Introdução
Já do preâmbulo constitucional, extrai-se a máxima de que ao Estado Democrático de Direito, destina-se a missão de assegurar o exercício de determinados valores supremos, quanto aos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. Veja, que o termo “assegurar” reserva efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação efetiva e diretiva de realização desses valores aos destinatários, qual seja, o povo.
E na esteira destes valores supremos explicitados é que se pode afirmar nas normas constitucionais, os princípios da solidariedade, isonomia e dignidade da pessoa humana, como alguns dos fundamentos da República Federativa do Brasil. E esse campanário de princípios fundantes, direciona o Estado em ações diretivas de fazer e não fazer, sempre tendo como bússola os primados constitucionais.
Quanto ao direito de “fazer”, verificamos que a Constituição em seu artigo 153, estabelece o direito da União em instituir impostos, e entre eles, o imposto de renda e proventos de qualquer natureza (inciso III, do art. 153 CF/88). E na mão inversa em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana e isonomia, cria vedação para a União, impondo impeditivo de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção (inciso II do art. 150 da CF/88).
Já é posição assente inclusive no colegiado do STF, que o princípio da isonomia, refletido no sistema constitucional tributário (arts. 5º e 150, II da CF), não poderá se resumir tão apenas a leitura fria de tratamento igualitário entre os contribuintes, mas refere-se principalmente quanto à obrigação do Estado em “assegurar” e implantar medidas com o escopo de minorar os fatores discriminatórios existentes, e por consequência, inclusive com a adoção sempre que necessário, em prol da igualdade, efetuar tratamento desigual aos desiguais, buscando efetividade da igualdade real. O campo da isenção tributária aos contribuintes necessitados de tal privilégio, toca e conjuga esses primados em que a constituição se assenta e encontra fôlego de existência social e democrática, da qual todo poder emana do povo e a ele serve.
A isenção tributária ao contribuinte acometido por doença grave, excursiona desde a Constituição Federal, Código Tributário Nacional, até a lei 7.713/88, que em seu artigo 6º, inciso XIV, estabelece que:
Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguintes rendimentos percebidos por pessoas físicas:
[...]
XIV – os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria ou reforma;
O tema merece o debate, uma vez que em simples observância a leitura fria do inciso XIV do artigo 6º da referida lei, encontramos um rol de moléstias que dignificam seu portador a ser desobrigado do pagamento do IRPF, até ai, tudo justo, contudo o rol de doenças elencadas no inciso XIV do referendado artigo 6º, não pode ser considerado taxativo, justamente por não compreender um apanhado de doenças não consideradas ou novas, que se assemelham em quadro de nocividade e agravam tão ou mais a saúde do contribuinte acometido pela enfermidade gravosa.
Considerar ao abrigo da lei isentiva, todos os contribuintes, independentemente de qualquer caráter discriminatório, e com doenças não elencadas no XIV do artigo 6º da referida lei, é conjugar o primado da isonomia e dignidade da pessoa humana, e sua aplicação efetiva, abrandará como um lenitivo o impacto da carga tributária sobre a renda necessária à subsistência do contribuinte tutelado e sobre o custeio inerente ao tratamento da enfermidade, buscando equalizar com os menores sobressaltos o padrão de vida familiar.
I. Da posição do STJ
A isenção tributária, como a incidência, decorre de lei, pois é o próprio poder público competente para exigir o tributo que tem o poder de isentar. Assim, a isenção é um caso de exclusão ou, melhor dizendo, de dispensa do crédito tributário (artigo 175, inciso I, do Código Tributário Nacional – CTN).
Seguindo a corrente doutrinária, a isenção tributária não impede o nascimento da obrigação tributária, mas tão somente impede o nascimento de crédito tributário, ou seja, a isenção não impede a obrigação tributária, mas dispensa o cumprimento da obrigação tributária, dispensando o pagamento.
Assim, a isenção tributária é uma excepcionalidade que se localiza no campo da incidência tributária. Não se priva a existência do fato gerador do tributo, ele surge, se forma, porém por força de lei, o contribuinte fica isentado do cumprimento da obrigação.
Entre as diversas isenções colimadas por lei, nosso foco, como já delineado na introdução, recai apenas sobre os desdobramentos fáticos e jurídicos, quanto às isenções do Imposto de Renda – IRPF, à pessoa portadora de doença grave, que se encontre na condição laboral da ativa aposentado, reformado.
Segundo o ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, a isenção fiscal concedida aos portadores de doença grave tem por objetivo "abrandar o impacto da carga tributária sobre a renda necessária à sua subsistência e sobre os custos inerentes ao tratamento da doença, legitimando um 'padrão de vida' o mais digno possível diante do estado de enfermidade" (REsp 1.507.230).
Desde a edição da lei 7.713, em 1988, o texto do dispositivo que concede a isenção passou por várias alterações, até chegar à versão atual, de 2004. Assim, no decorrer do tempo, a aplicação da norma, encontrou posições doutrinárias e jurisprudenciais que ora excursionava sobre a possibilidade de elastecimento, ora sobre a taxatividade do rol de doenças ou mesmo, sobre quais seriam os beneficiários do beneplácito da isenção fiscal.
Claro que todas essas questões aportadas no judiciário, acabaram recebendo posicionamento do STJ, inclusive por meio da sistemática de Recursos especiais repetitivos, por envolver demandas protocoladas em massa.
Se posicionando, o STJ, editou o (tema 250), que declara que não são isentos do IRPF os proventos recebidos por aposentados portadores de moléstia grave, que não estejam taxativamente elencados no rol do 6º, XIV, da lei 7.713/88.
Não bastasse, mais de uma década após inibir o acesso aos portadores de moléstias graves não elencadas no rol taxativo do artigo 6º, XIV, da lei 7.713/88, o STJ voltou ao assunto para novamente por meio de recursos especiais repetitivos (tema 1.037), fixar posição mais gravosa ao inibir o acesso a isenção fiscal aos portadores com doença grave que estejam na condição laboral de ativo.
Ou seja, não bastou o ativismo judicial escolher qual das doenças graves merece status de salvaguarda fiscal, mas também optou por diferenciar trabalhadores aposentados doentes, de trabalhadores da ativa doentes.
A postura radical e em descompasso com o primado da segurança jurídica, isonomia e dignidade da pessoa humana, criou situação inusitada, onde o portador de doença grave elencada no rol do artigo 6º, XIV, da lei 7.713/88, mas que ainda possui capacidade laborativa de continuar trabalhando, se obriga a migrar da ativa para a aposentadoria para poder fazer jus ao benefício. Dessa forma, a postura irracional dos nossos tribunais, além de evitar o acesso de doentes com enfermidades semelhantes, mas não elencadas no inciso XIV, cria também um problema para o já colapsado sistema da Previdência Social, ao obrigar um trabalhador ativo a se aposentar para ter acesso ao benefício.
II. A isonomia e dignidade humana e seu status de “sobreprincípio”.
Como já vimos em tópico anterior, atualmente, o posicionamento dos Tribunais brasileiros tem sido bastante conservador quando do julgamento das questões relacionadas à aplicabilidade do que se encontra disposto no rol do artigo 6º, inciso XIV, da lei 7.713/88.
Na contramão da atual postura dos nossos tribunais superiores, nós, como operadores do direito, devemos reforçar em nossa árdua missão de essencialidade à justiça, reforçar o debate e enaltecer primados constitucionais basilares em nosso Estado Democrático de Direito, e a atual posição jurisprudencial guerreada nos conclama a convocação dos princípios da dignidade humana e isonomia de tratamentos, que certamente nos proporcionará visão mais ampla, inclusiva e não discriminatórias de direitos.
Podemos perceber, já de plano, que o princípio da isonomia abriga uma gama considerável de conceituações e aplicações no campo real, no entanto, seguindo o que decorre do caput do artigo 5º da Constituição Federal, onde afirma que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”, consideramos haver isonomia quando aplicado a lógica de igualdade relativa, em que os iguais devem ser tratados igualmente, e os desiguais serem tratados de forma desigual na medida em que se desigualam, ou se desassemelham. E dada a importância dos valores protegidos por esse princípio constitucional, a ele, é reservado o status de sobreprincípio.
Rememora-se conceitos constitucionais para lembrar que todo fundamento da própria organização política do Estado democrático de Direito é o homem, ou seja, significa dizer que o fundamento do Estado brasileiro existe para que o homem possa ter assegurado condições políticas, sociais, econômicas e jurídicas que permitam que ele, homem, atinja seus fins. Como sujeito de dignidade, de razão digna e superiormente posto acima de todos os bens e coisas, inclusive do próprio Estado.
Ao Estado em suas atividades, condutas estatais, ações e opções de decisões, deve ter como norte, o primado a dignidade à pessoa humana. E veja que com o desenvolver do conceito, o princípio passou a inclusive avançar além da individualidade do sujeito, e abarcou a proteção principiológica de proteção da dignidade da espécie humana, ou seja, não apenas é assegurado ao homem como indivíduo, mas também sua intangibilidade e indisponibilidade quanto espécie humana, e não apenas a atual, mas inclusive para os da espécie que vierem depois.
Assim, por ser tomada em sua integralidade, a espécie humana atual e futura, devem ter proteção constitucional tomada em sua integralidade, ou seja, principalmente quanto aos direitos sociais, esses devem ser conjugadas em sua máxima potência, inclusive quanto aos efeitos que as condutas estatais podem acarretar para as gerações futuras.
Reafirme-se, portanto, que a garantia de tratamento isonômico, sobreprincípio constitucional, inerente à vida digna do homem dentro do Estado democrático da qual ele é o maior bem tutelado e motivador de existência, não é um gesto ou um momento encartado em si só, mas um processo diário de reafirmação, principalmente quando em enfrentamento com a leitura fria de leis esparsas, que vedam direitos da qual a constituição não apenas assegura, mas da qual dedica sua própria existência.
No confronto entre princípios e regras, deve ser dada prevalência aos princípios, em respeito aos pilares norteadores de todo arcabouço constitucional.
III. A aplicação do sobreprincípio da isonomia dentro do campo tributário em detrimento da regra de interpretação literal de leis esparsas.
A isonomia tributária é estabelecida pelo artigo 150, inciso II da Constituição Federal, onde afirma que: (“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:”, “II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”)
Assim, no plano fático, a aplicação do princípio da isonomia tributária, que veda às entidades políticas instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontram em situação equivalente, se desdobra sobre as regras da interpretação literal do Código Tributário Nacional, especialmente em seu artigo 111, inciso II, e por consequência lógica do sobreprincípio da isonomia, também se sobrepõem a enumeração exaustiva das doenças graves relacionadas na legislação esparsa da lei 7.713/88 em seu artigo 6º, inciso XIV.
Oras, ao se conjugar o princípio da isonomia tributária, todas as doenças, que, padecem de patologia de gravidade similar (isonômica) a daquelas relacionadas no artigo 6º, inciso XIV da lei 7.713/88, devem receber tratamento de isenção tributária iguais. Por que deveria ser diverso?
Assim, utilizando-se o primado da dignidade da pessoa humana, e da isonomia, o rol de isenções no artigo 6º, inciso XIV da lei 7.713/88, deve ser interpretado de forma exemplificativa, pois configura um retrato do ano de edição da sua lei, qual seja mais de 34 anos atrás, e sabiamente a lei e o direito devem sempre se amoldar ao momento de sua aplicação. A atual posição dos tribunais superiores, delineados nos Temas 250 e 1.037 do STJ, se configura além de posicionamento absolutamente limitado, pode-se dizer que é ineficaz frente ao desenvolvimento sofrido por nossa sociedade desde a época do advento da lei 7.713/88.
Não existem motivos para discriminar pessoas com as mesmas dores e com os mesmos gastos extras com o tratamento, ou quais doenças com efeitos nefastos semelhantes merecem ser homenageadas. Posturas bizarras como essa do nosso judiciário, só demonstram o quanto o judiciário está abandonando sua função de julgar, e sobre o escudo acéfalo do ativismo judicial acaba por promover o ativismo de advogar em benefício do leão, mesmo que isso custe a vida de trabalhadores que infelizmente tiveram duplo azar, o de primeiro ser acometido por doença grave, que reduz seus ganhos e esmaga sua condição humana, e o segundo azar de “infelizmente” não ser acometido por doenças elencadas no excludente e perverso rol do artigo 6º, inciso XIV da lei 7.713/88.
Veja que o mundo, as doenças, e as pessoas não são as mesmas de 1988 e nesse processo, caminhamos sempre em processo inclusivo e não discriminatório de qualquer alçada, homenageando sempre a bussola de edificação da dignidade da espécie humana. Qualquer postura jurídica que iniba, proíba ou retarde essa postura inclusiva, isonômica, que são os ventos que o nosso momento nos obriga como lição evolutiva desde 1988, deve ser rechaçada de todas as formas pela sociedade e principalmente pelos operadores do direito. Que pena que o judiciário está no lado opressor e discriminatório da trincheira social.