Migalhas de Peso

A prisão de ofício e a Justiça Militar

Para que exista a vigência e a concomitante validade das leis, necessário será respeitar-se uma dupla compatibilidade vertical material, qual seja, a compatibilidade da lei com a Constituição e os tratados de direitos humanos em vigor no país e com os demais instrumentos internacionais ratificados pelo Estado brasileiro.

10/11/2022

INTRODUÇÃO

É pertinente destacar que a lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime), tem natureza jurídica específica e legal, qual seja, “aperfeiçoar a legislação penal e processual penal”.

Desse modo, o Pacote Anticrime, exaltou não somente, o sistema acusatório no processo penal comum, mas sim, todo o Sistema Acusatório no Processo Penal Constitucional Brasileiro Comum e MILITAR, o que por si só ratifica a natureza jurídica da lei que expressa no seu artigo 1° o seu objeto nuclear.

Art. 1º Esta lei aperfeiçoa a legislação penal e processual penal.

Dito isso e levando em consideração a redação do art. 311 do Código de Processo Penal, de 03 de outubro de 1941, que sofreu duas alterações (lei 5.349/67 e 12.403/11), sempre apresentou redação absolutamente INCOMPATÍVEL com a ORDEM CONSTITUCIONAL, que enfim, foi corrigida com o advento da lei 13.964/19 que alterou e suprimiu a expressão “ofício” do mesmo dispositivo.

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. (Redação dada pela lei 13.964, de 2019).

SILÊNCIO “ELOQUENTE” EQUIVOCADO

A mesma interpretação deve ser dada ao art. 254 do Código de Processo Penal Militar (decreto-lei 1.002, de 21 de outubro de 1969) já que a lei do Pacote Anticrime silenciou sobre a mesma questão emblemática, que futuramente, será objeto de intervenção Ativista Constitucional do Poder Judiciário para reconhecer a incompatibilidade material da norma com a Constituição Cidadã de 1988.

Art. 254. A prisão preventiva pode ser decretada pelo auditor ou pelo Conselho de Justiça, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade encarregada do inquérito policial-militar, em qualquer fase deste ou do processo, concorrendo os requisitos seguintes:

 (...)

De fato, existe uma primeira corrente que defende que houve silêncio “eloquente” por parte do legislador, já que o Pacote Anticrime apenas acrescentou o artigo 16-A ao CPPM, não fazendo qualquer menção ao fim da prisão de ofício ou conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva, por exemplo. Contudo, não quer dizer que os membros dos Órgãos de Sobreposição do Poder Judiciário não devam reconhecer, ainda que incidentalmente, a inconstitucionalidade do decreto prisional, de ofício, de determinado auditor ou Conselho de Justiça, já que sempre afrontou o Sistema Acusatório do Processo Penal Constitucional Brasileiro. 

Se partirmos dessa premissa “eloquente”, mas equivocada, jamais poderíamos ter admitido a inversão do interrogatório do réu na Justiça Castrense que só ocorreu em virtude da releitura, correta e morosa, do CPPM sob o viés da Constituição Federal de 1988. Naquela assentada, reconheceu-se, em razão de mostrar-se mais compatível com os postulados que informam o estatuto constitucional do direito de defesa, uma evolução normativa sobre a matéria, de forma que, por ser mais favorável ao réu e por se revelar mais consentânea com as novas exigências do processo penal democrático, a norma contida no art. 400 do CPP, na redação dada pela lei 11.719/08, deveria irradiar efeitos sobre todo o sistema processual penal, ramificando-se e afastando disposições em sentido contrário, mesmo em procedimentos regidos por leis especiais, como é o caso do Código de Processo Penal Militar.

Ora, a redação do art. 302 do Código de Processo Penal Militar permanece intacta, mas a interpretação foi profundamente modificada pela lei 11.719/08 que alterou apenas o art. 400 do Código de Processo Penal Comum, o que indica que o silêncio “eloquente” da norma não é uma premissa ou corrente que se sustenta, pois da mesma forma que lei 13.964/19 (Pacote Anticrime) silenciou sobre o art. 254 do CPPM, a inversão do interrogatório na Justiça Militar passou a ser uma realidade, inclusive vinculante.

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL COMUM        

Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado (Redação da pela Lei n° 11.719, de 2008).   

MILITAR

Art. 302. O acusado será qualificado e interrogado num só ato, no lugar, dia e hora designados pelo juiz, após o recebimento da denúncia; e, se presente à instrução criminal ou preso, antes de ouvidas as testemunhas.

A jurisprudência dos Tribunais Castrenses passaram a refletir e ponderar sobre o contexto em que se deu a alteração do art. 400 do CPP, principalmente, após a decisão do Supremo Tribunal Federal, no HABEAS CORPUS n° 127.900/AM (Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 03.03.2016, DJe 02.08.2016), em sede de Controle de Inconstitucionalidade Incidental (Difuso) que reconheceu, ainda que implicitamente, que a redação do art. 302 do Código de Processo Penal Militar vilipendiava o sistema acusatório pátrio, determinando que a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum devesse ser observada e aplicada aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado.

Tecnicamente, sob o viés constitucional, como deve ser, o simples fato jurídico de inverter o interrogatório é  garantir o cumprimento do objetivo constitucional,  tais como a efetiva defesa do acusado antes do exame da admissibilidade da denúncia; a obrigatoriedade de fundamentação da decisão que recebe ou rejeita a denúncia; interrogatório do acusado somente após a produção da prova; procedimento oral, realizado em uma só audiência, ocasião em que serão ouvidas as testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, interrogado o acusado, produzidas as alegações finais das partes e prolatada a sentença.

Na verdade, a proposta de alteração do referido dispositivo legal (art. 400 do CPP) teve o único objetivo de reconhecer que a realização do interrogatório no início do processo e antes da oitiva das testemunhas não estava em consonância com a Carta Política em vigor nem tampouco com os tratados e convenções sobre direitos humanos, já internalizados no ordenamento jurídico.

Importa notar que o inciso LV do art. 5º da Constituição Federal assentou, de forma indelével, que a legislação processual penal no direito brasileiro, incluindo a legislação castrense, deve adotar o sistema acusatório, ao dispor que:

“LV – Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Nessa mesma linha garantista dos direitos do acusado, foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro o Pacto de São José da Costa Rica, o qual foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 27/1992, com cumprimento determinado pelo Decreto nº 678/1992, relacionando as seguintes garantias:

“Artigo 8º – Garantias judiciais 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) (...); b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.”

A partir do conteúdo da norma constitucional citada e das disposições contidas no Pacto de São José da Costa Rica, era totalmente desconfortável sustentar que o art. 400 do CPP era incompatível com a legislação adjetiva castrense ou que esta última não era omissa, uma vez que o art. 302 do CPM dispõe que o interrogatório, no âmbito da Justiça Militar, deve ser realizado logo após o recebimento da denúncia.

Assim, não havia mais espaço para a tese da não aplicação do referido dispositivo da legislação adjetiva castrense, a fim de que a Justiça Militar não pudesse mais admitir a inversão do interrogatório na instrução criminal.

O que se ouvia corriqueiramente no meio judiciário castrense é que o CPPM não era omisso em matéria de interrogatório e atualmente, que não é omisso sobre a prisão de ofício, e que, por não haver omissão, não seria aplicável o disposto no CPP (art. 400 do CPP que trata do interrogatório ao final do processo e art. 311 do CPP que veda a prisão de ofício), por força do art. 3º do Código de Processo Penal Militar. Porém, é de se ressaltar que não se trata de omissão pura e simplesmente, observável prima facie, mas de norma jurídica de status ordinário (decreto lei) que não fora recepcionada pela Constituição Federal.

Nesta esteira e pautado na discussão apresentada sobre o fim da prisão de ofício na Justiça Militar, é evidente, que a primeira corrente não deve prevalecer, como não prevaleceu no caso análogo apresentado sobre o interrogatório, já que não é a Constituição Federal que deva se adequar ao Código de Processo Penal Militar, mas sim o CPPM que deve buscar nos princípios Constitucionais a melhor adequação e interpretação, ainda que não tenhamos leis especiais alterando expressamente dispositivos infraconstitucionais especiais.

SISTEMA ACUSATÓRIO

Não se pode ter duas ou mais leis tratando da mesma matéria (FIM DA PRISÃO DE OFÍCIO) em sentidos antagônicos.

O que fazer então? Aguardar a boa vontade do legislador que teve a oportunidade de corrigir um erro histórico? De forma alguma, é uma questão isonômica e de hermenêutica, já que o texto constitucional traz subsídios suficientes para uma INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

A liberdade é a regra e a prisão é a exceção e, mais especificamente, na imparcialidade do Órgão Julgador, que ao analisar de ofício conversação ou decretação da prisão preventiva macula o seu senso de imparcialidade e inércia, o qual é base no sistema acusatório brasileiro.

Não ponderar sobre o impacto da lei 13.954/19 que alterou o art. 311 do Código de Processo Penal Comum sobre o art. 254 do Código de Processo Penal Militar é enaltecer o Sistema Processual Penal INQUISITIVO que se caracteriza por haver concentração numa mesma pessoa as funções de acusação e julgamento. Nas palavras de Andrade , ao que se adere, o sistema inquisitivo está formado por dois elementos fixos, que são o princípio inquisitivo e a circunstância de que a abertura do processo poderá ocorrer tanto mediante o oferecimento de uma acusação como de ofício. Surgiu como forma de salvaguardar os interesses de persecução do poder central. Sua prevalência ocorreu nas Idades Média (especialmente) e Moderna, cuja início de sua derrocada se deu exatamente com a Revolução Francesa2.

A partir do momento que a legislação processual penal especial autoriza o Juiz de Direito Militar ou o Conselho de Justiça decretar a prisão preventiva de ofício, quando se tem uma Constituição Federal que indica os sujeitos do processo e apresenta normas-princípios, tais como: inércia, imparcialidade, juiz natural, contraditório, ampla defesa e outros, e não menos importante, o sistema apresenta uma Nova Lei que corrige um dos diplomas do Sistema Processual Penal Brasileiro, no caso o Código de Processo Penal Comum,  é porque não se pode admitir redações inquisitivas e inconstitucionais em um sistema como o nosso, caso contrário, não há que se falar em derrocada do sistema inquisitivo já que o órgão julgador ao decretar a prisão de ofício estaria adiantando o seu juízo de valor antes de apreciar as provas que serão apresentadas pelos demais órgãos, de acusação e de defesa. 

O sistema acusatório, exatamente, pondera ele, funda-se na existência de vários sujeitos processuais, tendo eles funções distintas de acusação, defesa e julgamento, sendo certo que a função investigativa só não pode ser atribuída ao julgador. Na mesma linha, Pacelli de Oliveira3, pontua que “o Poder Judiciário, em um sistema processual penal acusatório, isto é, em um sistema no qual as funções de acusar (daí acusatório) e de julgar são atribuídas a órgãos distintos, não tem poderes investigatórios”. É dizer: a função de apuração preliminar fica a cargo de um órgão distinto do julgador.

Um destaque de extrema relevância, pouco trazida pela grande maioria dos doutrinadores: o “sistema acusatório se caracteriza por contar com dois elementos fixos, que são: o princípio acusatório e o fato de que somente o oferecimento da acusação é que permite o início de seu processo. Os demais elementos invocados pela doutrina (p. ex., os princípios da oralidade, contraditório, publicidade e igualdade de armas) são elementos variáveis desse sistema4.

Por força e amor ao debate, o autor deixa claro que, não há previsão expressa na Constituição Federal de 1988 de que o sistema adotado no Brasil seria o acusatório. Mas tal circunstância não impede que, a partir da compreensão aberta e sistêmica dos princípios, regras e valores insertos na Carta dirigente, possa ser extraída conclusão de que o nosso sistema se pauta pelo princípio acusatório. Com efeito, nos termos do art. 129, I, CF, compete ao Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública. Portanto, o titular da ação penal (ressalvado os casos específicos), de regra, é o “parquet”. E a função de julgar pertence ao Judiciário, observado o princípio (fundamental) do juiz natural.5

Além disso, o inciso IX do art. 129 da Constituição assenta também que poderá o parquet “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade (...)”. Portanto, parece-nos indubitável que referidas disposições expressas, e considerando que é vedado ao Poder Judiciário realizar qualquer ato investigatório, firmam que o modelo processual penal adotado no Brasil (constitucionalmente) é amparado num ideal acusatório.

Segundo, Luigi Ferrajoli6, para que a questão se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária a perfeita igualdade das partes: em primeiro lugar, que a defesa esteja dotada da mesma capacidade e dos mesmos poderes da acusação, inclusive de investigar como defendido pelo ínclito Jurista Dr. Ronaldo João Roth, Juiz de Direito Militar da 1° Auditoria do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo (tese: Investigação Defensiva)7. Em segundo lugar, que se admita seu papel de contraditor em todo momento e grau do procedimento e em relação com qualquer ato probatório.

Basta verificar que ocorrerá a quebra de paridade de armas se presenciarmos a figura do Juiz-Estado instrutor no processo formal, ocupando lugar na instrução sumária, e da exclusão de um defensor inclusive na fase de apuração dos fatos (como era na tradição inquisitiva). É uma questão de lógica, se a figura do Juiz instrutor macula o devido processo legal, o que dizer da possibilidade de decretar a prisão preventiva de ofício quando a parte legítima silencia (acusação)?

Diante desse cenário, poderíamos nos deparar com a seguinte questão: se é incompatível com o sistema acusatório constitucional a prisão preventiva de ofício, também é incompatível com o sistema, o juiz proferir sentença condenatória ainda que o Ministério Público tenha se manifestado, no curso do processo, pela absolvição? 

É dizer: não se apresenta nenhuma - mas absolutamente nenhuma - incompatibilidade com o sistema constitucional vigente o juiz proferir sentença em desconformidade com a manifestação no curso do processo feita pelo Ministério Público. A questão da prisão preventiva é estritamente cautelar, superficial e que deverá ser avaliada exclusivamente pela autoridade policial ou pelo órgão acusador que avaliará as provas cautelares para requerer ou não a prisão. São momentos e questões distintas.  A decretação da prisão preventiva depende de vasto conhecimento no contexto fático probatório do processo, algo apenas superado pela própria sentença judicial, não cabe ao Órgão Julgador iniciar a sua análise de própria vontade, mas sim a pedido do Ministério Público Militar, numa necessária e obrigatória separação de funções no processo penal, como bem lembra Cícero Robson Coimbra8:

“A Constituição de 1988, nesse histórico, inaugurou fase de extrema relevância para o Ministério Público, nunca experimentada, fruto inevitável da exaltação do sistema acusatório no processo penal constitucional brasileiro (comum e militar). Por esse sistema, o órgão responsável por dar o provimento judicial não pode confundir-se com aquele que acusa, embora, em rigor, ambos pertençam ao Estado, que, buscando o equilíbrio necessário no Estado Democrático de Direito, teve o poder, por força do constitucionalismo pós-revolucionário, fracionado em funções. Surge, então, na Constituição Cidadã, o Ministério Público como detentor de função essencial à Justiça, atuando no processo penal (comum e militar) como dominus litis e, eventualmente, como custos legis”.

Todavia, é preciso compreender que há limites sim, e eles estarão na peça acusatória. Frente ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, uma vez exercido este dever poder pelo titular da ação penal, e devidamente recebida a peça acusatória, estabelece-se quais são os limites (no caso concreto) da possibilidade (máxima) de condenação do demandado. Estivesse o juiz atrelado ao pedido formulado no curso do processo (e não na denúncia ou queixa-crime, já recebida), o juiz estaria sempre vinculado ao entendimento do Ministério Público, que, sabemos, não pode ser infenso a controles.

ATO NORMATIVO COMPATÍVEL

Outra questão de destaque é o art. 10 da RESOLUÇÃO 228, de 26 de outubro de 2016, que disciplina os procedimentos a serem adotados para a realização de Audiência de Custódia no âmbito da Justiça Militar da União, que apresenta redação absolutamente compatível com o Sistema Acusatório no Processo Penal Constitucional Brasileiro Militar e com os artigos 310 e 311 do Código de Processo Penal Comum:

Art.  10.  Ao término da oitiva da pessoa presa, o Juiz dará a palavra ao Ministério Público Militar, quando presente, e à Defesa, para manifestação sobre a prisão, proferindo decisão quanto à manutenção ou não da restrição de liberdade.

§ 1º Se houver a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, a autoridade policial será imediatamente comunicada.

§ 2º Havendo relaxamento de prisão ou concessão de liberdade provisória, será expedido alvará de soltura e encaminhado à autoridade policial responsável pelo imediato cumprimento.

§ 3º A medida judicial determinada pelo Juiz que presidir a audiência de custódia, durante o plantão judiciário, não implicará a sua prevenção para atuar no feito.

O dispositivo supracitado apenas determina que será dada a palavra ao Ministério Público Militar e depois à defesa sem mencionar que a autoridade judicial poderá ou deverá decretar a prisão preventiva de ofício, durante a referida audiência de custódia.

Para que fique ainda mais claro, antes da lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), a jurisprudência entendia que o juiz, após receber o auto de prisão em flagrante, poderia, de ofício, converter a prisão em flagrante em prisão preventiva. A conclusão era baseada na redação do art. 310, II, do CPP. Como já delineado, a lei 13.964/19 revogou os trechos do Código de Processo Penal Comum que previam a possibilidade de decretação da prisão preventiva ex officio. Observe que não pode o juiz decretar a prisão preventiva de ofício (sem requerimento).

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL COMUM

Antes da lei 13.964/19         

Art. 282. (...)

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.        Art. 282. (...)

Após a lei 13.964/19 - atualmente

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.

Já o “caput” do art. 310 foi alterado pela lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) para incluir, no texto do Código de Processo Penal, apenas a obrigatoriedade da audiência de custódio, mantendo a redação original do inciso II.

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL COMUM

Antes da lei 13.964/19       

Art. 310.  Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:

(...)

Depois da lei 13.964/19

Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:

(...)

II – Converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou II - Converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou

Conjugando os dispositivos supracitados e a doutrina majoritária, destacamos os ensinamentos do Professor e Membro do Ministério Público Militar da União, Dr. Renato Brasileiro, que a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), proíbe qualquer prisão decretada de ofício pelo magistrado. Veja:

“De acordo com a nova redação do art. 310, II, do CPP, verificada a legalidade da prisão em flagrante, o juiz poderá fundamentadamente converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, hipótese em que deverá ser expedido um mandado de prisão. Para tanto, é indispensável que seja provocado nesse sentido, pois jamais poderá fazê-lo de ofício, sob pena de violação aos arts. 3º-A, 282, §§2º e 4º, e 311, todos do CPP, com redação dada pela Lei n. 13.964/19.” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8ª ed., Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1052).

Fica a indagação: o art. 10 da RESOLUÇÃO n° 228, de 2016 do STM diante do Sistema Constitucional Acusatório se aproxima da redação do art. 311 do Código de Processo Penal ou da redação do art. 254 do Código de Processo Penal militar?

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

COMUM        

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.       (Redação dada pela lei 13.964, de 2019)

MILITAR

Art. 254. A prisão preventiva pode ser decretada pelo auditor ou pelo Conselho de Justiça, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade encarregada do inquérito policial-militar, em qualquer fase deste ou do processo, concorrendo os requisitos seguintes:

(...)

Se não bastasse a jurisprudência dos Órgãos de Sobreposição do Poder Judiciário são uníssonos em pontuar que “não é possível a decretação “ex officio” de prisão preventiva em qualquer situação (em juízo ou no curso de investigação penal), inclusive no contexto de audiência de custódia, sem que haja, mesmo na hipótese da conversão a que se refere o art. 310, inciso II, do CPP, prévia, necessária e indispensável provocação do Ministério Público ou da autoridade policial.

A lei 13.964/19 ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, § 2°, e do art. 311, ambos do Código de Processo Penal Comum, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio requerimento das partes ou representação da autoridade policial. Logo, não é mais possível, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação “ex officio” do Juízo processante em tema de privação cautelar de liberdade.

A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz do art. 282, §2º e do art. 311, significando que se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia, a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP”.

STJ. 5ª Turma. HC 590.039/GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 20/10/2020.

STF. 2ª Turma. HC 188.888/MG, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 06/10/2020 

PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

A redação do art. 254 do Código de Processo Penal Militar para se harmonizar com os princípios Constitucionais do Sistema Acusatório precisa ser declarado inconstitucional sem redução do texto que não se confunde com o princípio da interpretação conforme a Constituição que é uma técnica exclusiva do Supremo Tribunal Federal, em controle de Constitucionalidade, apenas para normas que possibilitem mais de uma interpretação, ou seja quando o aplicador de determinado texto legal se encontrar frente a normas de caráter polissêmico ou, até mesmo, plurissignificativo, deve priorizar a interpretação que possua um sentido em conformidade com a Constituição Federal.  Por conseguinte, uma lei não pode ser declarada inconstitucional, quando puder ser interpretada em consonância como texto constitucional. 

Dessa forma, a técnica de decisão denominada interpretação conforme a constituição deve ser utilizada quando uma norma admite mais de uma interpretação, uma com violação ao texto constitucional, outra não, devendo prevalecer a hermenêutica que esteja harmonizada com a redação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de forma a evitar a declaração de inconstitucionalidade da norma.

Importante salientar que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a interpretação conforme a Constituição pode atribuir ou excluir de uma norma sentido que lhe preserve a constitucionalidade. O Poder Judiciário atua como legislador negativo, eliminando, por serem incompatíveis com o texto da norma Suprema uma ou algumas possibilidades de interpretação constitucional.

Como salientado, a interpretação conforme incide sobre a legislação infraconstitucional, encontra sua morada nas chamadas normas polissêmicas ou plurissignificativas (com duas ou mais interpretações possíveis), isto é, aquelas que podem ser interpretadas de maneiras diversas. Além disso, a interpretação conforme a Constituição em decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal produz eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

A finalidade da técnica da interpretação conforme a Constituição é a manutenção, no ordenamento jurídico, de leis e atos normativos, a fim de que possuam valor interpretativo compatível com a norma constitucional e à aplicabilidade de seus preceitos. Uma de suas finalidades é eleger a solução mais correta e justa para o caso, do ponto de vista dos Princípios e Direitos Fundamentais, verdadeiros paradigmas para a aplicação do Direito Positivado. Por outro lado, a Interpretação Conforme a Constituição é um fenômeno constitucional imperfeito, pois somente atenua a declaração de nulidade em caso de inconstitucionalidade. A técnica da interpretação conforme pode ser utilizada tanto no controle de constitucionalidade difuso (controle de exceção, defesa, incidental ou concreto) quanto no abstrato (controle de ação ou direto).

Dentre as duas espécies de INTERPRETAÇÃO CONFORME entendemos que a única compatível é a INTERPRETAÇÃO CONFORME COM REDUÇÃO DE TEXTO que possibilitaria que a expressão “ofício” do art. 254 do Código de Processo Penal fosse declarada inconstitucional, possibilitando a partir dessa exclusão do texto, uma interpretação compatível coma Constituição.

A título de exemplo ao julgar os autos da ADI n° 1.127/DF, que discutiu a amplitude do exercício das imunidades profissionais do advogado (que compreende imunidade por injúria, difamação ou desacato), o Supremo Tribunal Federal adotou o método de interpretação constitucional por meio do qual considerou que a palavra “desacato” era inconstitucional, pois conflita com a autoridade do magistrado na condução da atividade jurisdicional. A técnica utilizada pela Corte foi de interpretação constitucional conforme com redução de texto ao excluir a expressão “desacato” do § 2° do art. 7° da Lei n° 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) declarando a inconstitucionalidade de certa expressão contida na norma impugnada, de modo que a tornasse compatível com a Constituição Federal. Vejamos:

“A imunidade profissional do advogado não compreende o desacato, pois conflita com a autoridade do magistrado na condução da atividade jurisdicional. O múnus constitucional exercido pelo advogado justifica a garantia de somente ser preso em flagrante e na hipótese de crime inafiançável” – (ADI n° 1.127, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 17-5-2006, P, DJE de 11-6-2010).

Um segundo “case” é a ADPF n° 291 de Relatoria do ministro Roberto Barroso.

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ART. 235 DO CÓDIGO PENAL MILITAR, QUE PREVÊ O CRIME DE “PEDERASTIA OU OUTRO ATO DE LIBIDINAGEM”. NÃO RECEPÇÃO PARCIAL PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 1. No entendimento majoritário do Plenário do Supremo Tribunal Federal, a criminalização de atos libidinosos praticados por militares em ambientes sujeitos à administração militar justifica-se, em tese, para a proteção da hierarquia e da disciplina castrenses (art. 142 da Constituição). No entanto, não foram recepcionadas pela Constituição de 1988 as expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, contidas, respectivamente, no “nomen iuris” e no “caput” do art. 235 do Código Penal Militar, mantido o restante do dispositivo. 2. Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados. 3. Pedido julgado parcialmente procedente. (ADPF 291, Relator (a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 28/10/2015).

Com a supressão da expressão “ofício” o art. 254 do Código de Processo Penal a redação passaria a ser compatível com a Constituição Federal.

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR

ATUALMENTE         

Art. 254. A prisão preventiva pode ser decretada pelo auditor ou pelo Conselho de Justiça, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade encarregada do inquérito policial-militar, em qualquer fase deste ou do processo, concorrendo os requisitos seguintes:

(...)

Interpretação conforme com redução de texto

Art. 254. A prisão preventiva pode ser decretada pelo auditor ou pelo Conselho de Justiça, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade encarregada do inquérito policial-militar, em qualquer fase deste ou do processo, concorrendo os requisitos seguintes:

(...)

Para que fique ainda mais claro e didático, a técnica ou fenômeno da INTERPRETAÇÃO CONFORME, pela via do Controle de Constitucionalidade Difuso, Incidental, Indireto, de Defesa, de Exceção, Subjetivo,  Desconcentrado, Indireto ou Concreto, poderá ser realizado por qualquer pessoa física (neste caso a pessoa jurídica está excluída em virtude de estarmos tratando da liberdade da pessoa humana, salvo a exceção consagrada pela jurisprudência que autoriza a  impetração de HABEAS CORPUS pela pessoa jurídica em face dos sócios) desde que o interessado  argua o incidente de inconstitucionalidade e não requeira a declaração de inconstitucionalidade, que é  um equívoco muito comum entre alguns profissionais do Direito, já que é absolutamente incompatível com o Controle de Constitucionalidade Difuso.

Nas palavras do Douto Professor e Juiz do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, Dr. Paulo Adib Casseb, “o reconhecimento de inconstitucionalidade no controle concreto (incidental, subjetivo, indireto) independe de provocação das partes, uma vez que referida matéria não diz respeito ao pedido da ação. Sendo tema atinente à fundamentação jurídica da decisão, o juiz pode, de ofício, reconhecer na fundamentação do voto ou sentença, a inconstitucionalidade de leis e atos normativos. Acrescente-se, igualmente, que, no controle concreto, é perfeitamente possível à Justiça estadual, comum e especializada, a declaração incidental de inconstitucionalidade de leis federais, afinal, no controle difuso a lei inconstitucional não é invalidada (grifo nosso). Apenas determina-se que não seja aplicada ao caso concreto, ante sua contrariedade à Constituição. Como bem advertia o célebre Presidente da Suprema Corte estadunidense no século XIX, Justice Marshall, na verdade o juiz não invalida a lei: entre a Constituição e a lei, o magistrado opta pela aplicação da primeira e não da segunda, que colide com a lei Maior”.

Assim, o Auditor ou o Conselho de Justiça vindo a decretar a prisão preventiva de ofício, com base no art. 254 do CPPM, em face de determinado acusado ou réu, este poderá requerer a concessão da liberdade provisória ou atacar a decisão pela via da ação mandamental de Habeas Corpus. Neste caso, o interessado deverá inserir na Causa de Pedir da demanda: a) matéria incidental: que é a própria arguição de inconstitucionalidade, observando o prequestionamento e; b) a demonstração fática e de direito que a matéria constitucional é objeto de repercussão geral. Consequentemente, a matéria sendo levada ao Supremo Tribunal Federal, até porque é o único órgão do Poder Judiciário que poderá utilizar-se da técnica da Interpretação Conforme a Constituição, poderá ver seu Direito, finalmente, reconhecido.

DIÁLOGO DAS FONTES

Uma questão paralela e de suma relevância sobre o tema enfrentado é o conflito de normas e a teoria do diálogo das fontes que colide com a ideia de que as leis devem ser aplicadas de forma isolada uma das outras, quando na verdade o ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma unitária.  É de conhecimento que a teoria do diálogo das fontes foi idealizada na Alemanha pelo jurista Erik Jayme, professor da Universidade de Helderberg e trazido ao Brasil por Claudia Lima Marque, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A tese tem o fito de trazer ao intérprete uma nova ferramenta hermenêutica hábil a solucionar problemas de conflito entre normas jurídicas (antinomias) no sentido de interpretá-las de forma coordenada e sistemática, em consonância com os preceitos constitucionais ou seja, resumidamente, o diálogo entre as fontes ora se dará através da aplicação conjunta de duas normas ao memo tempo, ora mediante a complementação de uma norma a outra, ora por meio da aplicação subsidiária de uma norma a outra, o que ao nosso ver,  é muito bem-vinda no Direito Privado, mas incompatível com o Direito Público por dois motivos:

1° entre Normas Constitucionais não há antinomias, mas sim sopesamento de normas;

2° aplicar o diálogo das fontes neste contexto é aplicar conjuntamente duas normas (no caso o CPP e o CPPM) ao mesmo tempo, ora mediante complementação de uma a outra, ora por meio da aplicação subsidiária de uma norma a outra, sendo que uma norma é INFRACONSTITUCIONAL GERAL e a outra é INFRACONSTITUCIONAL ESPECIAL.

Em síntese, o objetivo é impedir de trazermos a baila a discussão que seria possível aplicar a TESE DO DIÁLOGO DAS FONTES que poderia dar margem a combinação de leis, incorrendo numa “Lex Tertia”, vedado pela jurisprudência.

TEORIA DA DUPLA COMPATIBILIDADE

Finalmente, para que não pairem dúvidas, parte da doutrina formada por Juristas do Direito Internacional são adeptos que os todos tratados internacionais guardam relação de paridade normativa com o ordenamento jurídico Constitucional, contudo, preferimos entender como a Suprema Corte Brasileira (Min. Gilmar Mendes do STF, no RE 466.343-1/SP, rel. Min. Cezar Peluso, julg. 03.12.2008, p. 21), de que os tratados internacionais de direitos humanos são normas intermediárias, ou seja, estão abaixo da Constituição, mas acima de toda legislação infraconstitucional.  É mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos, segundo a qual os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.

Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção da pessoa humana. Sob esse ponto de vista – de que, em geral, os tratados internacionais têm superioridade hierárquica em relação às demais normas de estatura infraconstitucional, quer seja tal superioridade constitucional, como no caso dos tratados de direitos humanos aprovados nos termos do § 3º do art. 5° da Constituição Federal, quer supralegal, como no caso dos demais tratados de Direitos Humanos anteriores e posteriores a Constituição Cidadã de 1988, – é lícito concluir que a produção normativa estatal deve contar não somente com limites formais ou procedimentais, senão também com dois limites verticais materiais, quais sejam:

  1. a Constituição e os tratados de direitos humanos alçados ao nível constitucional. Atualmente temos dois tratados internacionais equivalentes a emenda constitucional (aprovados nos termos do § 3º do art. 5º da CRFB/1988): I -  a Convenção de Nova Iorque, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto legislativo nº 186/2008  e promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto nº 6.949/2009 e; II - o Tratado de Marraqueche, aprovado pelo Congresso Nacional por meio do decreto Legislativo 261/2015 e promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto nº 9.522/2018; e
  2. os demais tratados internacionais de estatura supralegal (sempre de direitos humanos) que foram aprovados, ratificados e incorporados ao ordenamento jurídico, mas não nos termos do § 3º do art. 5° da Constituição Federal. Assim, uma determinada lei interna poderá ser até considerada vigente por estar de acordo com o texto constitucional, mas não será válida se estiver em desacordo ou com os tratados de direitos humanos (que têm estatura constitucional) ou com os demais tratados de Direitos Humanos dos quais a República Federativa do Brasil é parte (que têm status supralegal).

Consoante a isso, além de todas as questões ventiladas, onde se demonstrou que a PRISÃO DE OFÍCIO NA JUSTIÇA MILITAR NÃO DEVE PROSPERAR em virtude do advento da lei 13.954 (Pacote Anticrime), da incompatibilidade material do art. 254 do CPPM  com o Sistema Acusatório no Processo Penal Constitucional Brasileiro, que vilipendia Princípios Constitucionais da envergadura da Inércia, Imparcialidade, do Juiz Natural, do Contraditório, da Ampla Defesa, Separação dos Poderes; destacamos mais uma incompatibilidade, pois se extrai dos ensinamentos anteriores que o Decreto lei 1.001, de 21 de outubro de 1969 – CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR – antes de buscar compatibilidade material na Constituição Federal de verificar sua compatibilidade com as NORMAS SUPRALEGAIS, já que desde o advento da Emenda Constitucional n° 45, de 2004 se defende o SISTEMA DA DUPLA COMPATIBILIDADE.

Para que exista a vigência e a concomitante validade das leis, necessário será respeitar-se uma dupla compatibilidade vertical material, qual seja, a compatibilidade da lei com a Constituição e os tratados de direitos humanos em vigor no país e com os demais instrumentos internacionais ratificados pelo Estado brasileiro. Portanto, a inexistência de decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em controle tanto concentrado quanto difuso de constitucionalidade (nesse último caso, com a possibilidade de comunicação ao Senado Federal para que este – nos termos do art. 52, inc. X, da Constituição – suspenda, no todo ou em parte, os efeitos da lei declarada inconstitucional pelo STF), mantém a vigência das leis no país, as quais, contudo, não permanecerão válidas se incompatíveis com os tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é parte.

É o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que foi incorporada ao Direito brasileiro antes da EC 45/2004 e, portanto, tem status supralegal (STF. Plenário. RE 466343, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 03/12/2008). Logo, o art. 254 do Código de Processo Penal Militar, desde 2008 passou a ser inaplicável, pois segundo o STF, toda e qualquer legislação infraconstitucional conflitante com o Pacto de San José da Costa Rica, seja ela anterior ou posterior ao ato

de adesão não pode prevalecer (STF. Plenário. RE 349703, Rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes, DJ 5/6/2009).

O artigo 8 (Garantias Judiciais), em especial item 1 (um) do decreto 678, de 6 de novembro de 1992 (Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969 apresenta todas as características Constitucionais do Sistema Acusatório, que corrobora com o sugerido no presente trabalho, já que não existe Juiz ou Tribunal IMPARCIAL quando as funções dos sujeitos do processo se confundem.

Artigo 8. Item 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

(...)

Definitivamente, o fim da prisão de ofício na Justiça Militar dependerá de uma atuação efetiva por parte dos profissionais do Direito que amam o Direito Militar Constitucional.

-------------------------

1 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas Processuais Penais e seus Princípios Reitores. Curitiba: Juruá, 2008, p. 466.

2 Queda da Bastilha em 14 de julho de 1789.

3 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 18.

4 (ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas Processuais Penais e seus Princípios Reitores. Curitiba: Juruá, 2008, p. 466).

5 A ideia do juiz natural tem origem na Constituição inglesa de 1215, que previa o julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra. Já a institucionalização desse princípio se deu na França. O artigo 17 do título II da Lei Francesa de 24.08.1790 determinava que “a ordem constitucional das jurisdições não pode ser perturbada, nem os jurisdicionados subtraídos de seus juízes naturais, por meio de qualquer comissão, nem mediante outras atribuições ou evocações, salvo nos casos determinados pela lei.”

6 Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 614.

7 PROCESSO n' 0006752-47.201 8.9.26.001

Fabio Tavares Sobreira
Publicista. Professor de Direito Constitucional. Mestrando em Gestão e Políticas Públicas pela FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - FGV. Pós graduado em Direito Público. Autor e coautor de obras jurídicas.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Aplicação da lei 14.905/24: TST uniformiza correção monetária na Justiça do Trabalho

12/12/2024

A lei Federal do mercado regulado de carbono: breves comentários

12/12/2024

Adriane Galisteu e Ayrton Senna tinham uma união estável?

12/12/2024

O sentido da vida é fazer sentido a outras vidas?

13/12/2024

Tema 863 STF: O entendimento do STF quanto a limitação dos patamares da multa punitiva qualificada

13/12/2024