O ano é 2021. João e Maria são sócios de uma sociedade limitada, não enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte. João é detentor de 49% do capital social e Maria é detentora de 51% do capital.
Embora Maria seja a sócia majoritária, é certo que ela dependia do voto de João para certas deliberações, pois, nas sociedades limitadas, o Código Civil (“CC”) estabelecia a necessidade de aprovação de sócios representativos de 75% do capital para aprovação das deliberações que tenham por objeto a modificação do contrato social, a incorporação, a fusão e a dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação (art. 1.076, I, do CC).
Assim, Maria não conseguiria, sem o voto de João, aumentar o capital social, trocar a regra contratual de distribuição de lucros ou modificar qualquer outra regra do contrato social. Ocorre que a Lei nº 14.451, de 21 de setembro de 2022, revogou a regra do Código Civil que estabelecia a regra dos 75% do capital social para essas matérias, estabelecendo que elas passam a depender dos votos correspondentes a mais da metade do capital social.
E a pergunta que se faz agora é a seguinte: com a entrada em vigor dessa alteração, Maria conseguirá aumentar o capital social, independentemente do voto de João? O fato de a sociedade já existir antes da modificação do Código Civil gerou alguma espécie de direito adquirido para João quanto aos quóruns de deliberação?
Com efeito, o art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (“LINDB”) estabelece o princípio geral da aplicação imediata das leis, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Assim, a princípio, está afastada retroatividade da lei, ou seja, a lei não incide sobre fatos ocorridos sob o império da lei anterior. Também fica afastada, a princípio, a ultratividade da lei, ou seja, a lei também não se aplica a fatos posteriores ao início da sua vigência. Trata-se de uma decorrência da segurança jurídica, pois, como leciona Pontes de Miranda, “a irretroatividade defende o povo; a retroatividade expõe-no à prepotência"1.
Todavia, em alguns casos, um fato pode se concretizar sob a vigência de uma determinada norma (p.e., a constituição de uma sociedade), mas produzir efeitos sob a vigência de uma outra norma jurídica. Tais situações impedem a aplicação pura e simples do princípio da eficácia imediata da lei, gerando o chamado conflito de leis no tempo. Nesses casos, há que se socorrer do chamado direito intertemporal que, de acordo Carlos Maximiliano, “fixa o alcance do império de duas normas que se seguem reciprocamente”2.
Sem sombra de dúvida, os requisitos de criação da sociedade não podem ser alterados pela lei nova, pois se enquadram na definição de ato jurídico perfeito. Gabba afirma que “as formas exteriores do contrato de sociedade, que definem sua validade, devem ser disciplinadas pela lei, sob cujo império o contrato é concluído”3. Diferente não é a lição de Carlos Maximiliano que afirma que “as sociedades regem-se conforme os preceitos imperantes quando foram constituídas, inclusive a que pelo Direito atual não teria personalidade jurídica”4. Analisando os contratos como um todo, Serpa Lopes defende a mesma linha de interpretação ao afirmar que “na formação dos contratos, como já se disse, prevalece a lei do dia da sua formação”5.
Contudo, a questão não trata da celebração do contrato de sociedade, ato jurídico aperfeiçoado no tempo, mas das deliberações dos sócios para expressar a vontade da sociedade que já se encontra constituída. Com efeito, as deliberações de uma sociedade concluídas no regime anterior não podem ser afetadas pela lei nova, uma vez que são fatos consumados. Porém, como ficam as deliberações tomadas na égide da lei nova, quando o contrato social apenas se remete ao quórum legal?
No que diz respeito ao novo regime legal, as novas deliberações a serem tomadas não são atos jurídicos perfeitos, à medida em que não foram concluídas sob a égide da lei antiga. Diz-se que os atos jurídicos perfeitos são aqueles consumados, isto é, aqueles que reúnem os elementos essenciais para produzir efeitos sob a égide de determinada lei. Consumado o ato sob a égide de determinada lei, ele é um ato jurídico perfeito protegido constitucionalmente de qualquer ingerência de leis novas.
Também não há que se cogitar de direito adquirido na espécie, porquanto a definição dos quóruns é uma situação abstrata e geral, que não é apta a gerar direitos adquiridos. “A situação legal ou objetiva é que decorre diretamente da lei e rege indeterminadamente várias situações equivalentes”6, em outras palavras, as situações objetivas são aquelas “cujo conteúdo, segundo o citado mestre é necessariamente, o mesmo para todos os indivíduos que delas são titulares, pois tal conteúdo é determinado por disposição geral”7.
A título exemplificativo, podemos mencionar os direitos a reajustes salariais nos termos de determinada norma jurídica, ou a situação dos proprietários ou dos cônjuges. Também entram aqui os direitos dos sócios. Todos aqueles que são sócios da sociedade se submetem as mesmas situações, logo, elas são situações objetivas.
Nesses casos, quando o contrato social é silente com relação à regra ser aplicada, não há que se falar em direito adquirido devendo aplicar-se imediatamente a nova lei que venha a surgir. “A situação legal ou objetiva permanece enquanto não modificada pela lei, ao passo que a subjetiva individual vige pelo prazo temporário disposto pelas partes. Consequentemente, as situações legais ou objetivas podem ser modificadas pela lei, sem que ocorra retroatividade”8. Vale dizer, ainda que, “[do contrário o legislador seria praticamente impotente, já que toda alteração de leis, ou edição de novas, atinge, do instante da publicação em diante, direitos adquiridos. Destarte, não há direito adquirido à permanência de um estatuto legal.”9. Assim sendo, para as deliberações tomadas na égide de uma lei nova, já devem valer os novos quóruns alterados.
Situação diferente ocorre quando há cláusula expressa no contrato social estabelecendo um quórum específico para as deliberações sociais. É possível, por exemplo, que o contrato social da sociedade de Maria e Pedro, em vez de apenas fazer remissão ao texto legal, o tenha copiado e, assim, estabelecido expressamente o quórum de 75% para as modificações do contrato social. Nesse caso, pouco importa o novo texto legal, pois o quórum foi estabelecido em regra contratual que, por sua vez, decorreu da vontade das partes que deve ser obedecida. Como ato de vontade que é, “qualquer contrato devia ser uma operação absolutamente livre para os contratantes interessados”10, vale dizer, deve haver uma liberdade dos sócios na redação dos contratos sociais.
A autonomia privada representa, portanto, a liberdade que as partes têm de contratar, escolhendo os melhores elementos para o contrato e fixando livremente o conteúdo das cláusulas, desde que não sejam contrárias à ordem pública. É facultado aos sócios, dentro da autonomia da vontade que lhes toca, inserir no contrato social quóruns superiores, prevalecendo as regras do contrato social, elaboradas pelos próprios sócios. É o princípio da autonomia privada no direito societário, que “representa o poder outorgado ao indivíduo de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas, nos limites postos pela lei”11.
Por derradeiro, por se tratar de regra contratual estabelecida antes da entrada em vigor do novo texto legal, essas regras estão estabelecidas em ato jurídico aperfeiçoado sob a égide da lei anterior e, portanto, não podem ser afetadas por lei nova, como já explicado acima.
Desse modo, se o contrato social da sociedade de Maria e José não tiver nenhuma cláusula expressa quanto ao quórum de aprovação de suas deliberações sociais e apenas fizer remissão genérica ao texto legal, alterada a Lei, os quóruns também serão alterados. Por outro lado, se houver quórum definido expressamente em regra contratual, a Lei nova não o afetará, pois se trata de ato jurídico perfeito.
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1 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Rio de Janeiro: Forense, 1987, v. 5, p. 20.
2 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou Teoria da retroatividade das leis. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1946, p. 7.
3 GABBA, C. F. Teoria della retroativitá delle leggi. 3ª ed. Torino: UTET, 1898, v. 4, p. 424, tradução livre de “Le forme esteriori del contratto di societá, che decidono della validitá del medesimo, devono del pari essere desunte dalla legge sotto il cui impero il contrato venne posto in essere”.
4 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou Teoria da retroatividade das leis. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1946, p. 234.
5 LOPES, M. M. Serpa. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, v. 1, p. 368.
6 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1969, v. 1, p. 283
7 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ato Administrativo e Direitos dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 106
8 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1969, v. 1, p. 284.
9 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 25ª edição – São Paulo: Saraiva, 1999, p.297.
10 ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p. 32.