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Controle x Liberdade. O home office, conforme a lei 14.442/22

No teletrabalho, é dever do empregador orientar o empregado, zelando pela observância do indispensável tempo de desconexão do trabalho e dos períodos de descanso e folga semanais.

13/10/2022

A obrigatoriedade quanto a controle de horário alcança o teletrabalho prestado na residência do empregado (home office)? A questão proposta estimula uma maior reflexão sobre a essência dessa espécie de trabalho remoto.

A lei 13.467/17 regulamentou ou iniciou a regulamentação do teletrabalho, incluindo tal modelo entre as exceções à regra de fiscalização e controle da jornada de teletrabalho (redação original do inciso III, do art. 62, da CLT).

Portanto, de acordo com o referido dispositivo, o teletrabalhador, da mesma forma que o trabalhador externo e, a grosso modo, o trabalhador exercente de cargo de gestão (incisos I e II, do art. 62, CLT), não estava submetido ao controle de ponto. Ao menos, era essa a dicção literal da lei, abstraindo, aqui, as controvérsias de interpretação, que já à época existiam.

Veio a pandemia, que impediu a evolução gradual do modelo, obrigando as partes do contrato de trabalho, a improvisarem um home office emergencial, adequando o trabalho presencial à necessidade de isolamento social.

À medida em que as rotinas profissionais, dentro do possível, iam se acomodando ao estado de emergência e de força maior, que se prolongava no tempo, o home office pandêmico foi se consolidando como um modelo aparentemente vantajoso para ambos os lados, sobretudo do ponto de vista da economia, seja de custos e gastos ordinários, seja de tempo. 

No entanto, vieram à tona previsíveis contratempos, relacionados aos desgastes físicos e mentais afetos ao Covid-19: traumas decorrentes de perdas, medos, dificuldade extrema de desconexão do trabalho, desconforto, síndromes em razão da não desconexão e do estado de confinamento etc.

Inúmeros projetos de lei tramitavam no Congresso, buscando uma regulamentação mais ampla do teletrabalho, que estabelecesse, por exemplo, a definição de um modelo híbrido de trabalho, normas específicas de segurança, responsabilidade e acompanhamento da saúde física e mental do trabalhador remoto, normas referentes ao trabalho remoto extraterritorial, regras de custeio ou compensação das despesas oriundas do trabalho não presencial, entre diversos outros aspectos.

Sobreveio, todavia, a Medida Provisória 1.108/22, convertida na lei 14.442/22, que pouco avançou, não preenchendo as lacunas existentes. Ademais, a nova legislação promoveu polêmica alteração no art. 62, III, da CLT, citado anteriormente, restringindo a isenção de controle de horário, em relação ao teletrabalho, aos empregados “que prestam serviço por produção ou tarefa”.

Hoje, pelos literais termos da lei, o teletrabalho e o trabalho remoto (gênero que inclui a espécie home office), abrangem os “serviços por jornada ou por produção ou tarefa” (§1º, art. 75-B, CLT), sendo que apenas a segunda hipótese (produção ou tarefa) – cujo conceito a lei não define – permite a não fiscalização do horário.

A intenção do legislador, se foi a de coibir o excesso de trabalho e a não desconexão no trabalho remoto, não se justifica. Em termos bem objetivos, porque o controle não impede a extra jornada, talvez até a instigue, ante o consequente recebimento de horas extras.

Não é, portanto, uma medida que atenda a propósitos de saúde e segurança do trabalho, considerando, ainda, estar embasada na experiência da pandemia, transportando, para um cenário de normalidade, suposta solução de problemas diretamente relacionados aos estados de emergência e de força maior.

A realidade atual é bem diferente. A possibilidade de convívio social oportuniza ao empregador selecionar as funções, atividades e perfis mais adequados ao teletrabalho, ao tempo em que propicia ao empregado avaliar o trabalho remoto como uma alternativa benéfica. Ou seja, ao contrário do ocorria durante a pandemia, principalmente no seu período mais crítico, há, no presente, a efetiva possibilidade de, como previsto na lei, se promover o teletrabalho, integral ou híbrido, mediante legítimo ajuste bilateral entre as partes.

Sendo assim, penso ser fundamental respeitar a essência do regime de trabalho proposto, que, no caso do teletrabalho em home office, está voltada, (i) para o resultado do trabalho, desvinculado do tempo e do cumprimento de horário, (ii) à plena autonomia do empregado na administração do seu tempo e, por conseguinte, (iii) a uma absoluta flexibilidade de horários e horas de trabalho.

O debate não passa por um exame de compatibilidade objetiva entre o home office e um sistema de controle de jornada.

No nosso estágio tecnológico, inexiste, a rigor, atividade que não possa ter o seu tempo controlado. Não por acaso, a exceção do art. 62, I, CLT, baseada nesse pragmático pressuposto – isenção de controle em face de “...atividade externa incompatível com a fixação de jornada...” - caiu definitivamente em desuso, salvo raríssimas hipóteses. O mercado já dispõe de inúmeras ferramentas digitais, que propiciam controle de horário em qualquer circunstância.

O empregado ocupante de cargo de gestão, que reúna todos os requisitos legais para tal enquadramento, está isento de controle porque, no seu âmbito de atuação, ele representa o empregador. Ele não é controlado, exerce o controle perante os seus subordinados.    

Por sua vez, a incompatibilidade do home office com controle e fixação de jornada é de ordem essencial, filosófica e até moral.

A direção dos serviços, que caracteriza a subordinação jurídica, implica, no home office, a demanda do trabalho e o controle dos resultados. A fiscalização da jornada de trabalho atenta contra a liberdade do trabalhador, enquanto profissional e ser humano.

A residência não é equiparável a um estabelecimento de trabalho assim como a relação familiar não se confunde com relações profissionais.

Uma coisa é dotar o trabalhador - que, por interesse recíproco e ajuste consensual, presta serviços por teletrabalho – de infraestrutura tecnológica e condições ergonômicas satisfatórias para o trabalho em domicílio, o que é um dever legal,  outra, bem diferente, é confundir o ambiente residencial com um posto de trabalho vinculado ao empregador, como se fosse possível determinar que, no horário contratual, determinados cômodos não seriam sala, quarto e banheiro, mas sim espaço de convivência, baia e sanitário (ou toilette). 

Essa confusão ocorria, de fato, durante a pandemia, não sendo, obviamente, um padrão aceitável em tempos de normalidade.

home office é um modelo quase abstrato de local de trabalho. O nosso ritmo biológico, em casa, mesmo em teletrabalho, não é, jamais será e não pode ser comparável com o que experimentamos no trabalho presencial. Em home office, o “relógio de ponto” está na mente do empregado e deve ser manejado, responsavelmente, segundo a sua exclusiva conveniência.

Daí não ser o home office uma panaceia, exigindo, sobretudo do empregador, uma cuidadosa avaliação de atividades e perfis em confronto com o resultado pretendido. O perfil adequado tenderá a ser valorizado.

O empregador pode, sem dúvida, conforme estipulado na lei, estabelecer regras para o exercício do trabalho, como, por exemplo, normas de conduta e de estética para a realização de reuniões virtuais, normas de segurança e até, em benefício da desconexão, estabelecer certos limites de horários à utilização dos sistemas e softwares de trabalho.

Todavia, impor uma jornada residencial fixa de trabalho, submetida a controle é, ao meu sentir, invasivo e desarmônico com a essência do home office, ferindo a liberdade do empregado e desestimulando a sua correta prática.

Se a atividade, na concepção do empregador, for genuinamente compatível com o home office, o interesse estará, naturalmente, voltado para o resultado, sem nenhuma relação com o controle de horário; se, por outro lado, o modelo estiver sendo utilizado apenas como uma medida de economia – uma mera transferência do modelo presencial para a residência do empregado -, o empregador, além de não obter o proveito qualitativo, não deverá, de todo modo, interferir na administração pessoal do empregado quanto aos seus períodos de trabalho.

Não obstante a natureza da atividade, a sua execução em home office força equilibrar trabalho e ambiente residencial/familiar. O ponto de intersecção não contempla a fixação e controle de jornada pelo empregador, o que sustento também com base numa noção filosófica de liberdade. O lar é o local onde o indivíduo não pode ser tolhido na sua liberdade moral de agir, ou seja, de agir com plena autonomia, sem a interferência de um ostensivo comando externo, no caso, o “relógio de ponto” do empregador.

Nesse sentido, mesmo sem concordar com a terminologia adotada, só consigo enxergar como razoável, para fins de aplicação da nova redação do art. 62, III, da CLT, a interpretação pela qual todo o teletrabalho em home office será, por definição lógica, uma prestação de serviço por produtividade, visando a um resultado, estando, assim, incluída na exceção ao controle de jornada. A prestação de serviços “por jornada” em teletrabalho, ficaria restrita ao trabalho executado em outros postos, fora do estabelecimento do empregador e do âmbito residencial. 

O respeito à liberdade do empregado, na sua residência, não implica, entretanto, “liberdade” absoluta do empregador para a solicitação de demandas abusivas e excessivas, como se o não controle do horário correspondesse a ter o empregado à sua disposição por todo o tempo.

Isto não ocorre com nenhuma das hipóteses excepcionais, previstas no art. 62, da CLT. Haverá, sempre, a obrigação soberana de respeito ao limite constitucional de duração do trabalho, que constitui regra de saúde, higiene e segurança do trabalho, aplicável a qualquer empregado e trabalhador, esteja ele submetido ou não a controle de horário.

No teletrabalho, sobretudo no home office, é dever do empregador orientar o empregado, zelando pela observância do indispensável tempo de desconexão do trabalho e dos períodos de descanso e folga semanais - aspectos esses que devem ser apontados nos instrumentos contratuais e podem ser objeto de cláusulas de convenções e acordos coletivos de trabalho – sendo certo que tal dever é inteiramente compatível com a preservação da liberdade.

Cristóvão Macedo Soares
Sócio no Bosisio Advogados.

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