O ano era 2012. Marck Zuckenberg, então fundador e CEO do Facebook, adquire o Instagram, rede social online de compartilhamento de fotos e vídeos entre usuários, por US$ 1 bilhão de dólares. Um dado inusitado e reflexivo: em 9 de abril do referido ano, data da aquisição, o Instagram contava então com 551 dias de existência (foi criado por um brasileiro em outubro de 2010); o tradicional jornal americano, The New York Times, à época já com mais de um século e meio de existência (161 anos), estava avaliado em US$ 967 milhões de dólares.1
Em 2022, ou seja, uma década após a aquisição por Marck Zuckenberg, o Instagram conta com mais de 1 bilhão de usuários ativos. Alguns dados dão a noção da quantidade de usuários ao redor do mundo que fazem uso do aplicativo2:
- Idade média dos usuários do Instagram:
- Plataformas de mídia social mais usadas em todo o mundo
- Mais usuários do Instagram por país
- As 10 contas mais seguidas do Instagram
Igualmente surpreendentes são os dados atinentes ao período médio que cada usuário passa por dia online no Instagram3:
- O tempo médio gasto no Instagram por dia é de 29 minutos;
- Usuários com menos de 25 anos gastam em média 32 minutos por dia;
- De acordo com esses dados, o usuário médio do Instagram com menos de 25 anos passará mais de oito dias por ano na plataforma;
- Usuários com 25 anos ou mais gastarão 24 minutos por dia, em média;
- De acordo com esses dados, o usuário médio do Instagram com mais de 25 anos passará mais de seis dias por ano na plataforma;
- Em comparação, o usuário médio gasta 1 hora e 15 minutos por dia nas mídias sociais;
- De acordo com esses dados em todas as plataformas, a pessoa média com mais de 18 anos passará mais de 19 dias por ano nas mídias sociais.
De posse desses dados de âmbito global, não chega a ser novidade a constatação de que o Instagram tem verdadeiramente revolucionado a forma como os usuários interagem no cotidiano, sobretudo os da faixa etária entre 18 e 29 anos, pois que têm alterado até mesmo o modo como lidam com o secular dilema: ser e parecer ser.
Nessa esteira, o termo instagramável ou instagrammable toma conta de grande parte da preocupação dos agentes do mercado de consumo, isto é, tanto de consumidores (por fotos e vídeos publicáveis, conforme o “novo regramento social”), quanto de empresas (com o fornecimento de estruturas aptas a “subirem” para a rede social de forma instagramável).
Pois bem. Em recente (outubro de 2021) estudo de campo promovido por Angélica Luísa Castro Alves para o Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), a referida autora concluiu que instagramável ou instagrammable significa “a representação da exaltação de um estilo de vida ideal oposto à realidade”.4
As principais características, prossegue Angélica Alves, giram em torno da construção de rotinas focadas em representações dos seus comportamentos, dos seus gostos e dos seus estilos de vida que envolvam as publicações no Instagram. Quando questionados acerca do que tornava algo instagramável, os entrevistados partilharam várias opiniões distintas, tendo-se observado, contudo, três categorias principais entre os entrevistados do quadro instagramável: a) decoração; b) tons neutros; e c) comida.5 A finalidade? A romantização da vida (Platão já alertava antes de Cristo que o real é sempre uma cópia imperfeita do ideal6).
Fato é que, para bem e para mal, o que se percebe, e esta é a conclusão da pesquisa acima mencionada, que todos os caminhos do instagramável levam para um só destino: a da maior importância do “parecer ser”. Observe-se:
No decorrer da entrevista, a importância dada à estética instagramável teve como base um ponto em comum em relação a todos os participantes: os seguidores. A estética instagramável funciona socialmente, sob o pressuposto de que todos os utilizadores concordam com estas noções e que, consequentemente se reflete num aumento de seguidores, likes e comentários.7 (negritou-se)
A refletir sobre essas constatações, válida é a lembrança de Nelson Rodrigues, na crônica Vítima Obrigatória, para quem: o ser humano é o único que se falsifica para impressionar outro. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até a morte, o seu nobilíssimo rugido. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo”8.
E sobre essa delicada temática da desumanização do ser humano em ambiente virtual, isto é: entre o “ter” e o “ser”, entre o “ser” e o “parecer ser” na sociedade de consumo, toma-se por empréstimo um conto da melhor literatura, qual seja, do Bruxo do Cosme Velho, o qual, posto tenha escrito de sobremaneira na segunda metade do século XIX (nasceu em 1839 e morreu em 1908), continua, de seu modo míope (a vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam9), a espreitar o encoberto, escrutinar o que não está à vista – o que foge ao olhar distraído que se atém às coisas do dia e da superfície.10
Pois bem.
Aproveitando-se das possibilidades interpretativas permitidas pela literatura para fins de análise da sociedade e de seus costumes instagramáveis, por via da analogia e da metáfora, traz-se à lume o conto O espelho, de Machado de Assis, publicado originalmente em 1882, em que o autor disserta sobre o que denomina de “esboço de uma nova teoria da alma humana”.
O conto é ambientado numa pequena casa, no Alto de Santa Teresa, Rio de Janeiro (RJ), onde cinco amigos discutem a respeito de questões humanas e igualmente dos “mais árduos problemas do universo”.11 Jacobina, personagem principal da trama, anota sua grande tese: “a de que todos os seres humanos têm duas almas e não apenas uma, como era comum se imaginar; uma alma interior e uma alma exterior. E mais: a alma exterior, embora tivesse simetria oposta com a alma interior, por vezes tomava conta desta e se apoderava do ser humano.”12
Ao ser indagado do porquê de tal tese, Jacobina exemplificou que certa feita, quando contava então com vinte e cinco anos de idade, havia sido nomeado alferes13 da Guarda Nacional. A emoção provocada na família foi tamanha que sua tia, a viúva Marcolina, que morava em um sítio distante, pediu que ele lhe fizesse uma visita e levasse a farda de alferes para que ela o pudesse ver fardado.
Jacobina foi até o sítio e lá foi tratado com muita pompa e elogios por todos: sua tia, um cunhado dela que lá morava, os escravos. Todos não mais se referiam a ele pelo nome de batismo, mas o chamavam de “o alferes”, “senhor alferes”, “nhô alferes”. A deferência foi tamanha que a tia mandou colocar, no quarto onde ele ficaria hospedado, a melhor peça de mobília da casa: um grande e requintado espelho. Deu-se à época que a sua prima, que morava em outras terras, foi acometida de uma doença grave, que a deixou à beira da morte. Desorientada, a tia Marcolina foi correndo ver a filha acompanhada pelo cunhado, deixando Jacobina sozinho no sítio.
Chega-se ao ponto alto do conto: ao ficar sozinho, pois até os poucos escravos e cachorros da casa fugiram logo na primeira noite, Jacobina passou a verificar que a alma exterior havia ido embora, em razão de não ter mais sido bajulado, elogiado e mimado por todos que o viam fardado.
Assim, Machado de Assis descreve que Jacobina andava depressivo e sequer conseguia se ver ao olhar, sem a farda, para o espelho que sua tia Marcolina havia lhe dado. A solução encontrada? Colocou o fardamento e passou a mirar-se diariamente no espelho, ocasião em que se sentia íntegro e garboso, o que decorria, segundo o autor, da imagem externa que era projetada de alferes. Não se ousará aqui tentar parafrasear Machado — eis o irretocável trecho do conto:
Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir (...).15
Ora, o senhor Jacobina só se percebia como ser humano a partir da simbiose entre o ser e o ter, dando maior ênfase, como visto, ao exterior, ao objeto, ao que a sociedade entende por sendo o ser humano Jacobina, e não propriamente ao que ele era no campo ontológico. Não é exatamente o que ocorre com os instagramáveis de 2022...?
Ao encontro da tese aqui levantada observa-se o estudo de Beatriz Beraldo intitulado “Um espelho, duas almas e algumas teorias (...)”. Nele, a autora aponta o fato de o objeto de consumo ser cada vez mais presente à construção do imaginário do ser humano integral. Atente-se:
A solidão e o espaço vazio na casa roubam-lhe o sossego da sua “alma interior” que só é recuperado mediante o uso da roupa de alferes, sua “alma exterior”. Vale realçar, portanto: a função ainda não exercida, mas já impressa na sua identidade, está materializada do lado de fora do corpo, em um bem de consumo. Assim, observando a vital interação entre o personagem machadiano e o fardamento de alferes, podemos afirmar que é precisamente nesta interação que se pode compreender o aspecto simbólico e comunicacional de todo bem de consumo. (negritou-se)16
Em ligeira conclusão: se é certo, por um lado, “que sem um mínimo de bem-estar material não se pode sequer servir a Deus”, como dizia Santo Agostinho17; de outro, não se pode deixar que o assédio ao consumo desemboque a ponto de desumanizar ou mesmo coisificar18 os vulneráveis dessas relações de consumo, trocando a alma exterior pelo que se tem de mais intrínseco, que é o valor da dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1.º), menina dos olhos de ouro, ao lado da democracia, da Constituição Federal de 1988.
---------------------------
1 Instagram, em 551 dias, vale mais do que o New York Times, de 160 anos. Disponível em: < https://correiodoestado.com.br/tecnologia/instagram-em-551-dias-vale-mais-do-que-o-new-york-times-de-160-anos/146164/> . Acesso em 23 out. 2022.
2 Dados e gráficos retirados de: Quantas pessoas utilizam o Instagram em 2022? Disponível em: < https://agenciamoll.com.br/quantas-pessoas-utilizam-o-instagram-em-202/> . Acesso em 23 out. 2022.
3 Fonte: Instagram. Disponível em: . Acesso em 23 out. 2022.
4 ALVES, Angélica Luísa Santos da Fonseca Castro. O admirável mundo instagramável do comportamento de consumidor no Instagram. Instituto Universitário de Lisboa. Disponível em: . Acesso em 23 out. 2022.
5 ALVES, Angélica Luísa Santos da Fonseca Castro. O admirável mundo instagramável do comportamento de consumidor no Instagram. Instituto Universitário de Lisboa. Disponível em: . Acesso em 23 out. 2022.
6 NATORP, Paul. Teoria das ideias de Platão: uma introdução ao idealismo: volume I. São Paulo: Editora Paulus, 2012.
7 ALVES, Angélica Luísa Santos da Fonseca Castro. O admirável mundo instagramável do comportamento de consumidor no Instagram. Instituto Universitário de Lisboa. Disponível em: . Acesso em 23 out. 2022.
8 RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante: primeiras confissões crônicas. 5ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 80.
9 ASSIS, Machado de. A semana: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 1902.
10 In: SOBRAL, João Jonas Veiga. Como Machado de Assis pode relativizar sua vida. 1ª ed., São Paulo: Buzz Editora, 2019, p. 17.
11 ASSIS, Machado de. O espelho: Esboço de uma nova teoria da alma humana, 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 154-162.
12 ASSIS, Machado de. O espelho: Esboço de uma nova teoria da alma humana, 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 154.
13 ASSIS, Machado de. O espelho: Esboço de uma nova teoria da alma humana, 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 159.
14 “1 MIL Antigo posto militar abaixo de tenente que equivale à atual patente de segundo-tenente.”. In: Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Disponível em: < https://michaelis.uol.com.br/busca?id=q51M> . Acesso em 22 out. 2022.
15 ASSIS, Machado de. O espelho: Esboço de uma nova teoria da alma humana, 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 162.
16 BERALDO, Beatriz. Um espelho, duas almas e algumas teorias: Análise do conto “O Espelho” sob o olhar da antropologia de consumo. Entremeios: Revista Discente da Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio. Edição 14, vol. 2, jul-dez, 2018, p. 9.
17 In: BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. 1ª ed. Belo Horizonte, Fórum, 2012, p. 20.
18 Sobre o tema, Luís Roberto Barroso anota um resumo das proposições kantianas: “a conduta moral consiste em agir inspirado por uma máxima que possa ser convertida em lei universal; todo homem é um fim em si mesmo, e não deve ser instrumentalizado por projetos alheios; os seres humanos não têm preço nem podem ser substituídos, pois eles são dotados de um valor intrínseco absoluto, ao qual se dá o nome de dignidade.” In: BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013, p. 72.