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O recurso especial e a relevância da questão jurídica discutida (EC 125/22)

Uma breve abordagem dos principais pontos em discussão a respeito da EC 125/22, que instituiu o requisito da relevância da questão federal no recurso especial.

11/10/2022

1 – A inovação no regime de admissibilidade do recurso especial instituída pela EC 125/22

Acaba de ser editada a Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, para alterar, significativamente, o regime de admissibilidade do recurso especial, objeto do artigo 105 da Constituição Federal.

Agora, além de atender aos requisitos do art. 105, III, da Constituição, o recurso especial, deverá conter a demonstração da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo tribunal” (CF, art. 105, § 2º, acrescido pela EC 125/2022)1.

O regime de recurso especial, dessa forma, aproximou-se do regime do recurso extraordinário, para cuja admissão a Constituição já reclamava a demonstração de “repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso” (CF, art. 102, § 3º, acrescido pela EC 45/04). Em ambos os casos, cabe ao Tribunal Superior destinatário do recurso examinar a satisfação do requisito de admissibilidade, exigindo-se quórum especial para que a relevância seja recusada: (i) dois terços dos membros do STF (CF, art. 102, § 3º); e (ii) dois terços dos membros do órgão competente para julgamento do recurso, no STJ (CF, art. 105, § 2º).

Tanto no recurso extraordinário (CPC, art. 1.035, § 3º), como no recurso especial, (CF, art. 105, § 3º, acrescentado pela EC 125), existe previsão de hipóteses de relevância ou repercussão geral presumidas ex lege.

A atual implantação, efetuada pela EC 125, de um filtro para controlar e, sobretudo, reduzir o volume exagerado de recursos especiais que sobem ao Superior Tribunal de Justiça, é o prosseguimento natural e necessário da política legislativa constitucional iniciada pela EC 45/04, no terreno do recurso extraordinário, por meio da repercussão geral. Tal como se passava, em relação ao STF ao tempo da EC 45, proclama-se agora a existência de grave “crise judiciária” também no seio do STJ, a dificultar o cumprimento, com efetividade e qualidade, das funções que lhe foram confiadas pela Constituição.2 E é para debelar essa crise que se concebeu o filtro ora inserido no regime constitucional do recurso especial.

2 – Seriam a mesma coisa a “repercussão geral” do recurso extraordinário e a “relevância” do recurso especial?

  1. a justificação e os objetivos dos filtros de limitação dos recursos especial e extraordinário, são em linha geral os mesmos;
  2. mas a conceituação legal de “repercussão geral” na regulação do cabimento do recurso extraordinário não é a mesma da “relevância” aplicável ao requisito de admissibilidade do recurso especial, como se demonstrará mais adiante.

Justifica-se a criação de filtros para selecionar os recursos excepcionais endereçados tanto ao STF como ao STJ, pela necessidade de limitar o acesso a essas Cortes Supremas (Cortes de Vértice) às questões mais significativas, em consideração à função preponderante que a Constituição lhes reserva, situada mais na defesa dos interesses públicos do que propriamente dos interesses particulares dos litigantes3. Assim, não é justo que as portas desses tribunais estejam abertas para um avolumar enorme e sempre crescente de recursos que, por seu gigantismo, inviabilizam o funcionamento normal e tempestivo da prestação jurisdicional qualificada, a seu cargo, em notório desprestígio da sua adequada e específica missão constitucional.

Sendo inconteste a natureza e finalidade do recurso especial, enquanto espécie do gênero dos recursos excepcionais, voltado objetivamente à defesa e interpretação uniformizadora do direito infraconstitucional, e não à direta tutela dos direitos subjetivos, a primeira justificativa do filtro de seleção dos recursos pela relevância, é a necessidade de reduzi-los ao rol daqueles que realmente envolvem questões em torno de interesse transindividual.

Outra razão para reduzir os recursos endereçados às Cortes de Vértice, é a função de Cortes de Precedentes que o direito atual lhes atribui, tornando fonte de direito a sua jurisprudência. É intuitivo que esse papel institucional dos Tribunais Superiores é prejudicado quando o volume intolerável de processos não permite o exame detido e aprofundado das questões cuja solução deve gerar normas vinculantes.

O excesso de processos, indo além da capacidade de vazão tempestiva e qualificada do Tribunal de Vértice, desvirtua completamente a competência outorgada ao STJ pela CF/88, pois, “não é possível que uma Corte Superior, que exerce preponderantemente uma função pública de intérprete final da legislação federal do país, conviva com esse número irreal de processos e tenha de apreciar questões absolutamente insignificantes para a unidade do ordenamento jurídico e para a sociedade de modo geral”4.

3 – Caracterização da relevância da questão federal, para admissibilidade do recurso especial

Enquanto a repercussão geral (requisito de admissibilidade do recurso extraordinário), de acordo com o art. 1.035, § 1º, do CPC (regulamento do art. 102, § 3º, da CF), deve ser avaliada em função do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, e sempre que se ultrapassem os interesses subjetivos do processo, a relevância exigida pelo art. 105, § 2º da CF, como requisito do recurso especial, nem sempre se liga ao interesse transindividual, uma vez que pode ser configurada até com base exclusivamente no valor da causa (CF, art. 105, § 3º, III).

É evidente, pois, que o legislador ordinário, ao regulamentar a relevância em matéria de recurso especial, não estará limitado a identificá-la a partir apenas do pressuposto da ultrapassagem dos interesses subjetivos em jogo no processo. Com efeito, o valor da causa, à evidência, não é parâmetro adequado à configuração de interesse público, e sim de puro dimensionamento do interesse singular em disputa.

Com isso, a regulamentação do inovador regime da EC 125, terá liberdade para incluir no rol das questões federais relevantes as que bem aprouverem ao legislador infraconstitucional, dentro do credenciamento outorgado pelo § 3º, inc. VI, da CF (acrescido pela EC 125/22).

4 – Relevância e valor da causa

É lícito concluir que, ao considerar relevante a questão apenas em função do valor da causa, a EC 125 afasta-se do sistema da repercussão geral. Enquanto está sempre reclama que a repercussão ultrapasse “os interesses subjetivos do processo” (CPC, art. 1.035, § 1º), o novo § 3º (inserido no art. 105 da CF pela EC 125) presume relevante a questão discutida em ação cujo valor da causa ultrapasse 500 salários-mínimos (CF, art. 105, § 3º, III). Aqui a questão enfocada na perspectiva da sociedade é pouco relevante, porque o maior ou menor valor da causa só se revela relevante para as próprias partes. Portanto, “neste ponto em especial, o perfil da relevância parece ganhar contornos um pouco diversos da repercussão geral”5.

O perigo dessa elasticidade dada à relevância pela EC 125 reside no risco que a instituição constitucional corre de, na regulamentação legal, sofrer influências políticas contrárias aos desígnios restritivos da norma que a criou, prodigalizando, excessivamente e sem critério respeitável, as “presunções de relevância”. Esse critério discricionário, se adotado, frustrará completamente a inovação constitucional, no plano da contenção da avalanche recursal que assola o STJ na atualidade. Nunca é pouco lembrar que a Emenda Constitucional não esgotou as situações de presunção de relevância, permitindo-se no inciso VI, do § 3º, do art. 105, da CF, o estabelecimento de novas hipóteses pelo legislador ordinário, o que levou Cruz e Tucci assinalar que “o texto também deixa aberto o rol, no inciso VI, para ‘outras hipóteses previstas em lei’”6.

5 – Relevância a demonstrar e relevância presumida

Pela nova sistemática introduzida pela EC 125 através dos §§ 2º e 3º do art. 105 da CF, o requisito da relevância da questão federal comporta a distinção em duas categorias: (i) a das hipóteses em que a relevância depende de demonstração, caso a caso, pelo recorrente (§ 2º); e (ii) aquelas em que o próprio dispositivo constitucional declara a respectiva relevância (§ 3º).

Tratando-se de presunção ex lege, o recorrente, nos casos enumerados no § 3º do art. 105, não estará obrigado a demonstrar a relevância propriamente dita da questão discutida no processo, mas apenas fará sua identificação com alguma das situações presuntivas enumeradas pelo referido dispositivo constitucional.

6 – Casuísmo da relevância presumida

Ocorre presunção legal de relevância da questão federal nas seguintes situações elencadas pelo § 3º do art. 105, da CF:

I – ações penais;

II – ações de improbidade administrativa;

III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários-mínimos;

IV – ações que possam gerar inelegibilidade;

V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do STJ;

VI – outras hipóteses previstas em lei.

Algumas dessas hipóteses de configuração automática de relevância merecem particular observação, o que será feito a seguir.

7 – Relevância em função do valor da causa

Presume-se a relevância da questão federal, quando seja objeto de ação cujo valor da causa “ultrapasse 500 (quinhentos) salários-mínimos” (CF, art. 105, § 3º, III). Como o recurso pode acontecer em processos antigos, ajuizados muito antes da vigência da EC 125/22, o art. 2º dessa Emenda autoriza a parte a proceder à atualização do valor da causa, de modo a contemporizá-lo com a entrada em vigor do novo regime constitucional do recurso especial, previsto no art. 105, § 3º, III.

Para os processos novos, que se iniciarem já na vigência da EC 125/22, pensamos que o elemento valor da causa para determinação da relevância da questão federal, será mesmo o estipulado na ocasião do ajuizamento da ação, ou seja, deverá corresponder a mais de 500 salários-mínimos na abertura do processo.

8 – Contrariedade à jurisprudência dominante do STJ

Um dos casos de relevância da questão federal presumida dar-se-á quando o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do STJ (art. 105, § 3º, V). A Emenda Constitucional tem sido criticada por invocar a expressão “jurisprudência dominante” de sentido muito vago, e que nunca teria sido definida, nem pela EC 125, nem por qualquer outra lei7.

No entanto, não se trata de expressão inovadora na legislação processual pátria. O CPC atual refere-se várias vezes à “jurisprudência dominante”, como, por exemplo: (i) no § 1º do art. 926, onde se dispõe que “os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua “jurisprudência dominante”; (ii) no § 3º do art. 927, ao autorizar a possibilidade de haver modulação dos efeitos da decisão “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores”; e (iii) no inc. I do § 3º do art. 1.035, segundo o qual “haverá  repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão “que contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal8.

Embora em doutrina se distinga jurisprudência de precedente pela circunstância de corresponder àquela à sucessão de decisões iguais de um tribunal em torno da mesma questão, enquanto o precedente seria o julgamento de um caso que se adota como paradigma para julgamento de outro caso igual, é comum também usar a ideia de jurisprudência como simples posição decisória ou interpretativa de um tribunal em torno de uma questão, sem necessidade de computar a quantidade de acórdãos em que o tema foi enfocado. Fala-se também em jurisprudência uniforme e jurisprudência controvertida, para situações em que há um só entendimento ou diversos posicionamentos contrastantes dentro do mesmo tribunal. Nessa multiplicidade de qualificativos não deixa de ser jurisprudência do tribunal aquela retratada num só acórdão, enquanto não advém posicionamento diverso em outro ou outros julgados do mesmo tribunal.

Nessa perspectiva, dominante, a nosso ver, é a jurisprudência que prevalece em um tribunal, contra a qual não tem ocorrido insurgência no seio do próprio órgão que a criou. Está em jogo aqui algo correlato à estabilidade que conduz à uniformidade da jurisprudência, de que cogita o art. 926 do CPC. Assim, a noção de dominância serviria para identificar a jurisprudência uniforme (entendimento pacífico) em cotejo com a jurisprudência divergente (entendimento não pacificado). E nessa linha, não é significativa a ocorrência de muitos julgados ou apenas de um ou poucos precedentes. O importante é a firmeza com que o entendimento foi estabelecido.

“De fato – como ressalta MOREIRA –, ainda que tenha o STJ se manifestado numa única vez sobre determinada questão jurídica, vale dizer, num único precedente acórdão, isso já poderia ser chamado de ‘jurisprudência dominante’ para fins do inciso V do § 3º do artigo 105 da Constituição, exatamente porque  não há definição legal, nem constitucional, dessa locução e não há outro acórdão do STJ em sentido contrário àquele que foi contrariado pelo acórdão recorrido proferido por tribunal local ou regional situado topologicamente no art. 92 da Constituição abaixo do STJ e, por isso mesmo, o acórdão recorrido divergente do acórdão do STJ não pode, evidentemente, prevalecer, porque a competência constitucional de dar a última palavra sobre interpretação do direito federal é exclusivamente do STJ, pouco importando se essa palavra tenha sido dita uma única vez”9.

9 – Competência para aferição da relevância da matéria arguida no recurso especial

A arguição de relevância do recurso especial é submetida à apreciação exclusiva do Tribunal ad quem, não cabendo ao presidente do Tribunal de origem manifestar-se sobre a matéria.

Por outro lado, diversamente do que se passa com o recurso extraordinário, não se exige manifestação contrária de 2/3 dos membros do Tribunal, para que a arguição seja rejeitada. Para o recurso especial, a competência para rejeitar a relevância e não admitir o apelo é do órgão do STJ competente para o julgamento do recurso interposto, e o quórum de votação necessário para tanto é de 2/3  dos membros não do tribunal, mas do órgão julgador, ou seja: a Turma, a Seção ou a Corte Especial, conforme o caso (cf. o § 2º do art. 105 da CF)10.

“Ou seja, ao contrário do Supremo Tribunal Federal, em que a repercussão geral é analisada pelo Pleno (Plenário Virtual), a relevância do recurso [especial] poderá se dar pelas Turmas, Seções, ou pela Corte Especial, a depender de qual for o órgão competente para o julgamento [do recurso]. O que será preponderante em relação à competência é o Regimento Interno, que estabelece a competência de seus órgãos”11.

É de se ponderar que essa partilha de competência entre os Órgãos fracionários e a Corte Especial, dificulta, em princípio, a formação de jurisprudência vinculante em torno do julgamento do recurso especial com relevância da questão federal em jogo. Salvo no caso de caso de competência originária da Corte Especial, cujo precedente obriga a todos os tribunais e juízes vinculados hierarquicamente ao STJ, a relevância do especial por si só não formará precedente vinculante. Para tanto, necessária será a submissão ao procedimento dos recursos repetitivos ou da assunção de competência pela Corte Especial.

10 – Vigência imediata da EC 125/22

Previu o art. 3º da EC 125/22 sua entrada em vigor na data da sua publicação. Já se entreviu uma antinomia entre essa regra de vigência imediata e a que prevê a necessidade de regulamentação da forma de arguição de relevância da questão federal (CF, art. 105, § 2º).

Sabe-se, porém, que eficácia e vigência de uma lei são coisas distintas: (i) a vigência diz respeito à validade da lei; enquanto a eficácia corresponde a aptidão do ato normativo vigente, a produzir os efeitos jurídicos por ele visados; torna-se ele obrigatório, ou eficaz, além de válido. Assim, o estabelecimento de um prazo de vacatio legis e a previsão de necessidade de regulamentação da lei nova são impedimentos à eficácia da norma mesmo em se tratando de lei vigente (isto é, lei válida)12.

Na lição sempre atual de CLÓVIS:

“Se, para a execução da lei for necessário regulamento, somente depois da publicação deste, ela se tornará obrigatória, porque os seus dispositivos dependem desse complemento. Se apenas numa parte da lei depender de regulamento, somente a essa parte se aplica a regra”13.

É necessário, por isso, “lembrar que, embora vigência, eficácia e vigor estejam em estreita conexão, a norma pode ter vigência e não ter eficácia”14. E essa desconexão temporária pode ser completa ou parcial, como lembra CLÓVIS na passagem citada. É justamente o que se passa com EC 125, já que no § 2º do art. 105 da CF, fez incluir a necessidade de a relevância da questão federal ser feita “nos termos da lei” (i.e, do regulamento), e no § 3º enumerou casos em que o próprio dispositivo constitucional definiu a ocorrência automática de relevância.

Logo, se a demonstração genérica de relevância só se tornará obrigatória a partir do regulamento do § 2º do art. 105 da CF, a observância da presunção presumida ex lege (§ 3º do mesmo artigo) está em vigor desde logo, por independer da demonstração reclamada no § anterior.

É preciso levar em conta que a EC 125 instituiu duas modalidades diferentes de relevância: (i) a que deve ser demonstrada pelo recorrente, e que se aplica à generalidade dos recursos especiais (§ 2º do art. 105); e (ii) e a estabelecida e definida pela própria Constituição (§ 3º do art. 105).

Feita essa distinção, não se vê antinomia entre a norma que prevê a necessidade de regulamento, aplicável ao § 2º do art. 105 da CF, e a entrada imediata em vigor da EC, que alcançaria os casos de presunção ex lege da relevância enumerados pela própria disposição do § 3º do art. 105 da Constituição15.

Demais a mais, a discussão perde a razão de ser, se, no momento atual, tanto faz considerar em vigor ou não o § 3º do art. 105: é que de qualquer maneira, o resultado será igual: havendo presunção legal de relevância nas hipóteses do referido §, o recurso especial estará dispensado de demonstrar a relevância já admitida expressamente pela própria lei. Logo, esteja ou não eficaz a norma questionada, o recurso especial subirá da mesma forma ao STJ, enquanto não advier? O regulamento cogitado no § 2º do art. 105 do CF.

Releva notar, outrossim, que o § 3º do art. 105 não veio para embaraçar ou dificultar a interposição do recurso especial. Ao contrário, sem objetivo foi justamente liberar o recorrente do ônus argumentativo criado pelo novo § 2º do mesmo art. 105, inovado pela EC 125. Logo sua vigência e eficácia imediatas não podem piorar a situação atual da parte. Por isso, não há razão que justifique aprofundamento da controvérsia sobre o tema.

11 – Direito intertemporal

O art. 2º da EC 125 prevê que a relevância será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor da Emenda Constitucional que instituiu esse novo requisito de admissibilidade recursal.

No entanto, como a dependência de lei regulamentada consta do § 2º acrescentado ao art. 105 da CF, o art. 2º da EC 125 deve ser interpretado como se referindo à entrada em vigor da lei que regulamentar o aludido dispositivo16.

É que toda norma legal sujeita a regulamentação só entra efetivamente em vigor quando sobrevém o devido regulamento, como restou antes explicitado no item anterior.

Quanto ao marco temporal de vigência, assinalado pelo art. 3º da EC 125, LEONARDO CARNEIRO DA CUNHA entende que a exigência de aplicar o requisito da relevância somente aos recursos interpostos “após a entrada em vigor” da referida Emenda, “ofende a garantia constitucional do direito adquirido”. Por isso, conclui que “a exigência deve somente passar a ser feita para os casos nos quais as decisões recorríveis forem proferidas depois do início de vigência da lei que venha a regulamentar a relevância da questão federal”17.

É regra sempre acatada em direito intertemporal que a parte adquire o direito de recorrer no momento em que a decisão é publicada, de modo que a lei aplicável ao recurso interponível é, de fato, a do tempo da decisão e não a do tempo da interposição do recurso18. Trata-se, no entanto, de regra pertinente aos conflitos típicos verificáveis entre leis processuais, inadequada, portanto, à solução dos problemas que se passam no campo constitucional.

Acontece que a inovação do regime do recurso especial ora analisada ocorreu não por meio de simples lei processual, mas através de norma constitucional e, como é de larga sabença, não há direito adquirido contra disposições constitucionais. Se, pois, é uma norma constitucional que determina o regime novo do recurso especial aplicável a todo aquele interposto após a entrada em vigor da inovação da ordem jurídica constitucional, lugar não há para se exigir respeito ao direito adquirido ao processamento do recurso sob o regime da lei do tempo da decisão judicial. É a Constituição que está impondo o novo regime, e contra a Constituição, repita-se, não cabe falar em direito adquirido.

12 – Algumas conclusões

  1. A Emenda Constitucional nº 125, de 14.07.2022, alterou o art. 105 da Constituição para adotar, no procedimento do recurso especial, um filtro de admissibilidade equivalente ao já vigorante em relação ao recurso extraordinário (CF, art. 102, § 3º).
  2. A relevância da questão federal que passou a ser exigida para a admissão do recurso especial (CF, art. 205, § 2º) não tem exatamente as mesmas dimensões da repercussão geral da questão constitucional reclamada pelo recurso extraordinário.
  3. Enquanto a repercussão geral do recurso extraordinário pressupõe a comprovação de reflexos da questão a solucionar que ultrapassem os interesses subjetivos das partes (CPC, art. 1.035, § 1º), a relevância do recurso especial é presumida pela própria Emenda Constitucional 125, entre várias hipóteses, em caso de ações de elevado valor da causa (CF, art. 105, § 3º, III), situação que evidentemente não põe em jogo nenhuma questão que ultrapasse os interesses subjetivos disputados no processo.
  4. A demonstração da relevância do recurso especial foi exigida pelo novo § 2º do art. 105 da Constituição, para ser formalizada “nos termos da Lei”, evidenciando tratar-se de norma, cuja eficácia restou pendente de regulamentação. Aliás, nessa matéria, o teor do dispositivo que instituiu a relevância do recurso especial é praticamente igual ao que impôs o requisito da repercussão geral para a admissão do recurso extraordinário (CF, art. 102, § 3º). E a entrada em vigor desse requisito do recurso extraordinário somente ocorreu após editada a necessária regulamentação (Lei nº 11.418/2006). Não há razão alguma para que o mesmo não aconteça com a inovação ora introduzida no regime do recurso especial19.         

O requisito da relevância aplica-se, por expressa disposição constitucional, aos recursos especiais ajuizados após a entrada em vigor da Emenda 125 (art. 3º)20. Afastou-se a regra normal de direito intertemporal segundo a qual o recurso e seu processamento regem-se pela lei do tempo da decisão, e não do tempo da interposição do apelo. Não se pode, outrossim, pensar em ofensa ao direito adquirido ao recurso nos moldes da lei anterior, porque não há direito adquirido contra regra constitucional.

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1 “A partir da promulgação da referida emenda, sem previsão de vacatio legis, a nova regra impõe ao recorrente o ônus de demonstrar a relevância da questão ou questões federais infraconstitucionais deduzidas como fundamento do recurso especial. O conhecimento desse meio de impugnação fica agora condicionado, além do preenchimento dos outros requisitos de admissibilidade, a tal demonstração, que, na prática, deve ser deduzida num capítulo preambular das razões recursais, no qual o recorrente apontará a transcendência da matéria” (CRUZ E TUCCI, José Rogério. Relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do REsp. Relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do REsp.)

2 Arruda Alvim, entre outros, muitos anos antes da EC 45, já defendia, com sérios argumentos, a necessidade de restabelecer um filtro, como outrora existiu no regime do recurso extraordinário, a fim de que as Cortes Superiores pudessem cumprir efetivamente a sua função, lembrando que tal solução já era adotada no direito comparado (ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel. O recurso especial na Constituição Federal de 1988 e suas origens. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Aspectos polêmicos e atuais do recurso especial e do recurso extraordinário. São Paulo: Ed. RT, 1997, p. 13-47; ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel. A alta função jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do recurso especial e a relevância das questões. In: Revista de Processo, v. 96, p. 37-44. São Paulo, out.-dez./1999). E mais recentemente: ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel. Manual de direito processual civil: teoria geral do processo, processo de conhecimento, recurso e precedentes. São Paulo: Ed. RT, 2021, p. 1.600 – 1.605.

3 “Assim como ocorre com o recurso extraordinário, no qual a parte interessada deve apontar a "repercussão geral" do objeto da impugnação, o precípuo objetivo da reforma agora aprovada é o de estabelecer mais um "filtro" visando à diminuição de recursos endereçados ao Superior Tribunal de Justiça” (CRUZ E TUCCI, José Rogério. Relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do REsp., cit.).

4 SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. A EC 125 e a relevância da questão de direito no recurso especial. In:https://www.migalhas.com.br/depeso/370477/a-ec-125-e-a-relevancia-da-questao-de-direito-no-recurso-especial. Acesso em 09/08/2022.

5 ALVIM, Eduardo Arruda; CUNHA, Igor Martins da. A relevância da questão federal no recurso especial. https://www.migalhas.com.br/depeso/370187/a-relevancia-da-questao-federal-no-recurso-especial. Acesso em 09/08/2022.

6 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do REsp. Relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do REsp. In: SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello, op.cit.

7 MOREIRA, Fernando Mil Homens. In: Questionamentos e perplexidades sobre a Emenda Constitucional 125/22. Acesso em 09/08/2022.

8 CARVALHO, Fabiano. Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo: Ed. Saraiva, 2022, v. XIX, p. 37.

9 MOREIRA, Fernando Mil Homens. Op. cit., loc. cit. Acrescenta o autor: “Portanto, nos termos do inciso  V do § 3º do art. 105 da Constituição a divergência com qualquer acórdão do próprio STJ deve ensejar a automática relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no respectivo recurso especial, porque ‘tal divergência é, a rigor, a que mais revela a necessidade de conhecimento do especial, pois mostra que o STJ deve intervir no caso concreto para fazer prevalecer o seu já firmado entendimento sobre certo assunto’” (MOREIRA, op. cit., loc. cit.; NOGUEIRA, Luiz Fernando Valladão. Recurso especial. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 52).

10 Vale dizer: nas Turmas, a rejeição de 2/3 corresponde aos votos convergentes de 4 membros; nas Seções, a sete votos; e na Corte Especial, a dez votos (MOREIRA, op. cit., loc. cit.).

11 ALVIM, Eduardo Arruda; CUNHA, Igor Martins da. A relevância da questão federal no recurso especial, cit.

12 “Enquanto não se exaure a vacatio legis da lei nova, esta já existe, ingressou no mundo jurídico, mas ainda não adquiriu eficácia, espera o momento para produzir efeitos” (VELOSO, Zeno. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil – arts. 1º a 6º, 2ª ed., Belém, UNAMA, 2006, p. 20). Pode-se afirmar que a norma ainda não está em vigor, ou seja, ainda não obriga.

13 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 12. ed. Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1959, v. I, p. 73. O entendimento de Clóvis é tradicional ao nosso direito: “Se a execução da lei depender de regulamento, a sua obrigatoriedade fica subordinada à publicação de sua regulamentação e o prazo para vigência contar-se-á a partir da publicação do regulamento, observando-se, porém, que se a lei, apenas parcialmente, depender de regulamento, somente a essa parte é aplicável a regra” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, v. I., p. 41. Em igual sentido: CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil brasileiro interpretado. 8.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958, v. I, p. 34; LACERDA, Paulo. Manual do direito civil brasileiro: introdução. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos- Editor, 1929, v. I, p. 77).

14 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 49.

15 “Em singela conclusão, mesmo admitindo que há contradição entre os dispositivos apontados, o que pode gerar divergência interpretativa, penso que a alteração tem eficácia imediata nas cinco hipóteses previstas na Emenda Constitucional nº 125, sem prejuízo de outras que venham a ser disciplinadas na futura lei” (MOUTA, José Henrique. Relevância da questão federal no recurso especial: observações acerca da EC 125. In: https://www.migalhas.com.br/depeso/370139/relevancia-da-questao-federal-no-recurso-especial Acesso em 09/08/2022).

16 “Se surge uma nova previsão normativa, a criar um requisito de admissibilidade, este somente será exigido a partir das decisões proferidas após o início de sua vigência. Se, porém, a nova previsão normativa depende de regulamentação, é preciso aguardar a regulamentação. Feita a regulamentação, o novo requisito de admissibilidade poderá ser exigido dos recursos a serem interpostos das decisões proferidas depois do início de vigência da regulamentação” (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal. In: Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal). Acesso em 09/08/2022.

17 Idem, ibidem.

18 Quando da entrada em vigor do CPC/2015, o STJ teve o cuidado de orientar, em cinco enunciados normativos, a aplicação do direito intertemporal aos processos em curso, esclarecendo que “o momento que determina o cabimento e o regime do recurso é a data da publicação do ato judicial” (Cf. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 55. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, v. III, nº 865, p. 1.023).

19 “Não é possível exigir o novo requisito de admissibilidade antes de sua regulamentação. No particular, cumpre relembrar a mudança constitucional operada pela Emenda Constitucional 45, de 2004, que introduziu o requisito da repercussão geral no recurso extraordinário. O § 3º do art. 102 da Constituição prevê a repercussão geral no recurso extraordinário ‘nos termos da lei’. A repercussão geral no recurso extraordinário dependeu de regulamentação legal. De igual modo, a relevância da questão federal depende de regulamentação legal”. Exatamente como a Lei 11.418/2006, fez em relação à repercussão geral no caso do recurso extraordinário (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Op. cit., loc. cit.).

20 A entrada em vigor do novo § 2º do art. 105 da Constituição ocorrerá quando publicada a necessária regulamentação legal, tal como previsto no referido dispositivo constitucional, e como já anteriormente demonstrado.

Humberto Theodoro Júnior
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro (Uberaba/MG). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Desembargador Aposentado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

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