Migalhas de Peso

Sobre greves e sargentos

Em 1982, eu estava cursando o 3º ano da Escola Preparatória de Cadetes de Campinas, instituição voltada à formação dos futuros oficiais do Exército brasileiro.

10/4/2007


Sobre greves e sargentos

Manoel Carlos Toledo Filho*

Em 1982, eu estava cursando o 3º ano da Escola Preparatória de Cadetes de Campinas, instituição voltada à formação dos futuros oficiais do Exército brasileiro.

Fazia parte das atividades dos alunos ditos “veteranos” a visita a unidades militares, de armas diversas, em ordem a tomar contato com as peculiaridades da rotina de cada qual.

Em uma delas, recordo-me de uma breve conversa que um pequeno grupo de alunos, dentre os quais eu me encontrava, manteve com um sargento que circunstancialmente nos recebia em seu setor, e que, em um desabafo tranqüilo, comentou a lógica conferida pela estrutura castrense àqueles que, como ele, se situavam em sua base. Nossa classe, dizia, é a “classe onde tudo é exigido e nada é permitido. Tenho três filhos e, se depender de mim, nenhum será sargento. Se você quer ser militar, vá ser oficial”.

Lembrei-me deste remoto episódio por conta dos recentes e lamentáveis incidentes envolvendo a greve dos controladores aéreos militares, que instaurou o caos nos aeroportos brasileiros.

Como se sabe, o comando da aeronáutica, seguindo as regras em vigor e por todos de antemão conhecidas – inclusive pois, claro está, pelas praças grevistas – decidiu dar voz de prisão aos envolvidos no movimento, no que acabou todavia por ser desautorizado pela autoridade civil.

As conseqüências do ocorrido ainda estão <_st13a_personname w:st="on" productid="em curso. Mas">em curso. Mas algumas considerações merecem ser feitas, de modo que, quem sabe, pela reflexão, possamos nos preparar melhor para eventos similares que acaso se passem no futuro. Assim, vejamos.

As forças armadas, em qualquer país do mundo, e em qualquer época da história, se regeram e se regem pelos princípios da hierarquia e da disciplina. É praxe na caserna afirmar que, sem eles, a força armada se transforma em um bando armado, onde não há comando definido, nem regras claras a seguir. No bando armado, não se sabe ao certo quem manda no quê. E, por isto mesmo, quem eventualmente esteja a mandar hoje, poderá muito bem não mandar rigorosamente nada amanhã.

Dentro de um contexto econômico de cunho capitalista, a greve é um instrumento legítimo de pressão. Trata-se de um mecanismo de equilíbrio do sistema, que dele necessita para não implodir. Não foi por acaso que, tratada inicialmente como delito, ela daí evoluiu para um direito, cujo exercício possui ademais resguardo constitucional. Mas, justamente porque a greve, enquanto ato de força que é, pressupõe, inevitavelmente, um quebrantamento da disciplina e uma afronta direta à hierarquia – uma vez que os trabalhadores estarão se voltando contra quem os comanda - ela foi expressamente proibida nos meios militares.

Todavia, surge aqui um aspecto importante, que nos leva mesmo ao centro do problema.

Os militares, quer se trate de praças ou oficiais, como seres humanos e cidadãos que são, têm suas aspirações, seus ideais, seus objetivos de vida, suas expectativas em relação ao futuro, seja o próprio, seja o de seus familiares. Nesta dimensão, não são diferentes de ninguém. O ato de vestir uma farda não os transforma em autômatos, do mesmo modo que vestir uma toga não torna infalível o bacharel <_st13a_personname w:st="on" productid="em direito. O">em direito. O togado é magistrado, o fardado é soldado. Nada menos, mas também nada mais.

Por aí já se percebe que a questão é mais complexa do que à primeira vista possa parecer. Militares amotinados merecem cadeia? Seguramente, pois tais são as regras. Mas, o que os levou a se amotinar? E, se as causas que para tanto contribuíram acabarem por se demonstrar relevantes e consistentes, o que fazer então com os responsáveis pelas mesmas?

O fato é que insurgências no meio castrense nunca rebentam do nada. Elas não surgem sem mais nem menos. Sempre há sinais claros que as antecedem, e que demonstram que algo não vai bem no interior do quartel. Aos poderes constituídos incumbe perceber e interpretar estes sinais, e preventivamente agir diante deles, evitando assim que as coisas caminhem para um ponto de ruptura institucional. E foi exatamente isto o que, a toda evidência, faltou neste episódio.

Não cabe aqui adentrar na seara concernente ao preparo – ou à ausência dele – das autoridades que legalmente detinham o dever de administrar e debelar a crise. Este julgamento a opinião pública saberá fazer melhor do que ninguém. O que interessa nesta sede examinar é se, no contexto brasileiro, há, em tal dimensão, canais adequados de comunicação e contenção dos conflitos. E, na minha opinião, a resposta é negativa.

Com efeito. Aos militares não se permite qualquer manifestação pública de desagrado, que não aquelas externadas pelos seus comandantes e, mesmo assim, em caráter reservado. Ocorre ademais que nem sempre o comando sabe ou quer levar para consumo externo aquilo que se passa nas entranhas da instituição. E por isto mesmo que, como várias vezes já ocorreu, os cônjuges e familiares dos militares da ativa, paralelamente ao pessoal da reserva, é que acabam por assumir a frente do movimento reivindicatório, indo dizer ao governo e à sociedade aquilo que aos interessados diretos não se permite declarar abertamente. Forma-se um quadro irreal: os militares fingem que não estão falando, as instituições fingem que não estão ouvindo e, via de regra, o problema que motivou a celeuma continua lá, e não raro até aumenta de tamanho.

É preciso pois acabar com isto. E a melhor forma de fazê-lo é, a meu ver, continuar proibindo a greve aos militares, mas permitir que as lideranças formadas em seus níveis associativos expressem livremente seus pontos de vista, sem que neste comportamento se vislumbre, só pelo exclusivo e singelo ato de exercê-lo, insubordinação ou indisciplina. É necessário, em resumo, tirar a mordaça dos militares da ativa, e fazê-lo sem distinção de posto ou graduação. O que obviamente não significa que se lhes permita afrontar o ordenamento jurídico ou as instituições. Trata-se pura e simplesmente de deixá-los falar, para que a sociedade possa avaliar até que ponto eles têm ou não razão. E, na medida em que esta prerrogativa esteja assegurada em lei, a sua utilização, nos termos e limites em que a norma a preveja, não configurará desrespeito ou irregularidade, não vulnerando por conseguinte os princípios da hierarquia e da disciplina, as duas vigas mestras da estrutura militar.

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*Juiz do Trabalho e Doutor em Direito do Trabalho pela USP





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