Na última semana, o Conselho Federal de Medicina publicou uma Resolução que restringe o uso de medicamentos derivados da Cannabis sativa apenas para o tratamento de epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais, na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa.
A surpresa se deu não apenas pelo retrocesso da norma, que veio revisar a Resolução 2.113/14, mas especialmente pela forma discricionária com que pretende retirar a autonomia do médico na prescrição dos fármacos para casos além dos previstos pelo CFM.
Ao contrário do que entendem os conselheiros que aprovaram a Resolução, os estudos sobre a Cannabis trouxeram evoluções consideráveis nos últimos anos, e o uso experimental de seus derivados para amenizar dores crônicas e tratar doenças neurológicas se provou muito positivo, especialmente em pacientes refratários aos tratamentos convencionais.
As agências reguladoras internacionais – assim como a nacional, Anvisa – estão atentas às evidências científicas demonstradas na última década e têm aprovado o registro de diversos fármacos contendo canabidiol (CBD). Até mesmo a importação por pessoa física, para uso próprio, foi autorizada pela agência brasileira, em 2020, desde que, evidentemente, o paciente apresente documentação que justifique a prescrição, nos termos da RDC 335/20.
Infelizmente, o desconhecimento e a disseminação de desinformação sobre os derivados da Cannabis sativa podem gerar preconceitos em relação aos medicamentos, uma vez que a matéria prima pode ser a mesma da utilizada pelos que fumam a maconha em sua forma “recreacional”, e que é considerada uma droga ilícita no país.
No caso da maconha, ou marijuana, a erva fumada pelos usuários normalmente é de origem desconhecida, e pode apresentar diversas concentrações de THC (tetra-hidrocanabinol), que é o responsável pelos efeitos alucinógenos. O CBD (Canabidiol) é um outro princípio ativo da planta e possui propriedades analgésicas, além de outras que ainda estão sendo desvendadas. THC e CBD são, portanto, moléculas distintas, não devem ser confundidas.
Além disso, os produtos autorizados pela Anvisa precisam passar por um processo complexo de purificação, o qual elimina toda a toxicidade e qualquer traço do THC, até chegar a um nível de pureza predefinido. São mais de 200 etapas para se obter um produto puro.
A fim de demonstrar o absurdo da situação, tracemos um paralelo entre o uso de heroína ou da maconha e a prescrição de um opioide ou de um canabidiol. Faria sentido proibir os fármacos simplesmente porque existe uma droga ilícita obtida a partir da mesma matéria prima? Segundo o dito popular, veneno e remédio se diferem pela dose e, nestes casos, também pela formulação química do produto.
Por outro lado, não pode ser justificada a proibição de algo potencialmente danoso, se utilizado de forma equivocada, quando existem benefícios importantes a serem considerados. Do contrário, quase nada seria legalizado.
A utilização de novas tecnologias e o intercâmbio de informações em âmbito global têm acelerado a evolução da medicina, tanto para a identificação de novas doenças, que antes não eram descritas, como para os tratamentos. Uma realidade perceptível pelo enorme número estudos publicados diariamente, baseados nas evidências obtidas em ensaios clínicos realizados ao redor do mundo. Neste contexto, torna-se extremamente relevante a atualização do profissional médico.
Avesso a esta realidade, o CFM, ao publicar a nova resolução, justifica seu posicionamento apresentando, ao final, a referência a estudos muito antigos, datados especialmente no período de 1970 a 1990, sem citar qualquer pesquisa realizada nos últimos sete anos.
Analisando o texto da Resolução, supõe-se (espantosamente) uma certa confusão entre a planta e o fármaco. O art. 2 dispõe sobre a vedação ao médico em prescrever “Cannabis in natura, para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol”. Em seguida, no art.3, fica vedado ao médico “a prescrição do canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista nesta Resolução, salvo em estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP”. A menção à prescrição de “Cannabis in natura”, do art.2, dá a entender que o Conselho pretende proibir o uso da planta, matéria-prima, o que não foi objeto da última Resolução, nem tampouco das regulamentações por parte da Anvisa.
Coincidentemente, estas disposições remetem ao posicionamento da Associação Brasileira de Psiquiatria que, em julho deste ano, publicou um editorial contra uso da Cannabis em tratamentos psiquiátricos. Talvez, igualmente por acaso, a ABP foi a única Associação de Especialidade Médica que publicamente elogiou a nova Resolução (e o elogio foi publicado no site do CFM).
O que se registrou entre os médicos foi um sentimento geral de indignação, tanto em relação à possível desassistência aos pacientes que já fazem uso da medicação, mas também quanto à inédita restrição à autonomia médica, imposta pelo órgão que deveria defender as prerrogativas da classe.
Mais espanto ainda, causou a proibição dos médicos em se manifestar em palestras ou congressos sobre Cannabis. Uma censura que, além de extrapolar a competência de um conselho profissional, é inconstitucional, por ferir a liberdade de expressão. E ainda, tão grave quanto, é a tentativa de impedir o compartilhamento de conhecimento científico.
A Resolução foi publicada no dia 11 de outubro e, no dia 15, quando se comemorou o dia do neurologista, muitos aproveitaram as “felicitações” publicadas nas redes sociais oficiais do CFM para registrar nos comentários o sentimento de incredulidade diante da situação. Nos dias seguintes as mensagens demonstrando irritação se multiplicaram. Os escritórios de advocacia já estão sendo consultados por profissionais da saúde, pacientes e familiares angustiados frente ao problema que se criou.
Vale lembrar que o art.18 do Código de Ética Médica prevê que o profissional deve respeitar todas as resoluções emanadas pelos conselhos, sob pena de ser processado e punido administrativamente. Sendo assim, caso a Resolução não seja revista, restará aos médicos impactados, para honrar o juramento hipocrático, especialmente em relação aos princípios da beneficência e não maleficência, ajuizar ação judicial para continuar prescrevendo o canabidiol aos pacientes que dele necessitam ou se arriscar a sofrer sanção pelo órgão profissional.
Para os demais médicos, será importante a mobilização frente a medidas autoritárias que remetem a períodos inquisicionais, em que a ciência era considerada uma ameaça e seus operadores, hereges.