser antagônica – observação nossa] específica é o formato, ou seja, a ideia básica para a produção de um programa de televisão (muitas vezes nos gêneros reality) que permite a adaptação nacional. Os formatos são um tipo específico de commodity que é comprada e vendida nas grandes feiras de televisão a exemplo da MIP-TV e MIPCOM em Cannes, França e em outros lugares do mundo. Nas palavras do investigador de televisão australiano Albert Moran, citando por sua vez um produtor de televisão, um formato é semelhante a uma torta, em que “a crosta é a mesma de semana para semana, mas o recheio muda” [...]. No entanto, essa crosta, ao contrário da crosta de uma torta de maçã, não é possível de se colocar no prato, e é consumida em sua forma de signo/sinal, como princípio de como montar e produzir um programa de televisão. É também por isso que os frameworks jurídicos que protegem essa commodity são frágeis, o que torna esse mercado específico de formatos totalmente dependente da crença comum [common belief] entre os envolvidos na mercadoria. Se as partes envolvidas de compradores e vendedores [buyers and sellers] duvidassem do valor da mercadoria, o mercado desapareceria instantaneamente. (Bolin. Institution, technology, world: relationships between the media, culture and society. In: Lundby (ed.). Mediatization of Communication. Boston, Berlim: De Gruyter, p. 191. [tradução livre]). Este último trecho da passagem anterior é bastante interessante, mas é de se discordar. Já pelo fato da aquisição e desenvolvimento do formato ser um negócio de risco, os frameworks/mecanismos de tutela jurídica são fortalecidos. O formato não “vive” comercialmente só por se encaixar (ou não) no suporte fático da obra, mas também de deveres de conduta relativos ao disclosure reservado do projeto em relação ao todo ou parte de seu know-how (i.e. obrigações/deveres de segredo). Lealdade entre players do mercado audiovisual (produtoras, emissoras, plataformas, estúdios etc., pequenos, médios ou grandes) é particularmente esperado por estes, tendo em vista ser um setor de muito networking tácito dada a ferrenha corrida por criatividade, audiência e retorno de investimento.

11 “Os formatos dos programas de televisão, portanto, não devem ser confundidos com seu objeto, que são as obras audiovisuais, nem com as obras literárias (embora possam se assemelhar a obras dramáticas e dramático-musicais), mas são basicamente diferentes no sentido de que o esboço da trama que os formatos podem estabelecer não é propriamente um roteiro, mas um projeto essencialmente aberto que é desenvolvido ao longo do programa e sobre o qual o criador não tem o mesmo controle que o roteirista ou escritor da trama ou da obra teatral. É precisamente o roteiro ou esquema que pode ser contraditório com a natureza do programa previsto no formato, que muitas vezes é aberto e permite que os personagens ajam livremente e com diferentes resultados.” (Amado. Formatos de programas de televisión: telerrealidad y situaciones fictícias. In: Burgos. (org.). Actualidad Propiedad Industrial & Intelectual. Valencia: Tirant lo Blanch, 2020. p. 211 [tradução livre]); “Os formatos, como todas as obras que desejam ser protegidas pela normativa autoralista, devem ser expressos por qualquer meio ou suporte, tangível ou intangível [...].” (Amado. op. cit. p. 210 [tradução livre]) e, sobremaneira, manifestar originalidade. Uma breve sistematização dos critérios que podem ser cogitados como manifestação de originalidade em relação aos formatos pode ser encontrada em Adelantado. Consideraciones prácticas de la protección jurídica de los formatos audiovisuales por propiedad intelectual. In: Burgos (org.). Actualidad Propiedad Intelecual. Valencia: Tirant lo Blanch, 2022.

12 Television Development: How Hollywood Creates New TV Series. Nova Iorque: Taylor & Francis Routledge Focal Press, 2019. [ebook] [tradução livre]

13 “A atividade publicitária é um fator determinante no desenvolvimento econômico e, de fato, serve para modificar os critérios de referência utilizados na avaliação dos resultados das empresas. Como consequência do exposto, a publicidade configura-se como um instrumento essencial no sistema de economia de mercado, que encontra sua razão de ser na necessidade de empresários e profissionais de promover a demanda por seus produtos ou serviços para concorrer livremente. O termo publicidade não é inequívoco, abrange muitos conteúdos, portanto, para abordar o contrato publicitário em geral — e, portanto, as regras que lhe são especialmente aplicáveis —, devemos partir da noção de publicidade comercial, que é o principal objeto de contratação publicitária, e que é o que interessa ao Direito Comercial.” (Vega Vega. La contratación publicitaria: normas generales. In: García-Cruces. (dir.). Tratado de derecho de la competencia y de la publicidad. Valencia: Tirant lo Blanch, 2014. [ebook] [tradução livre] [Tomo II]).

14 Aí, pensando-se nas estatuições obrigacionais estipuladas a favor da (e pela) produtora/emissora/organizadora/canal e a favor da pessoa participante, sendo as disposições privadas sobre direitos de personalidade (que também estão situados na ordem pública constitucional) muito provavelmente a “alma” de tais negócios jurídicos. “É pacífico que a requerente se recusou a aceitar a situação criada pela produtora para gerar uma situação dentro do programa [reality-show] favorável aos seus interesses comerciais, independentemente dos direitos da parte afetada que, de forma alguma, concordou em participar, no que certamente constituiria um espetáculo propício para um determinado público mas que, evidentemente, se pode afirmar que carece de um interesse geral protegível e poderia constituir uma violação dos direitos dos implicados, que pelo simples fato de entrarem no referido programa não perdem a proteção constitucional de sua dignidade pessoal. Ora, a partir do momento em que a requerente opta por resolver o contrato firmado com a produtora, renunciando ao benefício de ter sido escolhido para participar do programa, e tal resolução é aceita pela referida produtora, não existe prestação alguma a cargo da requerente nem abandono de tais direitos por ela para que seu nome e sua imagem capturada na entrada do programa possam ser utilizados, afetando ilegitimamente sua privacidade na medida em que uma relação amorosa reconhecida pela requerente é utilizada para insistir em circunstâncias pessoais que só importam a ela e que não podem de modo algum ser disponibilizados ao público pelo simples fato de num dado momento ter assinado um contrato que posteriormente, como se repetiu, restou sem efeitos.” (Excerto de julgado espanhol: Sentencia nº 448/2016 do Tribunal Supremo - Sala 1ª de lo Civil – 1º de julho de 2016 [tradução livre]). Argumentações acerca deste contexto (em se tratando de direito nacional) podem ser aduzidas de (i) d’Hanens/Perpétuo/Valente. A possibilidade do licenciamento perpétuo do uso de imagem, voz e nome, e sua relação com os direitos de arrependimento e esquecimento. Revista da ABPI, v. 165, 2020; (ii) Lizardo. O clearance em obras audiovisuais (Parte 1 e Parte 2). Revista da ABPI, v. 179 e 180, 2022; (iii) Soler. Clearance: um dos desafios para a produção da obra audiovisual. In: Massarolo/Mesquita (orgs.). Produção de Conteúdo: audiovisual multiplataforma. São Paulo: Estação das Letras e Cores, Geminis, 2020. Cabe então uma profunda reflexão sobre as “autorizações de uso de imagem e voz”, dispostas “de forma inteiramente gratuita, a título universal, em caráter total, definitivo, irrevogável e irretratável” para “a utilização da imagem e voz” para a “fixação” destes bens de personalidade na “obra audiovisual” de titularidade (ou em co-titularidade, o que é frequente) da produtora/emissora/organizadora/canal.

15 Introduction. In: Oullette (ed.). A Companion to Reality Television. Nova Jérsei: Wiley, 2013. [ebook] [tradução livre]

16 Manual de produção de televisão. São Paulo: Cengage, 2017. p. 4 [tradução de Fernanda Zuchini]

17 Essany. Reality Check: The Business and Art of Producing Reality TV. Nova Iorque: Taylor & Francis Routledge Focal Press, 2013. [ebook] [tradução livre]

18 Essany. op. cit. Tal argumento pode diferir na realidade do streaming. 

19 Essany. op. cit.

Otávio Henrique Baumgarten Arrabal
Graduando em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). Bolsista da AGIT FURB.

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