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Resolução do CFM carece de fundamentação e fragiliza o acesso à tratamento médico à base de cannabis

As medidas foram indispensáveis para que o médico pudesse voltar a exercer sua profissão sem bloqueios descabidos e retrógrados, e, em objetivo final, promovesse o acesso à saúde do paciente.

28/10/2022

A polêmica Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.324, de 11 de outubro de 20221, que restringia o uso terapêutico do Canabidiol, teve seus efeitos suspensos após apenas uma semana de vigência2.

Alvo de críticas de múltiplo setores, a norma previa que os médicos só poderiam prescrever produtos à base de cannabis para o tratamento de epilepsia refratária em crianças e adolescentes com síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou complexo de esclerose tuberosa, ficando expressamente proibido o uso de produtos da planta para outras doenças e grupos de pacientes, o que significava, na prática, restrição das hipóteses de tratamento de Cannabis Medicinal até então reconhecidas pelo CFM.

Além disso, limitava os médicos no tocante à promoção de informações sobre a utilização da Cannabis Medicinal, impedindo o oferecimento de cursos e palestras em eventos diferentes de congressos vinculados à AMB (Associação Médica Brasileira), sendo esses a definição de “ambiente científico” pela Resolução CFM 2.324/22; qualquer médico que descumprisse a Resolução estaria sujeito a responder processos no Conselho Federal de Medicina, com risco de ter seu registro cassado e, por conseguinte, ser-lhe arrancado o direito de exercer a profissão no país.

Mas, por qual motivo? Indagamos: o que levou o Conselho Federal de Medicina optar por restringir as possibilidades de terapias ministradas pelo médico, após anos de avanços em discussões e desmitificação do tratamento através de produtos à base da cannabis? Provavelmente, por falta de fundamento sólido e congruente para responder tal questionamento, a melhor alternativa que restou ao CFM foi de fato a suspensão da norma, única maneira de estancar o lastro de danos propagados pela sua impensada publicação. A Resolução, num só ato, parece afrontar a legislação vigente e a competência da Anvisa, desrespeitar direitos fundamentais, retroagir socialmente e coibir a prática médica no Brasil.

Ao se expandir o olhar à conjuntura jurídico-normativa de demais atos vigentes, em primeiro lugar, a Resolução CFM 2.324/22 contrapõe outras regulamentações quanto ao uso de Cannabis Medicinal, a exemplo das Resoluções da Anvisa RDC 327/193 e 660/224, que possibilitam tanto a venda direta de alguns produtos no Brasil, inclusive abarcando o processo de industrialização, como também a importação de medicamentos ainda não liberados para comercialização em nosso país; nas normas da Anvisa não se têm, diferente do que quis implantar o CFM, limitação para patologias e/ou assertividade quanto ao “público-alvo” que poderia se utilizar dos produtos, sendo permitida a procura por quaisquer pacientes quando não houver mais respostas em tratamentos ordinários.

A legislação regulatória cresceu e se desenvolveu, enquanto o posicionamento da entidade médica retroagiu para antes mesmo da primeira diretriz publicada pelo conselho, a Resolução CFM 2.113/14. Hoje, no Brasil, já temos 18 (dezoito) itens derivados da Cannabis liberados pela Anvisa para comercialização direta no Brasil5 e a cada dia se aumenta a procura de produtos à base de Cannabis para fins medicinais. Em relação à importação, de acordo com o levantamento da BRCANN, Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides6, em 2021 foram concedidas 40.191 novas autorizações para importação, o que mostra um aumento de 110% se comparado a 2020.

É inegável que a vigência de Resolução CFM 2.324/22 representa retrocesso quanto à possibilidade de utilização da Cannabis Medicinal: estima-se que mais de 100 mil pessoas façam algum tratamento utilizando a planta, a ser, muitas das vezes, para patologias e/ou públicos distintos dos determinados em norma do Conselho Federal de Medicina. A entidade médica precisa lidar com a realidade atual, que aponta expansão da oferta e procura de medicamentos do gênero, ao invés de implantar diretrizes anacrônicas para observação de nossos médicos. O Conselho Federal de Medicina acaba por coagir a não-ministração do tratamento pela classe médica sabendo que a prescrição é requisito indispensável à busca dos produtos. Como resultado, desencadeou em sua única semana de vigência cenário de desamparo aos pacientes que fazem uso de produtos à base da cannabis, pacientes esses que, muitas vezes, enfrentam doenças graves e/ ou crônicas.

A partir da imposição de restrições infundamentadas à prescrição, tem-se clara afronta a direitos fundamentais garantido pela nossa Constituição da República, onde a proteção ao direito à saúde, ao acesso universal e democrático ao tratamento médico e, sobretudo, à dignidade da pessoa humana, são ultimamente resguardados.

Para além do direito à saúde do paciente, a Resolução, de igual maneira, fere direitos resguardados à prática médica. Há margem para entendimento de restrição do Direito à Informação e à produção científica, uma vez que a Resolução CFM 2324/22 coíbe conhecimento de estudos ao tema, sob a imposição de participação de médicos apenas em eventos previamente autorizados pela Associação Médica Brasileira; fere-se, também, a autonomia médica dos profissionais legalmente habilitados para prescrever o tratamento médico, direito esse previsto em Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.931/097).

Até a Resolução CFM 2.324/22, a discussão ligada à Cannabis Medicinal estava envolvendo mudanças em atos do Poder Executivo e em Leis Brasileiras para garantir ainda mais o acesso da população necessitada a produtos derivados da planta, que são demasiado encarecidos e vários ainda prescindem de importação individual pelo paciente. Para quem acompanha o avanço dessa legislação no Brasil, esperava-se que o movimento atual fosse também no sentido de fomentar a condução de estudos e de trabalho científico, em ambiente seguro e regulado, a fim de aprofundar o conhecimento das indicações e contraindicações dos derivados da cannabis em seu uso medicinal. Mas a comunidade médica e a sociedade civil precisaram parar e “voltar algumas casas” para discutir questões que acreditavam já estarem superadas e que caminhavam na contramão do avanço esperado.

Cabe trazer informação já bastante disseminada de que muitos países ao redor do mundo, inclusive dentro da américa latina, já superaram ou estão superando os mitos envolvendo o desenvolvimento de medicamentos à base de substâncias extraídas da cannabis. No Estado da Califórnia, nos Estados Unidos, existe departamento próprio (Department of Cannabis Control) que licencia e regula os negócios relativos à cannabis em sua circunscrição. Isso não significa que exista falta de cuidado para com o uso de produtos derivados da planta pela população, mas sim que o Estado assume a existência de benefícios medicinais a partir do uso da planta e lida com o assunto aplicando a seriedade necessária, através de ambiente altamente regulado para a exploração, industrialização, comercialização e utilização pelos seus cidadãos. Na América do Sul, o Uruguai foi pioneiro mundial na estratégia de posicionar o Estado à frente da realidade quanto ao uso adulto e medicinal da cannabis8, movimento posteriormente seguido por países como a Argentina9 e Chile10, e pela imensa maioria dos países vizinhos.

Após pressão da sociedade civil e da comunidade médica, conforme explicitado ao início deste artigo, o Conselho Federal de Medicina suspendeu os efeitos da Resolução CFM 2.324/22 e abriu nova Consulta Pública entre 24 de outubro e 23 de dezembro de 2022 para rever a norma recém-publicada. Esperamos que normativa mais justa e coerente à legislação e momento social de nosso país seja formulada após o período de contribuição.  

De outra maneira, a manutenção da Resolução CFM 2.324/22, além de atentar contra direitos fundamentais e a liberdade médica, representaria ruptura e desrespeito ao princípio da Vedação ao Retrocesso Social, cujo preceito significa uma proteção (obstáculo) contra inovações legislativas danosas, em favor da legislação anterior que representar avanço social, de modo que garantias relativas a direitos sociais, dentre esses, o direito à saúde, não tenham sua prestação simplesmente mitigada pela nova norma cercadora. A Resolução do CFM retrocede socialmente quanto restringe as hipóteses vigentes nas quais um paciente pode usufruir de tratamento médico sem qualquer justificativa que consubstancie o ato normativo, impondo barreiras ao acesso à saúde do cidadão e ao exercício da medicina.

Portanto, é indubitável a assimetria da Resolução CFM 2.324/22 não só à normatividade vigente, como também aos parâmetros sociais do Brasil, ao representar involução na utilização da Cannabis Medicinal sem prospecção atualizada, fundamentada e isonômica. O uso da Cannabis Medicinal, logo, deve ser garantido àqueles que necessitam da planta, em termos inclusive já autorizados pela Anvisa, independentemente de idade e patologia, sob um aspecto garantista, sem prejuízo do avanço de outros debates que também circunscrevem a matéria.

Vale fazer referência aqui aos diversos Projetos de Decreto Legislativo que foram apresentados por parlamentares visando sustar a resolução e o movimento do Ministério Público Federal de Goiás, da comunidade médica e de pacientes confrontando a decisão injustificada do CFM. As medidas foram indispensáveis para que o médico pudesse voltar a exercer sua profissão sem bloqueios descabidos e retrógrados, e, em objetivo final, promovesse o acesso à saúde do paciente.

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1 RESOLUÇÃO CFM 2.324, de 11 de outubro de 2022. Diário Oficial da União, Brasília.

Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cfm-n-2.324-de-11-de-outubro-de-2022-435843700. Acesso em: 20 de out. de 2022.

2 RESOLUÇÃO CFM 2.326/22, de 24 de outubro de 2022. Diário Oficial da União, Brasília. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2326. Acesso em: 25 de out. de 2022.

3 RESOLUÇÃO DA DIRETORIA COLEGIADA - RDC 327, DE 9 DE DEZEMBRO DE 2019. Diário Oficinal da União, Brasília. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-da-diretoria-colegiada-rdc-n-327-de-9-de-dezembro-de-2019-232669072. Acesso em: 20 de out. de 2022.

4 RESOLUÇÃO RDC 660, DE 30 DE MARÇO DE 2022. Diário Oficial da União, Brasília.

Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-660-de-30-de-marco-de-2022-389908959. Acesso em: 20 de out. de 2022.

5 Anvisa aprova mais três produtos de Cannabis para uso medicinal. Ministério da Saúde, Brasília, 12 de mai. de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2022/anvisa-aprova-mais-tres-produtos-de-cannabis-para-uso-medicinal. Acesso em: 20 de out. de 2022.

6 Vendas de produtos à base de cannabis medicinal de importação mais que dobram no Brasil. Valor Investe, São Paulo, 19 de mai. de 2022. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2022/05/19/vendas-de-produtos-base-de-cannabis-medicinal-de-importao-mais-que-dobram-no-brasil.ghtml. Acesso em: 20 de out. de 2022.

7 RESOLUÇÃO CFM 1.931/09. CFM, Brasília. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf. Acesso em: 20 de out. de 2022.

8 República Oriental del Uruguay. Ley 19.172, 20 de diciembre de 2013. Montevidéu, 2013. Disponível em: https://www.impo.com.uy/bases/leyes/19172-2013. Acesso em: 24 de out. 2022.

9 Nación Argentina. Ley 27.669, 26 de mayo de 2022. Buenos Aires, 2022. Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/ley-27669-365303/texto. Acesso em: 24 de out. de 2022.

10 República de Chile. Decreto Supremo 85, 07 de diciembre de 2015. Santiago, 2015. Disponível em:  https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=1085003 Acesso em: 24 de out. de 2022.

Maria Luiza Xavier Lisboa
Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito - EPD. Advogada do escritório Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.

Ana Luísa Oliveira de Faria
Advogada do escritório Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados. Especialista em Startups, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduada em Direito Processual Civil, Direito Administrativo, Direito do Estado e Direito Privado pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

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