Quero me separar!
João Bosco e Aldir Blanc
Em 2010, a Emenda Constitucional nº 66 alterou a redação do art. 226, § 6º da Constituição. Antes, a regra era que o casamento civil poderia ser dissolvido pelo divórcio desde que após separação judicial por mais de um ano. Agora, prevê-se, simplesmente, que o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. Há, aí, um silêncio eloquente. Antes, o direito de se divorciar estava condicionado ao prévio procedimento de separação judicial – que não propriamente dissolvia o casamento, a pessoa tecnicamente não deixava de ser casada. Agora não há mais essa condição. Boa parte dos especialistas tem entendido que a tal separação judicial deixou de existir no direito brasileiro. O que se tem interpretado a partir da EC 66/2010 é que o direito de se divorciar passou a ser um direito sem maiores requisitos: para que a pessoa casada tenha direito de se divorciar basta que ela manifeste sua vontade de se divorciar. A ideia é que ninguém é obrigado a permanecer casado se disse que não quer mais ser casado – a dissolução do vínculo, assim, não depende de qualquer manifestação de vontade ou aceitação do outro cônjuge.
Só que o divórcio é algo que produz efeitos jurídicos bastante consideráveis. Afinal, estamos falando de mudar o estado civil da pessoa. Por isso, o divórcio só ocorre quando uma autoridade pública – frequentemente um juiz – o decreta. Daí que esse direito, embora quase sem requisitos, ainda exige algum esforço daquele que quer se divorciar – um esforço para além da manifestação de sua vontade de se divorciar, o esforço de ir ao Poder Judiciário ou, em alguns casos, a um cartório competente para iniciar um procedimento orientado à decretação do divórcio. Se ainda é necessário buscar esse procedimento, a pessoa que quer se divorciar ainda precisará enfrentar o regramento procedimental aplicável. Levado o pedido de divórcio ao Judiciário, este regramento estará, a princípio, no Código de Processo Civil (CPC).
Embora seja posterior a 2010, todas as vezes em que o CPC faz menção ao procedimento de divórcio, age como se ele ainda estivesse vinculado à antiga separação judicial. Os acadêmicos têm lamentado extensamente este fato. O Código de Processo Civil (de 2015) como que fechou os olhos para a alteração constitucional de 2010.
Recentemente, advogados e juristas passaram a cogitar a possibilidade de decretação de divórcio por meio de decisão liminar. A decisão liminar é aquela que é proferida pelo juiz sem que ele tenha ouvido todas as partes interessadas. Em suma: o juiz dá uma decisão a partir, unicamente, da versão dos fatos trazida pelo autor da ação, sem ouvir o réu. Em regra, o juiz só pode decidir após ouvir os argumentos e as versões dos fatos de todas as partes. Por isso, a possibilidade de decisão liminar, pelo Código de Processo Civil, é limitada.
Quando uma decisão é tomada sem que todas as partes tenham tido todas as oportunidades previstas em lei para convencer o juiz, diz-se que ela se baseia em cognição sumária. Quando, ao contrário, todos puderam se valer de todos os instrumentos legais para influenciar a tomada de decisão, diz-se que ela se funda em cognição exauriente. A decisão liminar é uma decisão fundada em cognição sumária. Apesar disso, nem toda decisão fundada em cognição sumária é uma liminar. A liminar é a decisão proferida antes da oitiva do réu. Quando, por exemplo, o juiz dá uma decisão após ouvir o réu, mas antes de ouvir as testemunhas que ele indicou que traria para corroborar suas alegações, há decisão fundada em cognição sumária (porque o juiz decidiu antes que o réu pudesse se valer de todos os instrumentos que a lei lhe dá para provar suas alegações), mas não se trata de decisão liminar.
A decisão tomada com base em cognição sumária é autorizada pelo CPC se preenchidos os requisitos das chamadas tutelas provisórias. Como a liminar é um tipo de decisão fundada em cognição sumária, em princípio, ela só seria cabível quando preenchidos os requisitos das tutelas provisórias.
Há dois tipos de tutela provisória: de urgência e de evidência. Concede-se tutela provisória de urgência quando (i) há probabilidade de o autor de fato ter direito àquilo que ele pleiteia; e (ii) quando aguardar a manifestação do réu e todo o procedimento judicial representar algum tipo de perigo para ele. Existindo probabilidade de direito e perigo na demora, concede-se tutela provisória de urgência. A tutela provisória de evidência, ao contrário, é concedida em quatro casos específicos. Em apenas dois deles, porém, a lei autoriza a concessão de medidas liminares: (i) quando se tratar de ação reipersecutória fundada em prova documental de contrato de depósito; ou (ii) quando as alegações do autor puderem ser provadas apenas pelos documentos trazidos por ele e se sobre a matéria em julgamento já houver decisões com força vinculante. Nas outras duas hipóteses de tutela de evidência, é possível a tomada de decisão com base em cognição sumária, mas não de forma liminar. A ação de divórcio não tem nada a ver com a tal ação reipersecutória e sobre o tema do divórcio liminar não há, até agora, decisões com força vinculante.
Quando os advogados começaram a pensar em divórcio liminar, naturalmente, pensaram nos requisitos das tutelas provisórias. Inicialmente pensaram em tutela de urgência. O primeiro obstáculo encontrado foi na demonstração de perigo na demora. A decretação do divórcio produz efeitos importantes, é verdade, mas esses efeitos dificilmente protegem a pessoa de algum perigo. Além disso, houve uma decisão do STJ que considerou que não seria possível a concessão de tutela provisória de urgência para o divórcio liminar por conta de a decretação de divórcio ser medida irreversível. Este entendimento foi um balde de água fria para aqueles que pretendiam usar a tutela de urgência para concessão dessa liminar e significou, em grande medida, o abandono da tese.
A segunda tentativa foi olhar para os requisitos da tutela provisória de evidência. Aqui o problema apareceu bem rápido: a tutela de evidência não autoriza liminar senão em dois casos. Um deles exigiria decisões vinculantes sobre divórcio liminar e o outro se refere a uma ação que em nada se assemelha à ação de divórcio.
Recentemente, William Soares Pugliese e Marília Pedroso Xavier escreveram “Divórcio liminar: técnica processual adequada para sua decretação” e se debruçaram, longamente, sobre essa questão. No livro, propõe-se que a liminar de divórcio seja concedida com base em outro instrumento previsto no CPC: o julgamento antecipado. Trata-se de uma novidade – estamos saindo do domínio das tutelas provisórias.
O julgamento antecipado é possível, diz a lei, quando algum dos pedidos “se mostrar incontroverso”. Um pedido é incontroverso quando uma parte o faz e a outra não se opõe. Neste caso, julga-se antecipadamente, isto é: o pedido é julgado sem que seja necessário ir a outras etapas do procedimento, que normalmente ocorreriam após a manifestação de cada uma das partes. Julga-se, por exemplo, sem que se marque audiência para o juiz ouvir testemunhas. Neste caso, note, a decisão se funda em cognição exauriente, não sumária. A parte já teve a oportunidade de se valer de todos os instrumentos que a lei lhe dá para influir na tomada de decisão – apenas não fez isso, deixando de controverter o pedido.
Pugliese e Xavier entendem que seria possível, com base nisso, a decretação de divórcio de forma liminar. O TJPR, por exemplo, já acatou a tese: entendeu-se que, como o divórcio não tem qualquer requisito além da manifestação de vontade de se divorciar proferida por pessoa casada, o réu (o outro cônjuge) não teria defesa possível – não teria como controverter o pedido, de modo que seria possível a concessão liminar com base na norma que prevê o julgamento antecipado para pedidos incontroversos.
A ideia é muito boa. No entanto, penso que não é possível qualificar um pedido como incontroverso sem antes ouvir o réu. Um pedido só é incontroverso quando o réu não se opõe a ele. E, rigorosamente, há, sim, defesa possível para o réu. O fato é que, como toda norma, aquela que outorga o direito ao divórcio prevê condições fáticas para sua incidência (em outras palavras, toda norma tem suporte fático). Neste caso, há dois requisitos para se ter direito ao divórcio: (i) ser casado; e (ii) manifestar vontade de se divorciar. Enquanto o réu (ou a ré) não é ouvido, existe a possibilidade de ele alegar que a autora (ou o autor) não é casada ou que na verdade não manifestou a vontade de se divorciar. Se isso acontecer, o pedido não pode mais ser considerado incontroverso: antes de se ouvir o réu não é possível dizer que o pedido é incontroverso.
O fato, parece-me, é que estamos buscando tirar leite de pedra para encontrar no CPC instrumento adequado para a decretação de divórcio por liminar. Só que o CPC, na verdade, fechou os olhos para a disciplina jurídica do divórcio pós-2010: todas as vezes em que ele fala em divórcio, fala junto da separação judicial. A realidade, infelizmente, é que o Código de Processo não prevê meio adequado para a tutela do direito ao divórcio através de medida liminar.
Apesar disso, penso que há uma saída. Com a emenda de 2010, a Constituição passa a prever o divórcio como um direito sem requisitos além da manifestação de um dos cônjuges. Quando a Constituição prevê um direito com essas características, passa a ser dever da legislação processual a previsão de instrumentos adequados à satisfação das necessidades desse direito. É o que decorre de uma outra norma constitucional, que diz que o processo deve, necessariamente, satisfazer as necessidades dos direitos previstos nas leis e na Constituição – fala-se do art. 5º, XXXV da Constituição, interpretado neste sentido por toda uma tradição de processualistas, que enxergam o processo como instrumento de tutela dos direitos. Se o direito ao divórcio tem como característica notória não depender de qualquer manifestação do outro cônjuge, a legislação processual tem como missão constitucional (pelo art. 5º, XXXV) prever técnica processual adequada a possibilitar o divórcio independentemente de manifestação do outro cônjuge. Como o CPC não previu tal técnica, o CPC, neste ponto, é inconstitucional por omissão. O CPC é norma hierarquicamente inferior à Constituição. Todo juiz brasileiro, assim, está autorizado a controlar sua constitucionalidade. Assim, qualquer juiz pode reconhecer esta situação de inconstitucionalidade no CPC e supri-la, dando àquele que apresenta prova sólida dos requisitos do direito de divórcio sua decretação liminar. Este tipo de controle de constitucionalidade é chamado de controle difuso e só produz efeitos, naturalmente, sobre as partes do processo em que ele é realizado – uma decisão deste tipo, portanto, não equivaleria a dizer que o CPC é sempre inconstitucional, mas apenas que, naquele caso, sua omissão gerou uma situação de inconstitucionalidade que teve de ser suprida judicialmente.