“Quando construí a montanha, pensei que um dia ela teria fim. Acho que morri e a montanha cresceu além de mim".
Fausto Wolff
CONSIDERANDO reiteradas consultas sobre carta-protesto e decadência (no Direito dos Transportes);
CONSIDERANDO artigos e ensaios que escrevi, sempre com forte amparo jurisprudencial e o objetivo de viabilizar saudavelmente o ressarcimento em regresso;
CONSIDERANDO a importância desse tema para o Direito dos Seguros, especialmente o ressarcimento em regresso do seguro de transportes;
CONSIDERANDO que juízos particulares não se confundem com os universais e a solução eficaz ao caso concreto não é veraz aos em geral;
CONSIDERANDO a necessidade de preservar direitos e interesses regressivos contra transportadores sem prejudicar as relações entre segurados e seguradores;
CONSIDERANDO o constante desejo de harmonizar os legítimos interesses de todos os atores do contrato de seguro de transportes: seguradoras, corretores, segurados, estipulantes e beneficiários;
CONSIDERANDO que algumas condutas e práticas não mais se ajustam aos princípios e objetivos do Direito Contemporâneo, informado que é por princípios como o da razoabilidade, da proporcionalidade, da efetividade, da isonomia e da equidade;
CONSIDERANDO que é necessário desonerar, tanto quanto possível, segurados sem que se tenha por afetado o direito de regresso dos seguradores;
CONSIDERANDO que nem sempre o que é ideal corresponde ao que é real e que temos, todos, que ser guiados pela arte do possível;
CONSIDERANDO que muitos segurados em boa-fé nem sempre conseguem cumprir algumas formalidades que são próprias do cenário e do direito de transportes;
CONSIDERANDO o objetivo sincero que todo segurador tem de cumprir sua missão institucional e que as negativas de pagamentos de indenizações são exceções, não regras;
CONSIDERANDO que é sempre melhor litigar, como autor da ação, contra o causador de dano, buscando o ressarcimento, do que ser réu em cobrança demandada por segurado;
Resolvi escrever esta carta-aberta com informações que espero sejam úteis aos que trabalham com o Direito dos Seguros e o Direito dos Transportes, fazendo-o de modo simples, prático, objetivo e, espero, didático, na forma de breve notas, verdadeiros bullets points.
Nunca deixo de comentar que o direito é dialético por excelência e que os entendimentos firmados pela Justiça podem mudar subitamente. O que ora escrevo e apresento, contudo, é fundado em muito estudo, na prática diária da advocacia e na lógica jurídica.
Nenhuma afirmação, aqui, é absoluta e impassível de crítica, mas todas foram e são testadas positivamente nos litígios diários e podem, ao menos neste momento, ser aplicadas com boa segurança:
I
É possível substituir a carta-protesto por outros meios de prova da ocorrência do sinistro de transporte: TFA (Termo de Faltas e Avarias), Siscomex-Mantra, Boletim de Ocorrência, documentos e instrumentos emitidos pelos próprios transportadores.
II
É possível protestar por meio de e-mail, ainda que não haja, por parte do interessado, sistema seguro de comprovação de efetivo recebimento.
III
Em se tratando de carta-protesto encaminhada pelo correio, sempre com aviso de recebimento, o prazo de dez dias pode ser considerado para a postagem em si, não necessariamente para o recebimento.
IV
É válida e eficaz a carta-protesta recebida pela portaria de condomínio onde o transportador é sediado ou tem filial ou representante;
V
No caso de cadeia logística de transporte com vários atores, tem-se como razoável entender que o protesto formulado contra um deles a todos aproveita;
VI
O agente de cargas tem legitimidade para receber a carta-protesto, sendo dispensável apresentação contra seus parceiros operacionais;
VII
Só se exige carta-protesto em transportes nacionais ou internacionais com término no Brasil.
VIII
Se o sinistro ocorreu durante o depósito, não há necessidade de carta-protesto contra o depositário.
IX
O art. 754 do Código Civil, que trata da carta-protesto, não é exigível ao segurador sub-rogado.
X
Em casos de roubos, extravios, tombamentos (sem continuidade dos transportes), enfim, de não entrega da carga, não há necessidade de carta-protesto.
Considerações especiais:
Sobre a afirmação do item IX, convém observar entendimento cada vez mais forte na Justiça de que o direito de regresso do segurador não nasce com o inadimplemento do contrato de transporte, mas pelo pagamento da indenização ao segurado. Quando um segurador demanda o ressarcimento, ele não o faz necessariamente contra um transportador, porém um autor de dano. Saí de cena o Direito dos Transportes e entra o Direito Civil. A ausência (ou intempestividade) da carta-protesto não gera decadência ao segurador sub-rogado.
Por isso é que se diz que o art. 754 do Código Civil somente obriga as partes contratantes do transporte, não quem lhe é estranho. Se o segurador entendeu ser risco de transporte e efetuou o pagamento de indenização tem o direito de buscar ou regresso, independentemente de a carta-protesto ter ou não sido lançada pelo segurado, dono da carga, contra o transportador.
Enfim: Não posso afirmar que sempre será assim, segundo os dez itens ora expostos, e que jamais haverá decadência contra o segurador sub-rogado em caso de ausência ou de intempestividade da carta-protesto. Se o fizesse, seria temerário. Posso, porém, afirmar que esses pontos são fortes, abraçados pela jurisprudência e podem ser bem considerados pelos interessados. Penso sinceramente que sinistros bem regulados, com rico acervo probatório sobre a conduta faltosa do transportador, ultrapassam discussões sobre decadência por eventuais ausências ou intempestividades de cartas-protestos. A experiência profissional assim me autoriza dizer.
Importante lembrar que o art. 754 do Código Civil existe, por imperativo lógico, para proteger transportadores de alegações duvidosas, para não dizer indevidas, de donos de cargas muito tempo depois de concluídos os transportes. Ela não serve, portanto, como salvo-conduto à irresponsabilidade irrestrita nem como biombo de danos. Flexibilizar sua interpretação é caminhar com os princípios fundamentais do Direito, homenagear a reparação civil, buscar a responsabilização de autores de danos e enxergar a lei com as lentes de ordem moral.
Toda disputa judicial implica riscos e o tema ainda está em aberto e é alvo de muitas discussões. Não obstante, dou testemunho fiel de que nos últimos anos, postulando em defesa dos direitos regressivos dos seguradores sub-rogados contra transportadores, perdi apenas um caso por decadência pela ausência de carta-protesto (e não substituição pelo Siscomex-Mantra), no TJRJ, e que hoje se encontra no STJ, aguardando julgamento e com boas perspectivas de reversão.
Evidentemente que não posso me imiscuir nas políticas internas das seguradoras sobre o assunto. Isso seria absolutamente indelicado de minha parte, senão impertinente. Compreensível que algumas seguradoras sejam mais rigorosas do que outras em relação ao assunto. Não há nada errado nisso. Posso, porém, em boa-fé, visando o bem comum, sugerir que a questão da carta-protesto não seja fundamental na decisão de se pagar ou não indenizações de seguros.
A ausência (ou intempestividade) da carta-protesto não é irrelevante, decerto; igualmente, muito aproveita a orientação constante dos segurados para que tenham, tanto quanto possível, cuidado especial com sua apresentação. Todavia, problemas de ausência ou de intempestividade podem ser solucionados com razoável, para não dizer bom, grau de segurança e o ressarcimento exercido de modo robusto.
Enquanto isso, sigo dialogando com nossos parlamentares a fim de suprimir o art. 754 do Código Civil ou, ao menos, lhe dar redação mais flexível.
Montevidéu, primavera de 2022 a.D.
“Deixe-se aqui tudo o que é suspeito; mate-se aqui toda vileza”
Dante Alighieri