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Os efeitos da interdição civil no direito penal brasileiro

A interdição civil, por si, não é o suficiente para afastar a responsabilidade do autor diante de um fato criminoso previsto no ordenamento penal vigente.

28/10/2022

Diz-se da plena capacidade jurídica ou de direito, toda pessoa apta para adquirir direitos e, por si ou para outrem, assumir obrigações e realizar atos não proibidos por Lei. Essa capacidade, por sua vez, desdobra-se nos ramos do ordenamento legal, como a capacidade política, a capacidade civil e a capacidade penal, por exemplos. Para fins de proteção da pessoa o Direito brasileiro define graus de aptidão para o para o exercício pleno de direitos, quais sejam: a capacidade plena de fato, a incapacidade relativa e, por fim, a incapacidade absoluta1.

 A interdição civil é uma medida judicial, prevista em Lei e que tem por objetivo declarar a incapacidade de determinada pessoa (absoluta ou relativa) que, pode ser transitória ou permanente. O interditado passa a ser assistido para o exercício dos seus direitos e deveres. Frise-se que essa interdição pode, ainda, permanecer limitada (específica) a determinados atos do interditado, como por exemplo, apenas para evitar a dissolução de seus bens (aspecto patrimonial).

A interdição civil, no entanto, não permite a conclusão de que um fato criminoso atribuído ao agente interditado não o considere como o responsável pelo ato delituoso. Para que seja afastada essa responsabilidade penal é necessário a comprovação de que essa pessoa era incapaz de entender o caráter ilício da sua conduta2 No mesmo sentido é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme trecho de julgado abaixo transcrito:

Habeas corpus. INJÚRIAS QUALIFICADAS EM CONTINUIDADE DELITIVA. Paciente interditada judicialmente para os atos da vida civil, que foi citada pessoalmente. Alegada nulidade do ato, porquanto não procedida na pessoa de sua Curadora. Não ocorrência. Inexistência de notícia sobre interdição, quando da citação, bem como porque não houve qualquer prejuízo, posto que ela foi devidamente assistida pela Defensoria Pública durante todo trâmite processual. Ademais, tratando-se de incapacidade parcial (relativa), a citação inicial do processo penal instaurado contra a paciente poderia ter sido dirigida a sua pessoa. Interdição civil que não importa em automático reconhecimento de sua inimputabilidade penal, a qual precisa ser comprovada por incidente próprio previsto nos arts. 149 a 154 do CPP. Acrescente-se, ainda, que há trânsito em julgado do édito condenatório, de forma que a defesa poderá debater a questão da higidez mental da paciente, caso queira, em ação de revisão criminal. Inexistência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. (TJ-SP - HC: 20798622520198260000 SP 2079862-25.2019.8.26.0000, Relator: Diniz Fernando, Data de Julgamento: 17/06/2019, 1ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 25/06/2019).

A tese acima é decorrente do próprio entendimento do Superior Tribunal de Justiça, senão vejamos:

TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. DETERMINADO PELO STJ, NOS AUTOS DO HC.º 23.456/PA, A SUBMISSÃO DO PACIENTE AO EXAME DE INSANIDADE MENTAL, TAL PERÍCIA ATÉ A PRESENTE DATA NÃO SE REALIZOU POR CULPA EXCLUSIVA DO PACIENTE QUE, INJUSTIFICADA E DELIBERADAMENTE, VEM RETARDANDO O ENCERRAMENTO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. ACUSADO QUE, EM LIBERDADE, ESTÁ ENVOLVIDO NA PRÁTICA DE NOVO CRIME DE HOMICÍDIO, O QUE DEMONSTRA, INDUBITAVELMENTE, A SUA PERSONALIDADE VOLTADA PARA O CRIME. PRECEDENTES DO STJ.

1. O paciente, quando em liberdade, não se submeteu ao exame determinado pela Justiça Pública, retardando, assim, há mais de 03 (três) anos, injustificada e deliberadamente, o encerramento da ação penal.

2. A conclusão do laudo pericial, ora acostado aos autos, produzido no processo de interdição civil do acusado, é válido apenas em relação aos atos de sua vida civil, não sendo capaz de isentá-lo da culpabilidade penal.

3. Tal dúvida somente será solucionada após a realização correta do incidente de sanidade mental do acusado, o qual ainda não se efetivou por culpa exclusiva do paciente.

4. O novo decreto de prisão preventiva expedido em desfavor do acusado foi satisfatoriamente justificado, tendo sido motivado, a teor do disposto no 312, do Código de Processo Penal, na necessidade de se resguardar a ordem pública, em face de seu envolvimento em novo crime de homicídio durante o período em que esteve em liberdade.

5. Precedentes do STJ.

6. Ordem denegada. (HC 49.767/PA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 07/03/2006, DJ 03/04/06, p. 384)

Conclui-se, portanto, que no Direito Penal não basta a demonstração de uma interdição civil para que seja afastada a responsabilidade de um ato visto pelo ordenamento como criminoso, ainda que o agente seja considerado como portador de uma doença mental, à título de exemplo, exige-se saber se o sujeito era ou não totalmente incapaz ao tempo da conduta, bem como se entendia o caráter ilícito do fato cometido. Frise-se, ainda, que nesse exemplo mais austero utilizado (doença mental), revela-se a necessidade de considerar se durante o ilício penal o agente não detinha de intervalos de lucidez3.

Desse modo, é impossível aproveitar o resultado do exame elaborado em face de uma ação cível, servindo o respectivo laudo tão só para suscitar dúvida quanto a eventual responsabilidade de um réu no Direito Penal, bem como para justificar e requerer a instauração do incidente especificamente voltado a apurar sobre a sanidade mental do agente à época do crime4.

Sobre o tema, sabe-se que até mesmo um exame levado a efeito em processo penal não serve para apurar a respeito da imputabilidade em outro feito de idêntica natureza (algo válido, com maior razão, diante de laudo objeto de ação cível, evidentemente imprestável para lastrear a decisão de primeiro grau agora questionada pela Justiça Pública).

________

1 Curso didático de direito civil/ Elpídio Donizetti; Felipe Quintella – 6ª Ed. ver. e atual. São Paulo: Atlas, 2017.

2 O artigo 26, caput, do Código Penal, expressa o sistema biopsicológico, segundo o qual “é inimputável quem, ao tempo da conduta, apresenta um problema mental, e, em razão disso, não possui capacidade para entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento” (Masson, Cleber, “Direito Penal Esquematizado”,10. ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2016, pág. 511).

3 Masson, Cleber, “Direito Penal Esquematizado”,10. ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2016, pág. 514.

4 Art. 149.  Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.

§ 1o  O exame poderá ser ordenado ainda na fase do inquérito, mediante representação da autoridade policial ao juiz competente.

§ 2o  O juiz nomeará curador ao acusado, quando determinar o exame, ficando suspenso o processo, se já iniciada a ação penal, salvo quanto às diligências que possam ser prejudicadas pelo adiamento.

Mauricio Augusto S. Martins
Advogado inscrito na OAB/SP 370.412, formado pela Faculdade Anhnaguera Educacional

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