Na segunda parte do artigo intitulado “Trade Dress e concorrência desleal”, foram abordados o conceito de Trade Dress e seu mecanismo de proteção. No presente artigo, em conclusão ao tema, será analisado os limites à proteção do Trade Dress.
Limites à proteção do Trade Dress
É cediço que diante da ausência de legislação que regulamente a questão afeta ao Trade Dress, bem como em razão da impossibilidade do registro do conjunto-imagem, a problemática se torna por demais subjetiva quando analisada pelo Poder Judiciário, devendo, então, o julgador verificar, a partir da análise do caso concreto, se realmente o suposto usurpador se utilizou de meios efetivamente fraudulentos para desviar a clientela de outrem.
Ora, não há vedação, no ordenamento jurídico pátrio, à utilização de conjunto-imagem semelhante, por si só, ao de outro concorrente. O que se busca impedir é a concorrência desleal que eventualmente (e não necessariamente) resulte dessa utilização.
Além disso, cumpre salientar que a ação judicial que sopesa eventual violação ao Trade Dress, normalmente, sob o argumento de que o produto (ou serviço) do outro empresário está causando confusão junto ao público consumidor (e consequente concorrência desleal), formula pleitos com o objetivo de que haja a abstenção de fabricar, comercializar, divulgar ou utilizar, a qualquer título, os produtos assemelhados ao produto ou serviço da parte autora.
Ou seja, intenta-se, com razão ou não, impedir que o concorrente possa desenvolver sua atividade “livremente” no que tange àquele produto/serviço controvertido.
Pois bem. Fazendo um adendo necessário, não se pode olvidar que os direitos de propriedade intelectual consistem em exceção ao princípio da livre-concorrência e à própria livre-iniciativa, fundamentos do sistema econômico brasileiro, nos termos do quanto estipulado no artigo 170 da Constituição Federal.
Ainda, importante destacar que Constituição Federal, entre os direitos e garantias fundamentais, dispostos em seu art. 5º, incisos XXVII e XXIX, preconiza a proteção às criações intelectuais, estipulando, expressamente, a proteção às criações industriais, marcas e outros signos distintivos.
Marcelo Junqueira Inglez de Souza1, com relação aos benefícios da livre concorrência, leciona que:
“Assim, em um sistema de livre concorrência, quanto maior o número de fabricantes de produtos ou prestadores de serviços a competir em um mercado geográfico, maiores serão a oferta e qualidade desses produtos e serviços, e menores serão os seus preços”.
O que se pretende dizer é que um ambiente restritivo deve ser visto como exceção e, jamais, como regra. Afinal, a concorrência é um pressuposto essencial do sistema de economia de mercado e decorre da competição entre empresários.
E, sob o aspecto constitucional e econômico, a livre concorrência é absolutamente legítima (e deve até mesmo ser fomentada), desde que não viole direito de outrem.
Voltando ao tema objeto do presente artigo, cabe esclarecer que as características inerentes ao Trade Dress devem ser individuais e únicas, visto que os consumidores de determinados produtos ou serviços, muitas vezes, de forma imediata, os identifica através dos elementos contidos no seu conjunto-imagem, inclusive antes mesmo de verificar a marca correlata (ou o nome fantasia em caso de estabelecimento).
É a distintividade, portanto, que possibilita a proteção ao Trade Dress sob o manto da concorrência desleal. Sem distintividade, aos olhos dos consumidores, não há como se falar em possível associação indevida ou confusão pelo grande público, tampouco, consequentemente, em desvio fraudulento de clientela.
Nesse contexto, não se pode olvidar que a proteção ao Trade Dress tem sido levada ao crivo do Poder Judiciário com bastante frequência nos últimos anos, afinal, basta uma simples semelhança na apresentação do produto (ou serviço) para que se impute a existência de suposta conduta parasitária e eventual concorrência desleal.
Inclusive, é natural que um empresário, ao verificar que no mercado um concorrente lançou um produto ou serviço “parecido” com o seu, sinta-se imitado, de modo que, também como consequência natural, busque no Poder Judiciário uma forma de resguardar o seu direito ao Trade Dress (em tese, violado).
Porém, a premissa inafastável, repita-se, é que nem toda mera semelhança entre produtos ou serviços pode ser encarada como infração ao Trade Dress.
Cite-se, nesse cenário, interessante caso da disputa entre as empresas Nestlé e Danone com relação ao “Iogurte Grego”, em que se suscitou uma suposta semelhança entre as embalagens dos produtos, especialmente as cores, as fontes estilizadas, disposição cromática, o que, na visão da primeira empresa, possibilitaria causar confusão aos consumidores. Logo, segundo argumentou a Nestlé, haveria violação ao Trade Dress da embalagem do produto em questão.
Em que pese a ação já ter sido julgada improcedente na primeira instância, foi perante o Tribunal de Justiça que a questão do Trade Dress foi melhor analisada, fulminando a pretensão da Nestlé. Confira-se:
“Da comparação das imagens acima é nítida a distinção entre o conjunto-imagem das embalagens dos produtos.
E o que as distingue não são pequenos detalhes, mas o conjunto deles.
Senão vejamos.
A embalagem do iogurte da Nestlé ostenta edificações gregas ao sol poente e uma colher com iogurte, tanto no topo quanto nos potes individuais; a embalagem identificadora do iogurte da Danone ilustra, por seu turno, pilastras que remetem à Grécia Antiga e uma colher dentro de uma tigela pequena contendo iogurte.
Em comum as embalagens possuem: (a) a expressão “Grego”, identificadora da espécie de iogurte ofertado, que se diferencia dos demais por sua consistência mais firme; (b) as cores azul e branco.
A colher com iogurte (no produto das autoras, do lado esquerdo e com menor destaque) e a colher numa tigela com iogurte (no produto da ré, na parte central inferior e com destaque) são comumente utilizadas nas embalagens desse tipo de alimento, mostrando ao consumidor o que contém os potes. Não são, pois, passíveis de proteção marcária.
A expressão “Grego”, escrita com estilizações diferentes nos dois produtos, tampouco é de uso exclusivo da recorrente, pois é elemento descritivo do produto.
Já as ilustrações de colunas gregas, a estilização da palavra “Grego”, e as cores azul e branco relacionam o produto à Grécia, nação que criou esse tipo de iogurte.
A embalagem da Danone remete o consumidor, pois, ao país grego, tal qual a embalagem da Nestlé, que não contém as colunas gregas, mas sim casas gregas ao sol poente.
As cores, as edificações gregas e a estilização das letras tendentes a relacionar o produto à Grécia Antiga são comuns em produtos de outras fabricantes de produtos lácteos, como ficou claro nas ilustrações trazidas nas fl. 1.478 das razões recursais e em fl. 1.532 das contrarrazões.
Destaca-se que a palavra “Grego” é escrita em formatos diferentes em uma e outra embalagem, como bem destacou o i. Magistrado singular na decisão denegatória da tutela antecipada: “enquanto as letras “g” e “o” do produto das autoras (Nestlé) são mais arredondadas, na expressão “GREGO”, as letras “g” e “o” do produto da requerida (Danone) são retilíneas, formando, respectivamente, um triângulo invertido e um quadrado invertido, que em nada se assemelham com o produto das requerentes (ilustração de fls. 8 da inicial, onde são comparados lado a lado os produtos e fotos de fls. 147/163)” (fl. 605).
E ainda: a embalagem da Nestlé tem como cor de fundo um azul em dégradé, ao passo que na embalagem da Danone o azul não tem variação.
São elementos-padrões no mercado e sua coexistência em diversos produtos é incapaz de confundir o consumidor, ainda que desavisado”.2
Cumpre notar que, logo no início do excerto acima destacado, o Tribunal Bandeirante traz uma premissa que, se devidamente analisada, permite a conclusão primordial acerca do Trade Dress, mormente que, aquilo que deve ser considerado não são as similitudes, mas, sim, as diferenças de cada produto (ou serviço), sempre dentro de uma verificação do conjunto do todo.
É bastante claro que no aludido caso o que pretendia a Nestlé era dificultar o comércio do produto da Danone, o que, sem dúvidas, vai ao encontro da ideia de livre concorrência.
Por certo, não se nega a existência de elementos-padrão no mercado, de modo que, por conta disso, mostra-se inevitável coexistência de diversos produtos (de empresas concorrente), porém, deve ser visto como bastante parcimônia a eventual capacidade de se confundir o consumidor, mesmo que eventualmente desatento.
Há, pois, a necessidade de se vislumbrar uma distinguibilidade apta para se tornarem produtos ou serviços únicos, inconfundíveis, diante de tantos outros oferecidos pelo mercado.
Veja-se, por exemplo, que uma mera identidade de cores de embalagens, principalmente com variação de tons, além de eventual semelhança gráfica, de um produto em relação a outro, sem constituir o conjunto-imagem da marca do concorrente, não é necessariamente hipótese preconizada como concorrência desleal ou parasitária.
A existência de concorrência desleal e, consequentemente, sua repressão, dependem da configuração, na esfera fática, dos elementos que a caracterizam, em particular, quais sejam, a distintividade do conjunto-imagem (que deve ser tido como elemento diferenciador do produto ou serviço de determinado concorrente em relação aos demais), bem como a existência de confusão ou associação indevida (sempre aos olhos do consumidor).
Não basta, portanto, para configurar concorrência desleal, uma mera similitude do conjunto-imagem, sendo necessária a demonstração dos elementos acima destacados. Ou seja, deve existir o aproveitamento parasitário e intento do concorrente e pegar carona no sucesso do outro, a ponto de criar confusão e fazer com que o consumidor adquira um produto ou serviço pensando estar obtendo outro.
Ausentes esses requisitos, prevalece a livre concorrência, que é salutar para os consumidores. Outrossim, resguarda-se o empresário, tendo em vista que o uso indiscriminado da proteção decorrente do Trade Dress não pode ensejar a perda de cliente. Deve-se zelar, assim, pela possibilidade de convivência harmoniosa dos concorrentes.
Ora, não se pode utilizar o Trade Dress como manobra para possibilitar uma exclusividade indevida, até mesmo porque o estímulo ao mercado e livre concorrência devem ser respeitados.
Inclusive, como forma de bem ilustrar a banalização do argumento no que tange à violação ao Trade Dress, salienta-se o emblemático caso do conhecido restaurante “Paris 6”, que oferece a sobremesa “Grand Gâteau Paris 6”, tendo a aludida companhia buscado o Poder Judiciário para proteger o aludido quitute, tendo o Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Francisco Loureiro, sopesado o seguinte:
“(...)
Diferentemente do que alega a requerida, não pode ela impedir, com base em suposta proteção conferida a marcas depositadas e conjunto de imagem, que a sociedade autora ou terceiro qualquer produza e ofereça à venda sobremesa semelhante à sua, consistente num pequeno bolo servido com sorvete.
(...)
Beira ao absurdo que a ré queira impedir a autora ou terceiros de servir um pequeno bolo num pote com um picolé na diagonal, calda e ingredientes diversos, ao argumento de que se trata de conjunto de imagem original e singular.
Admitir a tese da ré recorrente significaria, por via oblíqua, conferir exclusividade de execução de uma receita absolutamente singela e difundida, consistente de colocar sobre um petit gateau sorvete e creme.
Dizendo de outro modo, seria, pela via transversa do trade dress, dizer que somente a ré recorrente pode preparar a sobremesa. Seria patentear o que não é patenteável, usando a roupagem do conjunto imagem.
(...)”.3
Não se pode olvidar que a fidelidade de um consumidor a um produto tem origem não só na maneira como ele se apresenta (conjunto-imagem), mas principalmente em sua qualidade, eventualmente o seu sabor, além de outros fatores como a facilidade em encontrá-lo e o preço de mercado. Isso vale também para um estabelecimento comercial, em que a forma de prestação de serviço também deve ser relevada (um cliente bem tratado, por exemplo, não deve ser visto como elementos diferencial de determinado prestador de serviço, mas, sim, como uma regra do mercado).
Desta feita, eventual semelhança entre as diversas marcas, não deve ser visto como maléfico, mas um estímulo ao mercado e à livre concorrência, afinal, quantos mais produtos e serviços concorrentes existirem no mercado, sem dúvidas, o consumidor sairá ganhando, visto que, conseguintemente, haverá preços menores e maior qualidade naquilo que está sendo ofertado pelos empresários.
Conclusão
O Trade Dress é a soma de elementos visuais e sensitivos que traduzem uma forma peculiar (e suficientemente distintiva), de apresentação do produto ou serviço no mercado consumidor. Inventivamente, a formação da um conjunto-imagem peculiar demanda investimento, esforço e criatividade do empresário.
Não se olvida, noutro giro, que na defesa do próprio produto ou serviço, o empresário busca combater os concorrentes que, como forma de galgar facilidade no ganho da clientela, aproveitam-se do sucesso e investimento alheios.
O Trade Dress não figura dentre os direitos de propriedade industrial previstos na lei 9.279/96, sendo certo que a sua proteção é reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência para fins de coibir a concorrência desleal, cuja definição acaba não sendo fácil (mostrando, na realidade, extremamente subjetiva), devendo, pois, ser vista como uma circunstância em que se leva em consideração parâmetros de honestidade empresária e práticas comerciais aceitáveis.
Assim, o resguardo do Trade Dress incorporou-se ao sistema de proteção à propriedade industrial sem, contudo, exigir registro.
A concorrência desleal se caracteriza, quanto à violação ao Trade Dress, na medida em que confunde o destinatário do produto ou serviço (consumidor), o que conflita com o principal objetivo de existência da marca e do conjunto-imagem, que é trazer singularidade, destaque, distinção.
Ora, não se pode admitir a coexistência de um produto ou serviço que apresenta semelhança capaz de levar o consumidor a erro, se valendo, determinado empresário, de conhecido elemento distintivo da marca alheia com o objetivo de melhor promover o seu negócio.
Deve-se, ainda, ser sopesado o potencial não apenas de gerar confusão na clientela, mas também a exposição, de forma negativa, de um distintivo cuja conquista da respeitabilidade certamente demandou tempo, trabalho e investimento para concretização, o que influenciará, negativamente, no aspecto financeiro daquele empresário que teve o signo da sua marca usurpado por seu concorrente, seja porque ele venderá menos, seja porque ele terá desgastada a fama da sua marca.
Desta forma, a constatação da violação do Trade Dress demanda a comparação das características externas do produto ou a forma de sua apresentação, observando-se o risco de confusão do público consumidor desses produtos.
Porém, não é uma simples semelhança que deve ser levada em consideração, mas, sim, a utilização conjunta de vários elementos coincidentes, que ao final formam a apresentação do produto, fazendo caracterizar a imitação e o intuito de confundir o consumidor, ensejando o reconhecimento da concorrência desleal, levando-se em conta a natureza do produto e o tipo de consumidor a que ele se destina.
Nesse cenário, impõe-se que a análise da eventual violação ao conjunto-imagem de determinada marca seja feito com seriedade, verificando-se a situação da possível usurpação (sútil ou não) caso a caso, tendo em vista que a proteção a Trade Dress acaba, inevitavelmente, cerceando o negócio daquele concorrente taxado de imitador, logo, o Poder Judiciário só deve exercer eventual limitação naquelas hipóteses em que realmente se configurou a concorrência desleal.
Afinal, deve sempre vigorar a livre concorrência, com mais produtos e prestadores de serviço no mercado, o que é importantíssimo aos consumidores, que poderão contar com preços mais acessíveis e melhor qualidade naquilo que é oferecido pelos empresários.
1 DE SOUZA, Marcelo Junqueira Inglez. O Instituto da Antecipação de Tutela na Proteção dos Direitos de Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 165.
2 TJ/SP. Apelação Cível nº 0046192-31.2013.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 28.8.2017, Desembargador Relator Ricardo Negrão.
3 TJ/SP. Apelação Cível nº 1114716-29.2014.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 21.9.2016, Desembargador Relator Francisco Loureiro.