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Cobrança de taxa de manutenção pela associação de moradores em loteamento fechado

Invocar direito fundamental à liberdade de associação para livrar-se obrigação do rateio é inadequado, pois que a cotitularidade verificada diz respeito ao interesse comum de todos os moradores.

21/10/2022

Diante do Tema 492 do STF é necessário enaltecer um pensamento crítico ao tema com alicerces sólidos nos princípios e regras existentes. A causa de pedir para cobrança das taxas de manutenção contra proprietários de imóveis situados nos loteamentos fechados devem se situar no campo contratual. Vamos para construção do argumento.

Da necessidade de uma melhor qualidade de vida, as pessoas acabam criando novas formas de melhor usufruir do solo.

Uma dessas formas é encontrada nos chamados loteamentos fechados ou como agora proclamados loteamentos de acesso controlado diante da lei 13.465/17. Trata de um fato social originado da insegurança que atinge as cidades e que não possuíam legislação específica até o advento da referida lei.

Nesses loteamentos de acesso controlado há, inexoravelmente, o surgimento de um condomínio atípico1 que acaba surgindo dentro deles regras de convivência criadas pelos proprietários de lote, exemplo típico do conflito que se estabelece entre o fato e o Direito.

Como em regra geral os serviços públicos não são prestados pelo Poder Público nesses empreendimentos, a sociedade civil cria mecanismos para absorver essa omissão a fim de obter manutenção, conservação de suas propriedades, bem-estar e, em especial, segurança. Todavia, muitas vezes não há norma específica para a espécie em questão e as existentes não se adaptam à situação de fato.

Mecanismos de acesso à função social da propriedade são abraçados e, então, apesar do direito subjetivo tutelado pelo ordenamento jurídico brasileiro não ter sido alterado pode-se afirmar que a natureza jurídica da propriedade é vista, nesse caso, em um sentido predominantemente social.

E por que predominantemente social? Essas pessoas procuraram propositadamente esse tipo de empreendimento. É da natureza humana e desse grupo, em especial, que a ele faz sentido se associarem para que cada uma dessas pessoas dentro da sua esfera individual atinja seus objetivos. A ideia de ser humano sempre está atrelada ao contexto convivencial no qual vive e interage com outros indivíduos.

Verifica-se que desde o nascimento o ser humano faz parte de uma família, comunidade local, igreja, escola, clube etc., e em todos esses grupos cada um encontra uma forma de criar normas que disciplinem o grupo e o comportamento que deve ter cada membro.

A importância do Direito no conjunto das articulações sociais e dos fatores da vida dos grupos será diferente conforme culturas e épocas. A ideia de Direito que serve como objeto do pensamento jurídico corresponde àquele que só se desenvolveu depois que os convívios sociais cresceram com sentido e contornos aceitos pela sociedade.

Na verdade, cada instituição que é criada em que cada indivíduo participa, acaba visando um fim a ser atingido por aquele grupo, e, assim, acaba criando normas de coexistência.

O grupo social com características próprias compreenderão normas de conduta aprovadas e desaprovadas pelo grupo e os meios de coação para assegurar a obediência àquelas normas.

Num primeiro momento, pode-se concluir que essas normas jurídicas são postas em loteamento fechado surgem em virtude de um ato concomitante de escolha como resultado de opções consuetudinárias ou fundadas na autonomia voluntária dos particulares, que também podem estabelecer normas de conduta e regulamentar suas respectivas relações jurídicas. Mas nada impede, também, de emanar tanto do legislador quanto do juiz.

Atentem-se: norma é produto da formação social. A autoridade apenas declara a norma jurídica, induzindo-a dos fatos, das relações objetivas exteriores, e, uma vez declarada, ela adquire vida própria, destacando-se da vontade de quem a estabeleceu e vive acompanhando as vicissitudes da vida social, já que para este fim existe.

O loteamento fechado ou de acesso controlado surge, então, como manifestação desse dinamismo social, reflexo da manifestação espontânea de um agrupamento de pessoas que desejam viver em condomínio sem que de direito estejam em situação condominial, prevista na lei 4.591/64.

Esses loteamentos também surgem por inúmeros fatores, pelo crescimento irregular nas cidades, violência urbana, falta de recursos do Poder Público, dentre outros. Surgem justamente nos loteamentos urbanos quando seus moradores os fecham com guaritas e cancelas como forma de impedir a violência, conservar o acesso ao loteamento, às praças e ruas, o que poderão fazê-lo pela modalidade de concessão ou permissão de uso de bem público, tudo mediante autorização/permissão pública a uma Associação ou Administradora.

Diante disso, inegável o surgimento de condomínio atípico dentro desses loteamentos, pois acabam não possuindo a estrutura de condomínio de direito (lei 4.591/64 e arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil), mas existe de fato uma constituição assemelhada a este com despesas a serem rateadas em razão da sua estrutura. Mas não é só!

Se não fosse só por essas questões ditas acima, temos concepções formadas por força dos fatos que ocorrem no seio social que forçadamente se vê na avaliação da realidade fática, qual seja, reconhecer que há verdadeiro contrato de fato entre as partes envolvidas.

Se há evidências reais, concretas e efetivos serviços prestados; se há uma escolha por parte do contratante/morador em viver naquele empreendimento que oferece serviços independentemente de ser ou não associado, há aceitação tácita dos serviços prestados e será devida a cobrança decorrente do contrato pelo comportamento concludente das partes envolvidas.

Reforçando a proposição levantada: se não fosse só pela ideia da fonte da obrigação ser o contrato, também há de analisarmos que com as alterações no contexto social a prática reiterada que se projeta no mundo jurídico, o costume é fonte de direito e os efeitos da prática reiterada acarretam consequências jurídicas.                                 

Os anseios sociais não têm como ser medidos só pela legislação vigente. Novas situações e cada vez mais complexas acabam surgindo necessitando de respaldo no ordenamento jurídico mesmo que neste não sejam prescritas em lei essas novas situações.

O condomínio atípico é manifestado dentro dos loteamentos urbanos decorrente de política inadequada do Poder Público e até mesmo da má redação legislativa do art. 36-A da lei 6.766/79 que ultimou no Tema 492 do STF que fará parte de outra análise teórica.

Repita-se: condomínio atípico nasce de um mecanismo voltado a preencher a omissão pública nos loteamentos fechados, sem se preocupar com os moldes impostos pelo legislador. O fato de o condomínio atípico não encontrar previsão normativa específica - ainda que haja breve regulamentação atual no art. 36-A da lei 6.766/79 - fato é, que a jurisprudência e doutrina construiu desde a década de 90 fonte paralela para suprir tal lacuna.

É da vontade humana (autonomia da vontade) que se cria a Associação de Moradores, mas não trata de uma Associação comum a todas as outras que tratam de assuntos que promovem assistência social, cultural, representação política, defesa de interesses de classe, filantropia. Ela é sui generis. Sim, sui generis porque apesar de ser sem fins lucrativos não significa não tenha lucros e ainda, não está voltada com foco classista, assistencial, mas de interesse coletivo focado na realização da função social da propriedade, ou seja, trata de ponderação constitucional de interesses. E todos os moradores desses loteamentos buscam a exaltação, a essencialidade e direção à função social de sua propriedade e que acaba levando intrinsecamente na projeção da propriedade individual.

Liberdade de Associação X Função Social da Propriedade

O jurista alemão Robert Alexy2, ao explicar sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade a dimensionou em três elementos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Essa proporcionalidade em sentido estrito é a lei da ponderação em si. A partir dela avalia-se a relação custo-benefício entre a ação praticada e os fins obtidos.

O princípio da proporcionalidade é instrumentalizado por esse sopesamento. Só será no caso concreto que se verificará qual interesse deve efetivamente prevalecer e que não é simples, sabemos disso.

Assim, veja-se. Há interesses de relevância constitucional dos dois lados, não se pode simplesmente ignorar um deles. O que se defende aqui não é abrir mão da liberdade de associar-se, mas em enxergar que ao lado deste direito fundamental há outro igual direito que trata da realização da função social da propriedade que não sobrepujando-a pode levar a consequências devastadoras e não desejadas pelos próprios entes sociais.

A propriedade se justifica socialmente diante de sua funcionalidade que lhe dá contornos e de respeito aos interesses coletivos, e assegura a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional que é norteador de toda legislação inferior à Constituição Federal.

Se é assim:

  1. o proprietário de lote em loteamento fechado faz parte de uma comunidade que aderiu à hipótese associativa, e que, ainda que de forma indireta, obtém vantagens dos serviços (comprovadamente) prestados pela Associação além da valorização imobiliária (arts. 884 CC).
  2. O comportamento concludente das partes faz demonstrar que a vontade, ou seja, o consentimento (aliado na autonomia da vontade na escolha desse loteamento) seja comunicado mediante uma declaração que não necessariamente tenha sido feita da forma expressa, mas resulta de outros comportamentos do sujeito, de uma manifestação tácita da vontade.
  3. Essa manifestação tácita não implica em dizer que tenha sido o silêncio sua declaração de vontade, mas, sim, as suas ações (uso da portaria, segurança, limpeza, manutenção das vias, área verde, etc), determinados comportamentos, que fará manifestar sua vontade.
  4. De um comportamento deste tipo, silencioso ou não, mas inequívoco de molde a denunciar de forma clara, imediata, forte, real, no quadro das circunstâncias existentes, a vontade de concluir o contrato, a tudo diz-se comportamento concludente.
  5. A vontade de aceitar, de aderir, pode não ser expressa, mas resulta implicitamente, de forma operativa, da atitude e da atividade do sujeito. Tomando a matéria analisada pela oferta e prestação de serviços, verifica-se que há aceitação tácita do adquirente de lote em loteamento fechado que se utiliza desses serviços, criando-se uma relação contratual de fato. O gozo dos serviços pelo proprietário importa na aceitação tácita da oferta.

Conclui-se, nesse primeiro momento, que a aceitação dos serviços prestados pela Associação gera um efeito negocial, que fixa o sujeito vinculado por seu comportamento, pela conduta que assume perante determinada circunstância fática.

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1 Atipicidade decorre da ausência dos elementos essenciais na constituição de um condomínio: ausência de áreas comuns, síndico, fração ideal atribuída a cada unidade autônoma e instituição de condomínio no Registro de Imóveis.

2 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.

Raquel Helena Valesi
Doutora e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, Pós Graduada em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professora de Direito Civil na Universidade São Judas Tadeu e de Cursos de Extensão na Escola Superior de Advocacia e Escola Paulista de Direito. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SP e IBERC. Parecerista de Revistas Jurídicas e Consultora Jurídica em São Paulo

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