Migalhas de Peso

Advocacia, redes sociais, e a angústia da estagnação

Ansiedade e depressão são as palavras da moda. Ambas refletem a direção oposta de uma sociedade que insiste em não admitir para si mesma que está adoecida. Nas redes sociais, tudo é perfeição e felicidade.

11/10/2022

O tempo de faculdade se resume, em essência, a uma eterna preocupação com provas, trabalhos e estágios. No meio disso tudo, há uma fulgurante inquietação quanto ao futuro; sempre vívida nos pensamentos dos mais ansiosos, angustiados e comprometidos estudantes.

Eu era um acadêmico de Direito prestes a iniciar o oitavo período do curso quando escrevi sobre o valor da vida na segunda de manhã1. Naquele tempo – não muito distante – eu não passava de incertezas.

Vivi bons anos da minha graduação ouvindo vários dos meus colegas dizerem que “somente advogariam se tudo desse errado”. Até escrevi sobre isso2.

Hoje, contrariando as profanações proferidas pela maioria, exerço, com muito orgulho, a profissão de advogado.

Eu poderia, à moda de Calamandrei3 e Carnelutti4, escrever um texto de viés romantizado, como se advogar fosse sinônimo de um mar adoçado pelo sabor das rosas. Sabemos que não é por aí. Bem longe disso, por certo.

A experiência, ainda que pequena, vai mostrando que o ingresso e a consolidação neste tão competitivo mercado não dependem “apenas” do conhecimento teórico adquirido durante a formação jurídica.

É dizer, o mercado vai mostrando e ensinando que a bagagem teórica, os estudos e as atualizações constantes não são diferenciais, mas apenas o mínimo esperado de qualquer indivíduo que se considera habilitado a caminhar pelas trincheiras da advocacia.

Não se desconhece, todavia, a circunstância de que muitos “profissionais” não se dão ao trabalho de fazerem o mínimo apontado acima. Não estudam. Não se atualizam. Não se valorizam.

São as “presas” preferidas de uma leva crescente de advogado (as) que, mesmo sem muitos resultados de destaque na advocacia, resolveram “ensinar” como se advoga.

Para isso, apostam, não raramente, em estratégias agressivas de marketing; repletas de “gatilhos mentais”, os quais, como sugere a expressão, miram os desejos e anseios mais profundos de uma geração apressada de pessoas que crê, sinceramente, ter sido concebida pelo infinito vazio da existência com o único propósito de “vencer” na vida.

Como num passe de mágica, a aquisição de cursos caríssimos, sempre carregados com a promessa de que serão revelados todos os “segredos” de uma advocacia bem-sucedida, é apresentada como a solução infalível para os advogados ganharem sobrevida e esperança em um cenário tão competitivo. 

Frases de efeito como “tudo é possível, basta querer”, ou ainda, “o seu sucesso só depende de você” ganham o tom, sobretudo nas redes sociais; ambiente que, a partir das altas doses de dopamina que estimula o cérebro a produzir, permite, com enorme facilidade, a propagação do fútil, do irrelevante.

Para além disso, elas fomentam um cenário de competitividade entre as pessoas. Quase ninguém se expõe para contar o que tem dado de errado em suas vidas. As palavras da vez são “sucesso” e “positividade”.

A “negatividade”, que em Hegel se expressava em forma de “dor”, já “não existe mais”, tal como aduz o ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han5. Ela é rejeitada socialmente.

O “fracasso”, por sua vez, na linha do entendimento do autor supracitado, é atribuído, sobretudo, às escolhas individuais; seguindo à risca as tendências de um capitalismo inculpador6, e ignorando por completo os diferentes abismos sociais existentes no Brasil.

Nisso residem os “gatilhos mentais” do medo. Ou o advogado - em especial o jovem advogado - se adapta ao “novo mercado”, ou estará “fora” em poucos anos.

Como ficam os profissionais que não podem (ou não querem) pagar o preço do “sucesso”, vendido, quase sempre, em “fórmulas miraculosas”, de duvidosa cientificidade? 

A onda de “competividade” e “positividade” em comento tem feito mal às pessoas, no Direito e fora dele.

Em conversas informais com colegas e amigos, os relatos não variam muito. Há sempre uma sensação de sufocamento, de pressão; como se um nó apertasse a garganta e o coração estivesse bem perto de ser impelido para fora peito.

Ansiedade e depressão são as palavras da moda. Ambas refletem a direção oposta de uma sociedade que insiste em não admitir para si mesma que está adoecida. Nas redes sociais, tudo é perfeição e felicidade.

E assim, a sociedade de desempenho e produção, também muito bem desenhada por Byung-Chul Han7, vai cobrando o seu funesto preço a cada novo dia. 

Marcou-me, especialmente, uma conversa que tive há poucos meses com uma colega de turma da faculdade. Ela, que se encontra na fase inicial de sua vida profissional, disse se sentir angustiada com o fato de que sua irmã, também advogada, já estar “decolando”, ou seja, ocupando posição de destaque no mercado.

Ela não deseja o mal da irmã. Pelo contrário. É que a sociedade de desempenho incute no subconsciente das pessoas um sentimento de estagnação quando se deparam com o “sucesso” dos outros.

É como se o ato de ver o outro “vencer” significasse, paralelamente, que o observador está “ficando para trás”. Novamente, é o espírito de competividade marcando presença. As redes sociais, em especial o Instagram e o Facebook, sobrevivem porque alimentam uma sensação de inveja recíproca entre as pessoas.

Isso ignora por completo o fato de que cada ser humano possui trajetórias muito particulares.

Por exemplo, no caso das duas irmãs indicadas anteriormente, enquanto a minha colega acabou de se formar e de se inscrever nos quadros da OAB, a outra já está há mais tempo no mercado.

Nem mesmo os laços de consanguinidade apaga a circunstância que a trajetória de vida de cada ser humano é deveras singular. Qualquer tentativa de comparação é injusta.  

Trazendo um pouco do assunto para a minha própria vivência, revelei “Em o valor da vida na segunda de manhã”, que, enquanto acadêmico de Direito, receava a possibilidade de não “aparecer” nenhum cliente em meus primeiros meses como advogado.

Desde que comecei, isso, felizmente, nunca aconteceu.

Trabalhei e trabalho duro produzindo conteúdo jurídico para a internet, inicialmente na forma de textos e, recentemente, também por meio de vídeos; sempre com conteúdos críticos e informativos.

Parcerias sólidas, capazes de gerar boas indicações, também têm sido muito importantes. São as melhores alternativas para quem não teve a sorte de contar com “apadrinhamentos” - nem pode pagar pelo “trabalho” de “gurus” que cobram caríssimo para “ensinarem” o óbvio.

Do pouco que vivi até aqui, deixo conselhos. De jovem advogado para jovens advogados: coloquem um freio na pressa. Não se deixem seduzir por “fórmulas mágicas”. Não comparem suas trajetórias com as de ninguém. Estudem como se fossem os seus próprios direitos que estivessem sob seus cuidados. Passem o menor tempo possível mexendo no celular e navegando nas redes sociais. Os conhecimentos teóricos nos ajudam a colocar ordem na realidade8. O único problema por trás dos erros é não aprender com eles. A melhor escola da vida é a experiência.

O resto há que se deixar nas mãos da autocrítica, do aperfeiçoamento constante, das boas relações e, acima, de tudo, do tempo; o melhor de todos os remédios.

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1 Disponível em: https://emidiovictor.jusbrasil.com.br/artigos/898495883/o-valor-da-vida-na-segunda-de-manha Acesso em 09 de out. de 2022. 

2 Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/se-nada-der-certo-vou-advogar/ Acesso em 09 de out. de 2022. 

3 In: CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados / Piero Calamandrei ; Tradução Ivo de Paula. – São Paulo : Editora Pilares, 2013. 

4 In: CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal / Francesco Carnelutti – 3ª Ed – 5ª Tiragem, CL EDIJUR – Leme/SP – Edição 2019. 

5 HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros / Byung-Chul Han ; tradução de Enio Paulo Giachini. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2017, p. 31. 

6 Ibidem, p. 25.

7 HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço / Byung-Chul Han ; tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada – Petrópolis, RJ : Vozes, 2017, p. 23.

8 Cf., ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos / Alexandre Morais da Rosa. __ 6.ed. rev., atual. e ampl. Florianópolis: Emais, 2020, p. 315.  

Victor Emídio
Advogado Criminalista, professor e pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal. Criador de conteúdos jurídicos para a internet.

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