Migalhas de Peso

Paulicéia desvairada... e desfigurada

O desfiguramento de São Paulo e de outros grandes centros urbanos a par de um admirável mundo do trabalho novo os esvazia e quem fica, vive e viverá cada vez mais uma vida pobre e progressivamente isolada.

17/10/2022

Horrível a cidade!

Vaidades e mais vaidades...

Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!

Oh! os tumultuários das ausências!

Pauliceia — a grande boca de mil dentes.

(Do poema “Cortejos”, com pequena adaptação deste autor)

Homens e máquinas se ajuntam para um desmonte quase geral em toda a cidade. Não há quarteirões em que os inimigos não sejam rapidamente derrubados por grandes máquinas e homens em meio ao barulho intenso e à poeira que se alastra. Centenas de prédios elevam-se para o alto projetando a sua sombra nas calçadas, altaneiros. Os inimigos são as casas indefesas onde antes havia gente morando, onde o comercio era exercido em toda a sua expressão. A fome das incorporadoras é insaciável e seus olhos atilados perseguem todos os alvos possíveis de se tornarem em um passado distante na busca de um futuro tido como promissor.

As pressões para venda dessas casas são muito fortes, com preços e condições aceitáveis e ninguém deseja ficar imprensado sozinho com a sua casa entre dois grandes edifícios. A falta de segurança é geral e não raramente acontece um roubo e até mesmo um sequestro seguido ou não de morte do morador que é apanhado indefeso na porta da sua garagem. Não tão distante é este tempo daquele que em muitos bairros as pessoas deixavam o carro com a chave no contato enquanto desciam para fazer alguma coisa e ao voltar ele estava intacto no mesmo lugar. Em que no final da tarde os moradores colocavam cadeiras nos portões de suas residências para um papo salutar, enquanto as crianças brincavam ali perto. Isto era São Paulo até a década de 1970.

Nos dias de hoje foram-se e estão indo embora cada vez mais bares, restaurantes, sapatarias, papelarias, lojas de roupas, pequenas escolas, clínicas, consultórios, barbearias, pedreiros, encanadores, eletricistas, tudo, enfim, o que cabia com proveito no espaço de uma casa térrea, de um sobrado ou de uma portinha de garagem. O comércio desaparece e o movimento nas ruas à noite é só de moradores que entram e saem dos seus condomínios a bordo dos seus carros, escondidos do olhar alheio por vidros escuros. Ao escurecer as calçadas estão vazias e as ruas mortas, tornadas terra de ninguém. Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!

Idosos, escondam-se! Crianças, fiquem em casa! Jovens, fujam para longe, atrás de algum ambiente acolhedor para se encontrarem onde a sanha destrutiva ainda não tenha chegado e alguma música ainda se ouça vinda, de alguma base da Resistência, enquanto ela resiste.

Ali eu tomava um café no final da tarde. O barista eu conhecia pelo nome e ele me conhecia também depois de mais de trinta anos de convivência. Acolá eu almoçava em um pequeno bistrô. O garçom sabia dos meus gostos. Mais adiante eu deixava a minha roupa para lavar e pagava depois. A costureira arrumava as minhas roupas. À noite havia uma pizzaria bem em frente de onde eu morava. Marguerita sem muita mozzarella, já trazia o velho companheiro. Na lojinha ao lado eu comprava um presente para a minha esposa. Mas não mais. Vamos pegar nossos carros e buscar o shopping mais próximo, onde somos ninguém, mais um rosto perdido em um mar de gente.

A São Paulo em que vivo há mais de cinquenta décadas deixou de existir. Algumas coisas boas aconteceram, mas com o desmonte geral, o saldo é altamente negativo, como qualquer um pode perceber.

Você, seduzido por um lançamento, venha morar em um estúdio de 19 metros quadrados. É o que cabe no seu bolso para ficar em um bairro não periférico, mas a conta mesmo assim é muito salgada. Mas não coloque dentro dele nem sequer um livro, porque não cabe.  No seu prédio existem dezenas de outras unidades iguais à sua, ou as gigantes, com o dobro do tamanho. Você não se preocupa, a área de lazer é grande e completa. A academia é profissional. A piscina quase olímpica. A lavanderia coletiva atende as suas necessidades, ainda que de vez em sempre precise esperar bastante tempo a sua vez e quando abre a máquina estão lá peças íntimas que o usuário anterior esqueceu de pegar. Também aparece um tapete pesado que acabou de quebrar a engenhoca. Volte depois para a privacidade de sua moradia onde poderá ficar tranquilo, vivendo assim em uma admirável Liliput moderna.

Mas, muito discretos, também estão os mega apartamentos, a partir de 500 metros quadrados. Em alguns deles patrões e empregados precisam de aparelhos para se comunicarem internamente. Prédios discretos, porteiros de terno preto e óculos escuros na entrada. Grades altas, interior indevassável. Eles também ajudam a derrubar casas em profusão, ocupando todos os espaços disponíveis. Os proprietários desses apartamentos não usam Uber ou entregas de comida na porta. Vivem em um mundo à parte.

Uma cidade equilibrada mantém harmoniosamente prédios e casas segundo uma lógica eficiente. O conceito moderno já aplicado em muitos lugares consiste na maneira pela qual os moradores encontrem tudo de que precisam dentro de um círculo que lhes permita satisfazer as suas necessidades a pé. Bom para a saúde, para o bolso e para o meio ambiente. A mudança profunda no regime de trabalho acelerada pela Covid-19 tornou esse conceito um dos fundamentos da sociedade moderna. Você trabalha em casa e quanto menos precisar sair para longe, melhor. Mas isso depende de um plano diretor, de que as cidades brasileiras são inteiramente carentes. Dessa maneira a liberdade de empreender das incorporadoras não encontra praticamente qualquer inibição, exceto quanto a alguns bairros que em época distante alcançaram o status de intocáveis, mas que estão sob a mira de olhares gulosos que desejam avançar sobre eles.

Falando especificamente de São Paulo a falta de visão estratégica dos governantes e a política barata de inaugurar obras a par da irresponsabilidade da câmara dos vereadores, fez bairros, avenidas e ruas sucumbirem ao abandono total. O famoso Minhocão destruiu a Avenida São João e seu entorno, tendo tornado até mesmo praticamente inabitáveis os apartamentos cujas janelas dão para aquele monstrengo que, com o tempo, se tornou um mal necessário pela falta de alternativa para a circulação dos automóveis, mal também necessário em vista da falta de qualidade e insuficiência do transporte público que somente muitas décadas depois começa mostrar uma face mais amigável pela rara inauguração de estações novas do metrô.

Os imóveis existentes nessas localidades deterioradas não têm qualquer valor e sua localização não atrai os incorporadores. Planos de revitalização sem consistência se seguem uns após os outros, destacando-se o sempre lembrado caso do centro velho, nunca implementada. As noites da Cinelândia, onde pululavam cinemas e restaurantes que varavam a madrugada no atendimento dos seus clientes nem sequer ficam mais na saudade porque a maioria dos que a frequentavam já não está entre nós.

Esse novo mundo de São Paulo não mais seduz. Muitos dos seus moradores que fugiram da cidade para lugares mais protegidos da Covid-19 não mais voltaram e pelo que se sabe o êxodo não terminou. O regime do “me office” permite que se trabalhe em qualquer lugar, a qualquer hora, dando uma liberdade que não é mais preenchida pelos grandes centros. Meu escritório é onde eu estiver.

Assim sendo, o desfiguramento de São Paulo e de outros grandes centros urbanos a par de um admirável mundo do trabalho novo os esvazia e quem fica, vive e viverá cada vez mais uma vida pobre e progressivamente isolada.

Quosque tandem, incorporadoras, abutere patientia nostra?

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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