Migalhas de Peso

STF em surpreendente decisão gera nova insegurança jurídica, agora, voltada para a hipótese de incidência do ITBI

É difícil de entender o que, de fato, está ocorrendo no STF com o inusitado “cancelamento” da decisão plenária, sob o argumento de “confusão” processual.

14/10/2022

Há algumas semanas atrás comentamos com imensa satisfação a escorreita decisão plenária do STF que, sob a sistemática de repercussão geral (Tema 1124), decidiu no julgamento do ARE 1294969-RG que não é devido o ITBI no compromisso de compra e venda, reiterando sua jurisprudência que data de 1984.

Acrescentamos naqueles comentários de que se o compromisso estiver registrado, o ITBI passa a incidir, porque o registro confere ao compromisso de compra e venda a natureza de direito real, cuja transmissão provoca a ocorrência do fato gerador.

Outrossim, salientamos que a douta decisão prolatada sob a égide de repercussão geral  traria a esperada segurança jurídica, tendo em vista o seu efeito vinculante a todos os órgãos do Poder Judiciário.

Todavia, a nossa alegria durou pouco. O STF, para a nossa surpresa, na sessão do dia 26/8/22, por maioria de 7 votos contra 4, cancelou aquela decisão plenária alegando “confusão” processual que teria havido naquela decisão proferida sob a sistemática de repercussão geral.

Tudo indica que a Corte Maior deixou-se levar pela falácia da Prefeitura que ingressou com embargos declaratórios lançando a semente de confusão mediante invocação da realidade social em que os imóveis são “adquiridos” por compromisso de compra e venda ou por meros instrumentos de cessão de direitos, que nunca são levados a registro, mandando às urtigas o texto do art. 146, II da Constituição que, com a lapidar clareza, outorgou a competência impositiva aos Municípios para tributar a transmissão de bens imóveis; a transmissão de direitos reais sobre imóveis; e a cessão de direito à aquisição do bem imóvel ou à aquisição dos direitos reais sobre imóveis que implica transmissão do respectivo direito ao cessionário.

Efetivamente prescreve o art. 156, II da  CF que compete aos Municípios instituir o imposto sobre:

“[...]

II - transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direito a sua aquisição”.

Basta simples leitura ocular do texto acima transcrito para constatar a necessidade de conhecer os institutos de direito civil, bem como o disposto no art. 110 do CTN assim prescreve:

“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

O referido preceito do Código Tributário Nacional tem por fim,  não apenas preservar o princípio da privatividade  na tributação de impostos discriminados na Constituição (arts. 153, 155 e 156), assim como, para uniformizar a cobrança do ITBI em todo o território nacional, com exceção da fixação de alíquotas de competência do legislador municipal, porque essa matéria não está abrangida nas normas gerais sobre legislação tributária referida no art. 146, III da CF. O peso da imposição tributária é matéria cabente à política tributária de cada Município.

A compreensão da materialidade da hipótese de incidência do ITBI, que o legislador municipal sempre fez questão de ignorar, ignorou depende do exame dos seguintes elementos:

a) o exame do conceito de bem imóvel que está referido no art. 79 do CC (o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente);

b) o conceito de direitos reais que são considerados imóveis conforme art. 80 do CC (os direitos reais sobre imóveis e as ações que os assegurem e o direito à sucessão aberta).

Os direitos reais estão arrolados ao art. 1.225 do CC, dentre os quais, a propriedade, o usufruto, o direito do promitente comprador de imóvel etc.

O que caracteriza o direito real é a sua oponibilidade erga omnes, isto é, o poder de o seu titular reaver a posse do bem onde quer que se encontre.

Esses direitos reais somente podem ser adquiridos na forma do art. 1.227 do CC, ou seja, mediante registro dos respectivos títulos no Registro de Imóveis.

c) a transmissão da propriedade que somente ocorre com o registro do título de transferência (escritura de compra e venda) no Registro Imobiliário Competente (art. 1.245 do CC).

Uma escritura pública de compra e venda não registrada nada transmite e, por conseguinte, o comprador deixa de ser o titular do domínio.

Igualmente, o compromisso de compra e venda de imóvel não registrado não se caracteriza como direito real oponível erga omnes. Sem registro o compromisso caracteriza-se com o mero direito pessoal não podendo o compromissário comprador, no caso de recusa do vendedor de dar cumprimento ao compromisso depois de quitado o preço convencionado, proceder à adjudicação compulsória do imóvel, mas deverá recorrer à via ordinária.

Pelo exposto até aqui surge com lapidar clareza que o aspecto temporal do fato gerador do ITBI é o registro da escritura aquisitiva e o registro do compromisso de compra e venda. Da mesma forma,  o fato gerador de cessão de direitos imobiliários ocorre no momento do registro do instrumento de cessão.

Exposta a matéria dessa forma com base no texto constitucional, dispositivos do CTN e do Código Civil retrorreferidos torna-se incompreensível o cancelamento da escorreita decisão plenária proferida sob a égide de repercussão geral, mediante acolhimento com efeitos infringentes dos embargos de declaração apresentados pela astuta Prefeitura que lançou a semente da confusão que impressiona os leigos, mas não os juristas.

Ante a confusão lançada pela esperta Prefeitura, o insigne Ministro Dias Toffoli, prolator do voto condutor da maioria, sustentou que a Constituição abriga três hipóteses de incidência de ITBI: duas relacionadas à transmissão e uma à cessão.

Certo, como vimos linhas atrás. Só que não é qualquer cessão, mas apenas a cessão de direitos imobiliários que implica transmissão dos direitos mediante registro do respectivo instrumento de cessão.

Ora, não existe, nem pode existir cessão de direitos decorrentes de compromisso de compra e venda sem a transmissão desses direitos ao cessionário, e transmissão só se opera com registro.

Logo, nas  três hipóteses de incidência do ITBI mencionadas pelo ínclito Ministro Dias Toffoli pra que a transmissão ocorra é preciso o registro dos respectivos instrumentos públicos ou particulares no Registro de Imóveis competente.

Nunca é demais relembrar noção elementar de que o ITBI não incide sobre o imóvel, como acontece com o IPTU, mas tão somente sobre transmissão de bens imóveis ou de direitos reais sobre imóveis, sob pena de fazer confusão entre os dois impostos que se distinguem pelo exame do respectivo fato gerador. E como vimos, a transmissão somente se opera mediante o registro do título de transferência no Registro de Imóveis competente.

Qual a dúvida? Onde a contradição, omissão ou obscuridade a ensejar interposição de embargos declaratórios?

Resta claro que o objetivo desses descabidos embargos declaratórios é o de lançar a confusão para tentar reverter a jurisprudência do STF que data de 1984, quando no julgamento da Rp 1121160, Rel. Ministro Moreira Alves, DJ de 13/4/84, assentou a tese de que “compromisso de compra e venda, no sistema brasileiro, não transmite direitos reais nem configura cessão de direitos a aquisição deles”. Posteriormente, esse entendimento feio a ser reafirmado no AgRg no AI 603309/MG, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 23/2/07).

Logo, é difícil de entender o que, de fato, está ocorrendo no STF com o inusitado “cancelamento” da decisão plenária, sob o argumento de “confusão” processual.

Não resta dúvida de que o Colendo Supremo Tribunal Federal está  promovendo confusão em sua jurisprudência pacificada há mais de três décadas, minando o princípio de segurança jurídica.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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