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Incompatibilidade de gênios: como pedir uma liminar de divórcio?

O fato, parece-me, é que estamos buscando tirar leite de pedra para encontrar no CPC instrumento adequado para a decretação de divórcio por liminar.

14/10/2022

Quero me separar!
João Bosco e Aldir Blanc

Em 2010, a Emenda Constitucional nº 66 alterou a redação do art. 226, § 6º da Constituição. Antes, a regra era que o casamento civil poderia ser dissolvido pelo divórcio desde que após separação judicial por mais de um ano. Agora, prevê-se, simplesmente, que o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. Há, aí, um silêncio eloquente. Antes, o direito de se divorciar estava condicionado ao prévio procedimento de separação judicial – que não propriamente dissolvia o casamento, a pessoa tecnicamente não deixava de ser casada. Agora não há mais essa condição. Boa parte dos especialistas tem entendido que a tal separação judicial deixou de existir no direito brasileiro. O que se tem interpretado a partir da EC 66/2010 é que o direito de se divorciar passou a ser um direito sem maiores requisitos: para que a pessoa casada tenha direito de se divorciar basta que ela manifeste sua vontade de se divorciar. A ideia é que ninguém é obrigado a permanecer casado se disse que não quer mais ser casado – a dissolução do vínculo, assim, não depende de qualquer manifestação de vontade ou aceitação do outro cônjuge.

Só que o divórcio é algo que produz efeitos jurídicos bastante consideráveis. Afinal, estamos falando de mudar o estado civil da pessoa. Por isso, o divórcio só ocorre quando uma autoridade pública – frequentemente um juiz – o decreta. Daí que esse direito, embora quase sem requisitos, ainda exige algum esforço daquele que quer se divorciar – um esforço para além da manifestação de sua vontade de se divorciar, o esforço de ir ao Poder Judiciário ou, em alguns casos, a um cartório competente para iniciar um procedimento orientado à decretação do divórcio. Se ainda é necessário buscar esse procedimento, a pessoa que quer se divorciar ainda precisará enfrentar o regramento procedimental aplicável. Levado o pedido de divórcio ao Judiciário, este regramento estará, a princípio, no Código de Processo Civil (CPC).

Embora seja posterior a 2010, todas as vezes em que o CPC faz menção ao procedimento de divórcio, age como se ele ainda estivesse vinculado à antiga separação judicial. Os acadêmicos têm lamentado extensamente este fato. O Código de Processo Civil (de 2015) como que fechou os olhos para a alteração constitucional de 2010.

Recentemente, advogados e juristas passaram a cogitar a possibilidade de decretação de divórcio por meio de decisão liminar. A decisão liminar é aquela que é proferida pelo juiz sem que ele tenha ouvido todas as partes interessadas. Em suma: o juiz dá uma decisão a partir, unicamente, da versão dos fatos trazida pelo autor da ação, sem ouvir o réu. Em regra, o juiz só pode decidir após ouvir os argumentos e as versões dos fatos de todas as partes. Por isso, a possibilidade de decisão liminar, pelo Código de Processo Civil, é limitada.

Quando uma decisão é tomada sem que todas as partes tenham tido todas as oportunidades previstas em lei para convencer o juiz, diz-se que ela se baseia em cognição sumária. Quando, ao contrário, todos puderam se valer de todos os instrumentos legais para influenciar a tomada de decisão, diz-se que ela se funda em cognição exauriente. A decisão liminar é uma decisão fundada em cognição sumária. Apesar disso, nem toda decisão fundada em cognição sumária é uma liminar. A liminar é a decisão proferida antes da oitiva do réu. Quando, por exemplo, o juiz dá uma decisão após ouvir o réu, mas antes de ouvir as testemunhas que ele indicou que traria para corroborar suas alegações, há decisão fundada em cognição sumária (porque o juiz decidiu antes que o réu pudesse se valer de todos os instrumentos que a lei lhe dá para provar suas alegações), mas não se trata de decisão liminar.

 A decisão tomada com base em cognição sumária é autorizada pelo CPC se preenchidos os requisitos das chamadas tutelas provisórias. Como a liminar é um tipo de decisão fundada em cognição sumária, em princípio, ela só seria cabível quando preenchidos os requisitos das tutelas provisórias.

Há dois tipos de tutela provisória: de urgência e de evidência. Concede-se tutela provisória de urgência quando (i) há probabilidade de o autor de fato ter direito àquilo que ele pleiteia; e (ii) quando aguardar a manifestação do réu e todo o procedimento judicial representar algum tipo de perigo para ele. Existindo probabilidade de direito e perigo na demora, concede-se tutela provisória de urgência. A tutela provisória de evidência, ao contrário, é concedida em quatro casos específicos. Em apenas dois deles, porém, a lei autoriza a concessão de medidas liminares: (i) quando se tratar de ação reipersecutória fundada em prova documental de contrato de depósito; ou (ii) quando as alegações do autor puderem ser provadas apenas pelos documentos trazidos por ele e se sobre a matéria em julgamento já houver decisões com força vinculante. Nas outras duas hipóteses de tutela de evidência, é possível a tomada de decisão com base em cognição sumária, mas não de forma liminar. A ação de divórcio não tem nada a ver com a tal ação reipersecutória e sobre o tema do divórcio liminar não há, até agora, decisões com força vinculante.

Quando os advogados começaram a pensar em divórcio liminar, naturalmente, pensaram nos requisitos das tutelas provisórias. Inicialmente pensaram em tutela de urgência. O primeiro obstáculo encontrado foi na demonstração de perigo na demora. A decretação do divórcio produz efeitos importantes, é verdade, mas esses efeitos dificilmente protegem a pessoa de algum perigo. Além disso, houve uma decisão do STJ que considerou que não seria possível a concessão de tutela provisória de urgência para o divórcio liminar por conta de a decretação de divórcio ser medida irreversível. Este entendimento foi um balde de água fria para aqueles que pretendiam usar a tutela de urgência para concessão dessa liminar e significou, em grande medida, o abandono da tese.

A segunda tentativa foi olhar para os requisitos da tutela provisória de evidência. Aqui o problema apareceu bem rápido: a tutela de evidência não autoriza liminar senão em dois casos. Um deles exigiria decisões vinculantes sobre divórcio liminar e o outro se refere a uma ação que em nada se assemelha à ação de divórcio.

Recentemente, William Soares Pugliese e Marília Pedroso Xavier escreveram “Divórcio liminar: técnica processual adequada para sua decretação” e se debruçaram, longamente, sobre essa questão. No livro, propõe-se que a liminar de divórcio seja concedida com base em outro instrumento previsto no CPC: o julgamento antecipado. Trata-se de uma novidade – estamos saindo do domínio das tutelas provisórias.

O julgamento antecipado é possível, diz a lei, quando algum dos pedidos “se mostrar incontroverso”. Um pedido é incontroverso quando uma parte o faz e a outra não se opõe. Neste caso, julga-se antecipadamente, isto é: o pedido é julgado sem que seja necessário ir a outras etapas do procedimento, que normalmente ocorreriam após a manifestação de cada uma das partes. Julga-se, por exemplo, sem que se marque audiência para o juiz ouvir testemunhas. Neste caso, note, a decisão se funda em cognição exauriente, não sumária. A parte já teve a oportunidade de se valer de todos os instrumentos que a lei lhe dá para influir na tomada de decisão – apenas não fez isso, deixando de controverter o pedido.

Pugliese e Xavier entendem que seria possível, com base nisso, a decretação de divórcio de forma liminar. O TJPR, por exemplo, já acatou a tese: entendeu-se que, como o divórcio não tem qualquer requisito além da manifestação de vontade de se divorciar proferida por pessoa casada, o réu (o outro cônjuge) não teria defesa possível – não teria como controverter o pedido, de modo que seria possível a concessão liminar com base na norma que prevê o julgamento antecipado para pedidos incontroversos.

 A ideia é muito boa. No entanto, penso que não é possível qualificar um pedido como incontroverso sem antes ouvir o réu. Um pedido só é incontroverso quando o réu não se opõe a ele. E, rigorosamente, há, sim, defesa possível para o réu. O fato é que, como toda norma, aquela que outorga o direito ao divórcio prevê condições fáticas para sua incidência (em outras palavras, toda norma tem suporte fático). Neste caso, há dois requisitos para se ter direito ao divórcio: (i) ser casado; e (ii) manifestar vontade de se divorciar. Enquanto o réu (ou a ré) não é ouvido, existe a possibilidade de ele alegar que a autora (ou o autor) não é casada ou que na verdade não manifestou a vontade de se divorciar. Se isso acontecer, o pedido não pode mais ser considerado incontroverso: antes de se ouvir o réu não é possível dizer que o pedido é incontroverso.

O fato, parece-me, é que estamos buscando tirar leite de pedra para encontrar no CPC instrumento adequado para a decretação de divórcio por liminar. Só que o CPC, na verdade, fechou os olhos para a disciplina jurídica do divórcio pós-2010: todas as vezes em que ele fala em divórcio, fala junto da separação judicial. A realidade, infelizmente, é que o Código de Processo não prevê meio adequado para a tutela do direito ao divórcio através de medida liminar.

Apesar disso, penso que há uma saída. Com a emenda de 2010, a Constituição passa a prever o divórcio como um direito sem requisitos além da manifestação de um dos cônjuges. Quando a Constituição prevê um direito com essas características, passa a ser dever da legislação processual a previsão de instrumentos adequados à satisfação das necessidades desse direito. É o que decorre de uma outra norma constitucional, que diz que o processo deve, necessariamente, satisfazer as necessidades dos direitos previstos nas leis e na Constituição – fala-se do art. 5º, XXXV da Constituição, interpretado neste sentido por toda uma tradição de processualistas, que enxergam o processo como instrumento de tutela dos direitos. Se o direito ao divórcio tem como característica notória não depender de qualquer manifestação do outro cônjuge, a legislação processual tem como missão constitucional (pelo art. 5º, XXXV) prever técnica processual adequada a possibilitar o divórcio independentemente de manifestação do outro cônjuge. Como o CPC não previu tal técnica, o CPC, neste ponto, é inconstitucional por omissão. O CPC é norma hierarquicamente inferior à Constituição. Todo juiz brasileiro, assim, está autorizado a controlar sua constitucionalidade. Assim, qualquer juiz pode reconhecer esta situação de inconstitucionalidade no CPC e supri-la, dando àquele que apresenta prova sólida dos requisitos do direito de divórcio sua decretação liminar. Este tipo de controle de constitucionalidade é chamado de controle difuso e só produz efeitos, naturalmente, sobre as partes do processo em que ele é realizado – uma decisão deste tipo, portanto, não equivaleria a dizer que o CPC é sempre inconstitucional, mas apenas que, naquele caso, sua omissão gerou uma situação de inconstitucionalidade que teve de ser suprida judicialmente.

Eduardo Fantin Prezepiorski
Discente do quinto ano da faculdade de Direito da UFPR. Colaborador do escritório Fachin Advogados Associados.

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