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Transanimalismo: reflexões sobre o bem-estar animal

O uso de novas tecnologias para modificação de animais enseja debates éticos e jurídicos que envolvem manipulações em animal não-humano, ampliando o cenário de dominação e desafiando o direito animal.

17/10/2022

Nos últimos anos, muitas pesquisas jurídicas têm sido desenvolvidas sobre o tema do transhumanismo, movimento sociopolítico e intelectual, tecnoprogressista, que defende o uso da tecnologia para transformar radicalmente o organismo humano, com o objetivo final dele se tornar "pós-humano". Através, por exemplo, do aprimoramento humano - conceito mais amplo, sendo definido como qualquer melhoria temporária ou permanente das características orgânicas ou funcionais do ser humano por meio de tecnologias naturais ou, principalmente, artificiais -  o movimento incentiva o uso de novas tecnologias e parte da visão filosófica de que a natureza humana é naturalista, isto é, centra-se no ser humano como matéria, tal como o fazem o materialismo, o empirismo, o mecanicismo ou o positivismo.1

Alguns transhumanistas chegam a considerar a possibilidade de acessar a imortalidade por meio da criogenia ou da nebulização da mente, uma espécie de “download da mente”, e, para alcançar tal objetivo, usa-se diferentes técnicas, especialmente, a nanotecnologia, a biotecnologia, a Ciência da Computação e Ciência Cognitiva (NBIC).        

De modo relativamente semelhante, mas não quanto à presença nos debates acadêmicos, o transanimalismo decorre diretamente da corrente de pensamento do transhumanismo,  investigando a possibilidade de aplicação das técnicas NBIC em animais para aumentar suas capacidades físicas e mentais, ou, também, para retardar, evitar e até eliminar doenças e mortes, no intuito de garantir sua maior longevidade.

Nesse contexto de uso de tecnologias em animais, importante fazer algumas distinções conceituais. Um animal aumentado pode ser definido como aquele ao qual se adicionou elementos humanos, ou, especialmente, mecânicos ou eletrônicos. Por exemplo, pesquisadores russos adicionaram visores com sistema de realidade virtual em vacas, para adaptar características estruturais das cabeças dos animais, de tal modo que, cada aparelho recebeu um programa exclusivo com imagens que simulam um campo durante o verão. Quando colocado nas vacas, elas passaram a ver um pasto tranquilo e bem verde, mesmo que, na realidade, o dia esteja nublado e que o animal esteja rodeado por várias outras vacas. Isso revelou uma ligação entre a experiência emocional de uma vaca e o aumento na produção de leite.2 

Note-se, portanto, que o aumento não é necessariamente uma melhoria (fisiológica ou moral), principalmente quando se trata de animais cujo destino é determinado por seres humanos, e, ainda, com o objetivo de exploração animais para aumento de produção.

De outro lado, utiliza-se o termo cyborg para expressar um organismo cibernético. Neste caso, tecnologias substituem partes do corpo, como a substituição de membros do corpo que tenham sido amputados, inclusão de sistemas de implante de medicamento, pele artificial, dentre outros. Inaugura-se, assim, a possibilidade de criação de seres vivos híbridos. Aí reside, também, a distinção entre robô, androide e cyborg: os primeiros são máquinas que fazem tarefas pré-programadas de forma autônoma. Quando os robôs são dotados de características humanas, são denominados de androide. Já os cyborgs são híbridos, ou seja, parte humanos, parte máquinas.

Já quanto ao transanimalismo, trata-se de uma corrente de pensamento, uma ideologia que retoma a lógica transumanista, ao pretender usar as tecnociências para modificar profundamente os animais. Os embates éticos e jurídicos que envolvem o transanimalismo residem sobre o fato de que, essencialmente, as manipulações no animal visam servir aos desejos e anseios dos seres humanos. É aí que se encontra a diferença entre o transanimalismo e o transumanismo: aquele não visa satisfazer as necessidades e desejos daqueles que passam pelas diversas transformações, mas sim as necessidades dos seres humanos, de modo que é imposto uma transformação ao animal, instrumentalizando-o para as próprias necessidades do ser humano.3

O cerne está na legitimidade da seleção artificial científica quando ela é particularmente invasiva e vai contra a saúde e o bem-estar animal. De fato, a imposição de modificações fisiológicas e cognitivas invasivas, física e moralmente dolorosas, em seres vivos que são incapazes de recusar, ressoa em grandes embates éticos e jurídicos, mesmo quando essas modificações são consideradas positivas, por exemplo, na possibilidade de aumentar consideravelmente as capacidades cognitivas dos animais. Questiona-se: o ser humano tem o direito de modificar características orgânicas ou funcionais, utilizando tecnologias artificiais, outros animais que não podem consentir com isso?

Tais questionamentos são relevantes, sobretudo considerando os avanços jurídicos da tutela dos animais. Apenas para exemplificar, a evolução do estatuto jurídico dos animais na França, um dos países mais vanguardistas na tutela dos animais, tem como marco relevante a lei de 10 de julho de 1976, relativa à proteção da natureza.

O art. 9 da referida norma jurídica dispõe que, qualquer animal que seja um ser senciente deve ser colocado por seu dono em condições compatíveis com os imperativos biológicos de sua espécie. Mais de 20 anos depois, o Código Civil Francês foi modificado para alterar a natureza jurídica dos animais que, embora ainda fossem considerados propriedade, deixavam de ser equiparados a coisas, e, em 2015, a noção de um ser vivo dotado de sensibilidade integra o Código Civil Francês.

Em sentido semelhante, a Declaração de Cambridge de 7 de julho de 2012 preceitua que os humanos não são os únicos que possuem os substratos neurológicos da consciência, sendo estes compartilhados com animais não humanos. Uma questão particularmente sensível diz respeito às modificações não beneficiam o animal como tal, em sua própria vida. Ele é então vítima de uma instrumentalização externa cuja justificação ética é difícil de conceber.

As questões levantadas pelo transanimalismo instigam maiores debates sobre a consideração moral dos animais4, já que o crescimento das práticas técnico-científicas pode ocorrer em animais de produção, de laboratório e até de “companheiros”, como no caso de se pretender clonar um cão de estimação que foi companheiro de anos de um idoso que sente excessivamente sua falta. Ademais, o tema requer uma análise mais minuciosa, já que em determinados animais, a sensibilidade à dor não é comprovada. Geralmente em insetos, não há receptores de dor, diferente de mamíferos em que a dor tem um interesse de longo prazo em se proteger.5

Seja como for, o tema do transanimalismo se reflete na ideia de bem-estar animal. O bem-estar se tornou um conceito com semântica diversa, cujos componentes dependem principalmente do próprio sujeito e de suas expectativas. Nesse sentido, o bem-estar pretendido ou alcançado pode ter uma dimensão material, afetiva, psicológica, social, econômica, etc., e o leque dos beneficiários é diverso. À esta lista não exaustiva, adiciona-se, também, os animais e o seu bem-estar.

A tendência de se tutelar o bem-estar animal desagua em normas jurídicas de diversos países. A União Europeia tem alguns dos mais elevados padrões de bem-estar animal do mundo, como se observa no art. 13, Título II do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia que dispões que a União e os Estados-Membros devem ter plenamente em conta os requisitos de bem-estar dos animais enquanto seres sencientes. Ademais, as regras de bem-estar animal da União Europeia refletem cinco liberdades: não sofrer de fome ou sede: não sofrer desconforto; não sofrer de dor, lesão ou doença; ser capaz de expressar os comportamentos naturais específicos da espécie; não sentir medo ou angústia.

Alinhado à necessidade de maior proteção do bem-estar animal, foi aprovado em 3 de outubro de 2018 o Código de Bem-Estar Animal da Valônia, visando garantir a proteção e o bem-estar animais, levando-se em consideração suas necessidades fisiológicas e etológicas, bem como seus papéis na sociedade e no meio ambiente. Um dos aspectos relevantes da referida norma jurídica é o estímulo ao desenvolvimento de métodos alternativos para experimentação animal (Arte. D.2. § 5º)6, o que representa um avanço, já que laboratórios sacrificam vários milhões de animais por ano na esperança de fazer novas descobertas médicas e farmacológicas para melhorar e testar a eficácia dos tratamentos.

De modo semelhante, a lei ordinária 3.917, de 20 de dezembro de 2021, do Município de São José dos Pinhais/Paraná, instituiu a Política Municipal de Proteção e Atendimento aos Direitos Animais, tendo como princípios da Política Municipal de Proteção e Atendimento aos Direitos Animais, os princípios da “Dignidade Animal” (art. 2º, I), da “Cidadania Animal” (art. 2º, IV), dentre outros, e, ainda, avança ao reconhecer os animais como seres conscientes e sencientes e dotados de dignidade própria, sujeitos despersonificados de direito, fazendo jus à tutela jurisdicional, individual ou coletiva, em caso de violação de seus direitos (art. 4º)7

O reflexo da ampliação da tutela dos animais tem incentivado pesquisas sobre o uso de inteligência artificial e Big Data para salvar a vida e evitar o sofrimento de animais não humanos.8 Os modelos computacionais para previsão de toxicidade, por exemplo, podem fornecer informações sobre o potencial de perigo de produtos químicos sem testes em animais e pode ajudar na produção de dados sobre toxicidade preditiva e determinação de outros parâmetros regulatórios, evitando experimentos animais redundantes e desnecessários.

Mas além dessas questões de bem-estar animal que tangenciam o transanimalismo, surgem questionamentos sobre qual deve ser a natureza jurídica dos animais que são modificados ao serem aumentados com elementos eletrônicos, evitando, assim, reduzi-los a um objeto ou que diminua a sua proteção jurídica. De acordo com o Código Civil Brasileiro (art 82), os animais são bens móveis, doutrinariamente chamados de semovente, isto é, bens constituídos por animais selvagens, domesticados ou domésticos. Não obstante, o projeto de lei 27/18 em tramitação, objetiva criar um regime jurídico especial para os animais, de modo a não serem mais ser considerados objetos, mas sim, serem classificados como sujeitos de direitos despersonificados, de natureza jurídica sui generis.

Assim, para o enquadramento da natureza jurídica dos animais cyborgs, é necessário, antes de tudo, que as representações atuais e categorização jurídica dos animais evoluam, conferindo -lhes um estatuto jurídico adequado à atual estágio de proteção, para, assim, atribuir classificação e regras jurídicas específicas aos animais aumentados e animais cyborgs, quais espécies poderiam pertencer às referidas classes, ou, ainda, delimitando o aspecto finalístico da utilização da tecnologia para criação desses animais.

_______________

1 SERRA, Miguel-Angel. Human enhancement and functional diversity: Ethical concerns of emerging technologies and transhumanism. Mètode Science Studies Journal, núm. 12, pp. 169-175, 2022.

2 BBC News Brasil. Vacas russas ganham visor de realidade virtual para reduzir ansiedade e dar mais leite.  Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50581742. Acesso em 04 ago 2022.

3 BAUMANN, Mickaël;  DURAND, Victorien; SALAMONE, Valentin; WAGNER Colin; MARTINEZ, Dominique; THESSARD, Anne-Laure; SUEUR, Cédric. 2017. Transanimalisme et animal cyborg. Dans : Questions d’actualité en éthique animale (Ed : Marie Pelé et Cédric Sueur), Éditions L’Harmattan, Paris, France.

4 No debate ético, um paciente moral designa um ser digno de consideração ética, a quem reconhecemos a capacidade de sofrer, mas a quem não imputamos responsabilidade por seus atos – ao contrário dos agentes morais. THÉSSARD, Anne-Laure. Transanimalisme, animaux augmentés, animaux cyborg: vers un statut de “sous-machine” ? Droit Animal, Éthique & Sciences, V. 93, 2017.

5 BAUMANN, Mickaël;  DURAND, Victorien; SALAMONE, Valentin; WAGNER Colin; MARTINEZ, Dominique; THESSARD, Anne-Laure; SUEUR, Cédric. 2017. Transanimalisme et animal cyborg. Dans : Questions d’actualité en éthique animale (Ed : Marie Pelé et Cédric Sueur), Éditions L’Harmattan, Paris, France.

6 Le code Wallon du bien-être animal. Disponível em  https://www.wallonie.be/sites/default/files/2019-04/code_wallon_bea.pdf. Acesso em 03 ago 2022.

7 Lei nº 3.917, de 20 de dezembro de 2021. Disponível em https://leismunicipais.com.br/a/pr/s/sao-jose-dos-pinhais/lei-ordinaria/2021/392/3917/lei-ordinaria-n-3917-2021-institui-a-politica-municipal-de-protecao-e-atendimento-aos-direitos-animais?q=Lei+N%C2%BA+3.917. Acesso em 30 jul 2022.

8 MISAL, Disha. Eradicating animal testing with artificial intelligenc. Disponível em https://analyticsindiamag.com/eradicating-animal-testing-with-artificial-intelligence/. Acesso em 03 ago 2022.

Aline Klayse dos Santos Fonseca
Doutoranda em Direito Civil na Universidade de São Paulo (USP). Advogada. Professora do Instituto Federal do Pará.

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