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A nova regulamentação da prescrição no TCU

Embora tenha sido uma notável evolução a edição da Resolução 344/22-TCU, alguns pontos ainda restaram nebulosos, certamente permanecendo como alvos de intensas discussões.

3/11/2022

A prescrição se afigura como tema de recorrentes discussões no Tribunal de Contas da União, merecendo uma nova análise diante da edição da recentíssima Resolução 344/22-TCU, de 11 de outubro de 2022.

É natural que os jurisdicionados do Tribunal de Contas da União busquem uma estabilidade das relações jurídicas, através da determinação de um prazo claro e indiscutível para que suas contas não possam ser analisadas pela corte em face do decurso do tempo.

Isso porque, não é incomum que gestores, após muitos anos do término dos seus mandatos, sejam notificados pela Corte de Contas da União para responder sobre a eventual utilização de recursos federal.

Tal situação tem gerado apreensão demasiada, em razão da dificuldade de obtenção de documentos e rememoração dos fatos, quando os questionamentos remontam um período longínquo.

Traçadas estas considerações, esclarece-se que a matéria era anteriormente regulamentada pela Instrução Normativa 71/12-TCU, cujo art. 6º, II, assim dispunha:

Art. 6º Salvo determinação em contrário do Tribunal de Contas da União, fica dispensada a instauração da tomada de contas especial, nas seguintes hipóteses:

[...]

II - houver transcorrido prazo superior a dez anos entre a data provável de ocorrência do dano e a primeira notificação dos responsáveis pela autoridade administrativa competente;

O prazo superior a dez anos, contados da ocorrência do dano e a primeira notificação, ao nosso sentir, apresentava-se como excessivamente extenso, inviabilizando a defesa em muitas circunstâncias.

Além disso, o posicionamento do Tribunal afastava incompreensivelmente as disposições constantes na lei 9.873/99, que dispunha sobre o prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta, estabelecendo claramente o prazo quinquenal para a consolidação da prescrição. Veja-se:

Lei 9.873/99

Art. 1o Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

§ 1o Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.

§ 2Quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal.

Art. 2o Interrompe-se a prescrição da ação punitiva:

I – pela notificação ou citação do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital;

II - por qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato;

III - pela decisão condenatória recorrível.

IV – por qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória no âmbito interno da administração pública federal.

Importa chamar atenção, nesta ocasião e para fins de comparação com o texto estabelecido na Resolução 344/22-TCU, para o fato de que o marco temporal que inaugura a contagem do prazo prescricional estabelecido na lei 9.873/99 decorre da “data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado”.

A aplicabilidade do prazo prescricional estabelecido na lei 9.873/99 fora objeto de insurgências por diversos juristas perante o Supremo Tribunal Federal, como se pode citar, por exemplo, do caso do Mandado de Segurança 32.201/DF, cuja argumentação expendida, a princípio e dentre outras coisas, pelo Colendo TCU, foi no sentido de que os dispositivos em tela, ambos da, não se aplicariam à Corte, uma vez que esta não exerce o poder de polícia, mas sim atividade de controle externo, defendendo, desta feita, a aplicabilidade da prescrição decenal, sob o fundamento da utilização do art. 205, do Código Civil.

Respeitado o entendimento então apresentado pela Corte de Contas nos autos supracitados, não se torna sustentável a manutenção de uma prescrição decenal, quando a fundamentação empreendida se baseia nas disposições do Código Civil, tendo em vista a existência de previsão sobre a matéria em norma de direito público, no caso a lei 9.873/99.

Neste sentido, fora a decisão, ainda monocrática, do Ministro Relator, Luís Roberto Barroso, no já citado Mandado de Segurança 32.201/DF. Veja-se:

“Ementa: TRIBUNAL DE CONTAS. APLICAC¸A~O DE PENALIDADE. PRESCRIC¸A~O. 1. E' plausível a incidência do prazo prescricional quinquenal às multas aplicadas pelo Tribunal de Contas da União. 2. Medida liminar deferida.

(...)

A autoridade impetrada sustenta nas informações que não exerce poder de polícia, e sim controle externo previsto constitucionalmente. Assim, entende inaplicável a lei 9.873/99, e, em razão da inexistência de disposição específica acerca de prazo prescricional, defende a incidência do lapso decenal geral, previsto no art. 205 do Código Civil. No entanto, como já' defendi em estudo sobre o tema (‘A prescrição administrativa no direito brasileiro antes e depois da lei 9.873/99’, in: Temas de direito constitucional, tomo I, 2a ed., 2006, p. 495-532), o direito administrativo tem autonomia científica, razão pela qual não ha' nenhuma razão plausível pela qual se deva suprir a alegada omissão com recurso às normas de direito civil, e não às de direito administrativo.

Como se sabe, o prazo prescricional referencial em matéria de direito administrativo e' de cinco anos, seja contra ou a favor da Fazenda Pública, como decorrência de um amplo conjunto de normas: Decreto 20.910/32; CTN, arts. 168, 173 e 174; lei 6.838/80, art. 1º; lei 8.112/90, art. 142, I; lei 8.429/92, art. 23; lei 12.529/11, art. 46; entre outros.”

(MS 32.201/DF – Relator: Luís Roberto Barroso).

Tal decisão fora igualmente reforçada no Mandado de Segurança n. 35971TP/DF, em decisão agora da lavra do Ministro Marco Aurélio, firmada no dia 14/2/19. Veja-se:

"Decorridos mais de 8 anos entre o fato supostamente lesivo e a intimação do particular, o Estado não poderia impor o ressarcimento ou a punição, seja na via administrativa, seja na judicial. Não se deve admitir – considerada a Carta que se disse cidadã~, a trazer ares democráticos ao Direito Administrativo – a irrestrita atuação do Tribunal de Contas da União, no que voltada a recompor danos ao erário. Faze^-lo implicaria assentar poder insuplanta'vel do Estado, a obrigar o cidadão a guardar documentos indefinidamente para a própria defesa.

Conforme ressaltado no recurso extraordinário no 669.069, relator ministro Teori Zavascki, no qual se concluiu pela incidência da prescrição sobre pretensões decorrentes de ilícitos civis, a Constituição Federal, antes de versar a estruturação do Estado, disciplinou direitos dos cidadãos, não se podendo conceber que tenha dado passo a implicar quebra do sistema, lançando a imprescritibilidade de ação patrimonial. O constituinte foi explícito no tocante às situações jurídicas a afastarem a prescrição, indicando-as nos incisos XLII e XLIV do artigo 5o, de forma limitada e absolutamente excepcional, apenas no campo penal, e não no cível, nem, muito menos, no patrimonial.

O Plenário, no precedente, sinalizou entendimento estrito quanto ao alcance da parte final do art. 37, § 5º, da Lei Maior – ao qual não se pode conferir interpretação alargada –, assentando a necessária superação do que decidido no mandado de segurança no 26.610. Esse foi o motivo a ensejar o reconhecimento da repercussão geral da matéria veiculada no recurso extraordinário 636.886 – Tema no 899 –, pendente de julgamento: a prescrição da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisões do Tribunal de Contas.

O que ocorre, tradicionalmente, no Direito? O quinquênio a reger a prescrição – ou a possibilidade de a Administração suplantar, ela própria, certa situação, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello. Verifica-se o mesmo prazo relativamente a` ação a ser ajuizada pela Fazenda, assim como por aquele prejudicado por ato do Estado – Decreto 20.910/32. Mais ainda: esse e' o lapso aplicável, por força da lei 4.717/65, a` ação popular e a` ação de improbidade, nos termos do art. 23, inciso I, da lei 8.429/92. E' observável, também, ante o poder-dever de autotutela administrativa – art. 54 da lei 9.784/99. Atentem, alfim, para a integral incidência, quanto a` atuação sancionatória do Tribunal de Contas da União, da lei 9.873/99, conforme decidido pela Primeira Turma no mandado de segurança no 32.201, relator ministro Lui's Roberto Barroso.

Descabe admitir que o Poder Público, na seara patrimonial, cruze os braços, permanecendo com poder exercitável a qualquer momento. A evocação da segurança jurídica, como garantia da cidadania diante de guinadas estatais, confere relevância a` passagem do tempo. Por isso ha' a prescrição, a alcançar a pretensão, a ação e a decadência, que apanha e fulmina o próprio direito. Nesse contexto, deve o Tribunal de Contas da União levar em conta o lapso de 5 anos para proceder a` notificação daquele que busca responsabilizar por danos ao erário.

3. Defiro a liminar, suspendendo os efeitos da condenação imposta pelo Órgão impetrado por meio da deliberação no 439/18, formalizada no processo de tomada de contas especial no 002.673/2012-6".

(MS 35971TP/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio)

Um novo capítulo desta novela agora se apresenta com a Resolução 344/22-TCU, que foi aprovada com o intuito de adequar o entendimento do Tribunal de Contas da União ao disposto na lei 9.873/99, na forma aplicada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5509.

Antes de adentrar especificamente no teor da citada Resolução, cabe uma rápida digressão sobre a ADIn 5509/CE, que tratava de análise da constitucionalidade dos arts. 76, parágrafo 5º, 78, parágrafo 7º, da Constituição Estadual do Ceará e art. 35-A a 35-D, da lei estadual 12.160/93, na redação dada pela lei estadual 15.516/15.

Como resultado da análise da ADIn 5509/CE, o Supremo Tribunal Federal entendeu, dentre outras coisas, que o estabelecimento do prazo quinquenal com lapso inicial da contagem partindo da data da ocorrência do fato era incompatível com o regime federal de controle externo (leis 8.443/92 e 9.837/99), pois que favorecia, no caso da Tomada de Contas Especial, a desídia do gestor responsável pela abertura do procedimento interno.

Desta forma, a Resolução 344/22-TCU estabeleceu o prazo prescricional quinquenal, contudo alterando o início da contagem, em relação ao que estabelecia a Instrução Normativa 71/12-TCU e a lei 9.837/99. Veja-se:

Art. 2º Prescrevem em cinco anos as pretensões punitiva e de ressarcimento, contados dos termos iniciais indicados no art. 4°, conforme cada caso.

Art. 4° O prazo de prescrição será' contado:

I - da data em que as contas deveriam ter sido prestadas, no caso de omissão de prestação de contas;

II - da data da apresentação da prestação de contas ao órgão competente para a sua análise

inicial;

III - do recebimento da denúncia ou da representação pelo Tribunal ou pelos órgãos de controle interno, quanto às apurações decorrentes de processos dessas naturezas;

IV - da data do conhecimento da irregularidade ou do dano, quando constatados em fiscalização realizada pelo Tribunal, pelos órgãos de controle interno ou pelo próprio órgão ou entidade da Administração Pública onde ocorrer a irregularidade;

V - do dia em que tiver cessado a permanência ou a irregularidade permanente ou continuada.

Como se pode inferir do dispositivo acima transcrito, a prescrição, quando não se tratar de prestação de contas, passa a contar da data do conhecimento (e não mais da ocorrência do dano) da irregularidade ou do dano, quando constatados em fiscalização realizada pelo Tribunal, pelos órgãos de controle interno ou pelo próprio órgão ou entidade da Administração Pública onde ocorrer a irregularidade.

Na prática, pode, de fato, reduzir o prazo para cinco anos. Mas, também, de igual modo, o prazo prescricional pode superar os dez anos, antes adotados pela pacífica jurisprudência do Tribunal de Contas da União, conforme a Instrução Normativa 71/12-TCU, na hipótese da Corte ou do Controle Interno não terem tomado conhecimento específico da situação.

Neste tocante específico, residem as maiores críticas sobre a nova resolução do TCU. A mudança, a bem da verdade, deveria gerar uma maior segurança jurídica e estabilidade das relações, o que pode não ocorrer, quando o fato somente chegar ao conhecimento da Corte vinte ou trinta anos depois de ocorrido, por exemplo.

Não sendo só, embora a fundamentação da ADIn 5509/CE tenha abordado a questão, não se estava nestes autos tratando da constitucionalidade do art. 1º da lei 9.873/99, razão pela qual, ao nosso sentir, a contagem inicial partindo da data da ocorrência do dano continua em pleno vigor.

Inobstante a este ponto, a Resolução 344/22-TCU avançou sobre um tema igualmente importante, que é a prescrição intercorrente, determinando no art. 8º a sua incidência, quando o processo ficar paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho. Veja-se:

Art. 8º. Incide a prescrição intercorrente se o processo ficar paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, sem prejuízo da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.

§ 1° A prescrição intercorrente interrompe-se por qualquer ato que evidencie o andamento regular do processo, excetuando-se pedido e concessão de vista dos autos, emissão de certidões, prestação de informações, juntada de procuração ou subestabelecimento e outros atos que não interfiram de modo relevante no curso das apurações.

§ 2° As causas impeditivas, suspensivas e interruptivas da prescrição principal também impedem, suspendem ou interrompem a prescrição intercorrente.

Imprescindível destacar, que a resolução buscou se aprofundar no tema, determinando que não se interrompe a prescrição naquelas movimentações que não influenciam o curso das apurações, servindo apenas de meros expedientes, como emissão de certidões, prestação de informações, juntada de procuração, por exemplo; o que era não raro de se ver em discussões sobre a aplicabilidade do art. 1º, parágrafo 1º, da lei 9.873/991.

Desta forma, conclui-se que, embora tenha sido uma notável evolução a edição da resolução 344/22-TCU, alguns pontos ainda restaram nebulosos, certamente permanecendo como alvos de intensas discussões.

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§ 1o  Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.

Andrei Aguiar
Sócio Aguiar Advogados. Presidente da Associação Brasileira de Advogados, Regional do Ceará.

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