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Lei 14.454/22: a polêmica sobre a taxatividade e os possíveis riscos aos direitos das pessoas com deficiência e doenças raras

Vislumbra-se que as operadoras ainda questionem a nova norma e que o fim dessa discussão ainda demore para chegar.

17/10/2022

Durante mais de 20 anos prevaleceu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendimento de que era ilegal negar cobertura de tratamentos prescritos por médico para doenças cujas terapias e/ou procedimentos eram abrangidos pelos planos saúde sob o argumento de não constarem no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A interpretação majoritária das duas Turmas de Direito Privado do STJ (3ª e 4ª) reconhecia o rol como uma lista exemplificativa.

Isso porque a lei 9.656/98, que trata dos planos e seguros de saúde privados, prevê que todos os procedimentos diagnósticos e terapêuticos de doenças incluídas na Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) são de cobertura obrigatória. Essa é a regra geral definida na legislação.

As exceções, muito bem delimitadas no art. 10 da lei 9.656/98, incluem tratamentos ou cirurgias experimentais, procedimentos, órteses e próteses para fins estéticos, medicamentos importados não nacionalizados entre outros.

Ocorre que, em fevereiro de 2020, a 4ª Turma do STJ realizou um overrulling e passou a entender que a natureza do rol era taxativa e não mais exemplificativa, conforme jurisprudência consolidada. Essa mudança de posição da 4ª Turma levou a situação de flagrante insegurança jurídica, pois demandas sobre coberturas para tratamentos não prescritos na lista poderiam ter decisão favorável ao paciente ou às seguradoras, a depender da distribuição do processo e do colegiado responsável pela sua análise.

Foi este o caso de duas ações movidas contra uma mesma operadora de planos de saúde, que apesar de semelhantes em seu objeto, tiveram decisões divergentes no STJ. Este fato motivou a interposição de Embargos de Divergência para buscar uniformizar o entendimento da corte sobre o tema.

Dada a relevância da matéria, desde o início houve uma forte preocupação com o curso desses processos e as possíveis consequências para os usuários dos planos de saúde, em especial para pessoas com deficiência e com doenças raras. Houve uma série de manifestações, mobilizações e notas de repúdio por parte de diversas organizações e coletivos de diferentes segmentos (pessoas com deficiência, pessoas com doenças raras, direito à saúde, direitos humanos, direitos do consumidor, entre outras).

Destacou-se neste contexto a atuação do Movimento Nacional Contra o Rol Taxativo. Liderado pelo Instituto Lagarta Vira Pupa, congregou organizações e movimentos de mães de pessoas com deficiência e doenças raras que se uniram em prol da luta pela derrubada do rol.

Diante da forte pressão imposta ao STJ por ambos os lados envolvidos, o julgamento chegou a ser suspenso duas vezes e nesse ínterim (do início do julgamento, sua suspensão até a retomada da pauta) a Medida Provisória 1.067/21, que tratava sobre o processo de atualização das coberturas no âmbito da saúde suplementar foi convertida na lei 14.307/22, trazendo alterações fundamentais no texto legal que passou a instituir, de modo indireto, o rol como taxativo.

Nesse contexto, o resultado do julgamento dos Embargos de Divergência foi oposto às expectativas em relação à taxatividade, tendo alguns Ministros inclusive citado dispositivos da referida Lei em seus votos a favor da taxatividade. Com isso, os planos de saúde tiveram uma vitória de 06 votos favoráveis a taxatividade, ainda que mitigada por 03 votos contrários.

Diante da decisão da STJ, as operadoras de planos de saúde não seriam mais obrigadas a cobrir procedimentos que não estivessem previstos na Resolução Normativa 465/21, válida a partir de 1/4/21. A tese adotada pelo STJ definiu as seguintes regras acerca do tema em debate:

  1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;
  2. A operadora não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS, se existir outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;
  3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
  4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde.

Apesar de amenizados com a decisão os efeitos pretendidos pelas operadoras, o reconhecimento da taxatividade é desfavorável aos consumidores, e em especial, às pessoas com deficiência e pessoas com doenças raras, visto que limitou o acesso a terapias e tratamentos e “inverteu o ônus da prova” em benefício dos prestadores de serviços, gerando um desequilíbrio contratual em prejuízo do consumidor.

Muito se questionou sobre os possíveis impactos dessa decisão. Procedimentos, tratamentos e serviços de saúde que já tinham previsão no rol, continuariam cobertos vez que a decisão não alterou o que já era de cobertura obrigatória das operadoras de saúde. Contudo, pessoas com deficiência e pessoas com doenças raras teriam uma tendência forte a serem afetadas caso essa decisão prevalecesse, dado que os planos de saúde estariam desobrigados de prestar a cobertura de tratamentos não previstos no rol.

Mesmo no caso de doenças consideradas comuns, os beneficiários poderiam  ser afetados. Por falta de previsão no rol, tratamentos mais eficazes e/ou menos invasivos que asseguram qualidade de vida e autoestima a alguns pacientes, poderiam ter sua oferta negada, como é o caso do sistema de infusão contínua de insulina (bomba de insulina) para pessoas com diabetes. De igual forma, pessoas que precisam de transplantes.

A decisão do STJ também poderia impactar a restituição de procedimentos não cobertos pelas operadoras de saúde. Isso ocorre quando o beneficiário arca com os custos de procedimentos que a operadora recusa a cobertura e solicita mediante ação de ressarcimento, a devolução das despesas médicas desembolsadas.

Proferida em processos isolados e não se tratando da sistemática de demandas repetitivas com decisão vinculante, a tese validada pelo STJ não se aplicou obrigatoriamente a processos em trâmite em instâncias inferiores, que puderam decidir o tema de forma distinta.

Analisando algumas decisões de tribunais estaduais posteriores ao julgamento do STJ, identifica-se diferentes entendimentos quanto à taxatividade. Nos autos da Ação Civil 1064526-18.2021.8.26.0100, o Tribunal de Justiça de São Paulo obrigou a cobertura de terapia não prevista no rol para pessoa autista, não se vinculando ao entendimento proferido pelo STJ1.

Tribunais têm deferido medidas cautelares que obrigam as operadoras de saúde a cobrir os tratamentos de terapias e demais tratamentos que não constam no rol taxativo da ANS e que tampouco são contemplados pelas exceções da tese. Vejamos:

RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – AUTISMO – TRATAMENTO FONOAUDIOLOGIA, PSICOLOGIA E TERAPIA OCUPACIONAL – PRESCRIÇÃO MÉDICA ATESTANDO A NECESSIDADE – PRESENÇA DOS REQUISITOS DISPOSTOS NO ART. 300 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – DECISÃO MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. De acordo com a redação do art. 300, caput, do CPC, para a concessão da tutela de urgência mostra-se necessária a presença dos seguintes pressupostos: a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. No caso concreto, todos os procedimentos indicados pelo médico assistente – fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional – são contemplados no rol mínimo anexo à RN 465/21 como sendo de fornecimento em número ilimitado de sessões aos portadores de autismo. Ademais os planos de saúde apenas podem estabelecer para quais doenças oferecerão cobertura, não lhes cabendo avaliar a necessidade da realização dos exames e tratamentos indicados, incumbência essa que pertence ao profissional da medicina que assiste o paciente. (TJ/MT 10098302420228110000 MT, Relator: SEBASTIAO BARBOSA FARIAS, Data de Julgamento: 16/8/22, Primeira Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/8/22).

Hoje tramitam no STF Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) questionando no Supremo Tribunal Federal (STF) dispositivos das leis 9.656/98, 9.961/00 e 14.307/22, que estabelecem a competência da Agência Nacional de Saúde Suplementar para definir a amplitude das coberturas de planos de saúde, regulam o procedimento de atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar e afirmam o seu caráter taxativo, as ações contam como amicus curiae de diversas organizações da sociedade civil.

Após a decisão do STJ, sua repercussão e a propositura das ações no controle concentrado mas uma vez os movimentos sociais, liderados pelas mães de pessoas com deficiência e doenças raras se postaram a apoiar a aprovação do projeto de lei 2.033/22, que tinha por objetivo tentar resolver a questão da taxatividade. Aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, foi sancionada a lei 14.454 em 21 de setembro de 2022, que altera a lei 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar.

Com a publicação dessa Lei, recupera-se a possibilidade do consumidor questionar as negativas de cobertura feitas administrativamente pelas operadoras de saúde pela via judicial e eventualmente conseguir a cobertura de exames ou tratamentos que não estejam incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar.

Importante mencionar que os tratamentos não previstos no rol da ANS somente deverão ser aceitos desde que cumpram uma das condicionantes a seguir: i) exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou ii) existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.

Ou seja, apesar de representar avanço no tema, já que altera a lei 9.656/98 para estabelecer hipóteses de cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, a lei 14.454/22 resolve parcialmente a questão, pois seu texto não reconhece expressamente o rol como exemplificativo.

Após a sanção presidencial, a Agência Nacional de Saúde Suplementar emitiu um posicionamento criticando a medida e demonstrando preocupação com a segurança dos usuários da saúde suplementar e com os impactos orçamentários da nova lei.

O Relator das ADIn's e ADPFs que tramitam no STF, Ministro Luís Roberto Barroso, determinou a suspensão da audiência pública agendada para os dias 26 e 27 de setembro, por entender que a sanção do PL 2.033/22 interfere no objeto das ações de controle concentrado que atacam a taxatividade no STF, havendo, portanto, indefinição sobre a manutenção da vigência das normas discutidas nas ações. Caso permaneça a necessidade de audiência, segundo o Ministro, novas datas serão definidas e divulgadas.

De todo modo, vislumbra-se que as operadoras ainda questionem a nova norma e que o fim dessa discussão ainda demore para chegar. O que resta no momento, além da busca pelo direito de cada paciente nos casos concretos, é aguardar os próximos movimentos desse embate entre direitos humanos e fundamentais e a livre iniciativa e interesses econômicos. Pela nossa ótica, esperamos que nessa disputa prevaleça a garantia do direito à saúde, à vida, e à dignidade da pessoa humana.

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1 Plano de saúde. Criança acometida de Transtorno do Espectro Autista, a cujo enfrentamento foram indicadas terapias pelos métodos ABA. Sentença que já determinou a cobertura, na rede credenciada da ré, apenas admitido o custeio integral em clínica privada se não havidos prestadores aptos cadastrados. Musicoterapia e psicopedagogia que também devem ser cobertas, nesses moldes. Precedentes. Negativa de cobertura sob o fundamento de que tais procedimentos não constam de lista própria da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Abusividade. Sentença mantida, quanto ao período de vigência do contrato. Recurso desprovido, com observação. (TJ-SP - AC: 10645261820218260100 SP 1064526-18.2021.8.26.0100, Relator: Claudio Godoy, Data de Julgamento: 22/8/22, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/8/22).

Stella Camlot Reicher
Sócia do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Mestre em Direitos Humanos pela USP. Participou da elaboração do relatório da sociedade civil brasileira para o Comitê da ONU de Monitoramento da Convenção em 2015.

Jéssica Caroline Tragancin Ribeiro
Advogada de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados e pós-graduanda em Master of Laws (LL.M) em direito civil e processual civil pela Fundação Getúlio Vargas - FGV.

Vinicius Fidelis Costa
Advogado do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Coordenador Adjunto do Núcleo São Paulo da ABRAÇA - Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas.

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