Migalhas de Peso

Contrato de dominação e submissão sexual e outros tipos contratuais no direito de família

Num ambiente de intensa judicialização, com risco exacerbado de ser demandando, com a evolução das relações sociais, eis ai um novo nicho de contratação.

3/10/2022

A sociedade está se tornando por demais complexa e normatizada, o Estado se agiganta e começa regular, de modo intenso, a conduta individual, em que se chegará ao ponto de que uma pessoa, para ir à balada, precisará ir com um advogado e ter que contar com o concurso de um tabelião, como costumo apontar em aulas, para descontrair alunos.

O fato é que a regulação da liberdade individual está se espraiando por novas searas, criando intrincados modos e práxis sociais, que tornam o ato de namorar, uma situação propensa a gerar complexos desdobramentos a luz do direito.

A Constituição Federal implicou num marco civilizatório que revelou que muito das práxis do velho século deveriam ser superadas, em evidente necessidade e medida. Isso, aliás, se reflete no modo como a Carta Política veio a ser interpretada pela jurisprudência das Cortes Superiores (embora a missão de interprete da Constituição seja vocação do STF, por vezes, o STJ, em seus julgamentos, para reafirmar o juízo de preponderância e vigência, ou não, de certa norma legal, tece considerações sobre temas insertos na Carta Política).

Antes de mais nada, impende ponderar no sentido de que o país, em meados de 1988, tempo de promulgação da Constituição Federal, convivia com diplomas legislativos muito longevos – no âmbito do direito privado observava-se o monumento do individualismo que seria o Código Civil de 1916, as obrigações não se regiam por um único diploma, eis que também reguladas pelo Código Comercial de 1850, não havia nem ECA nem CDC.

Somente cerca de menos de vinte anos antes da Constituição, as mulheres haviam conquistado o direito de dispor de seus próprios salários se trabalhassem fora pelo Estatuto da Mulher Casada (sim, a mulher maior, casava-se e tornava-se praticamente incapaz, não ficando nem mesmo com a gestão do seu salário até meados de 1960).

Em síntese, convivíamos, em final de século XX com legislações que datavam do período do “Oitocentismo” (século XIX ou período de 1.800 a 1899). Não se esqueça, o Código Comercial que regia a vida das sociedades então ditas comerciais (a partir do regime dos Atos de Comércio do regime imperial) e com um Código Civil que incorporava valores do patrimonialismo exacerbado e liberdade sem limites dos tempos da Revolução Francesa (não se esqueça que o Código Civil de Bevilácqua – 1.916 abeberou-se nas fontes do Code Napoleon – Código Civil francês ou Código Napoleônico de 1804 que se inspirava nos ideais da Revolução Francesa ou o livro burguês – o BGB – Código Civil alemão de 1.896).

Tal sistema legal fazia com o que o país se regesse por leis que cultuavam valores com cem, duzentos anos de atraso. Isso gerava situações sociais insólitas (no âmbito do direito de família, para se ter um exemplo, o marido poderia anular um casamento se constatasse que a mulher não seria virgem ao tempo das núpcias, no prazo de dez dias, não havia previsão de união estável e se a mulher fosse considerada culpada pelo fim de um casamento perderia quase tudo, de pensão a guarda e visita de filhos, estes poderiam ser tratados de modo diferente pelo pai, grande e poderoso gestor da família tradicional, heterossexual – o gestor do pátrio poder. Tudo isso foi impactado pelo implemento de uma nova ordem constitucional, em 1988.

Superada essa discussão em torno do modo como se tem descortinado a interpretação constitucional, em que se aplicam prelados de uma certa operatividade na proteção da figura da mulher (e o conceito jurídico aqui envolvido transcende o biológico – eis que se tem que buscar a essência do gênero e não mais do sexo), de se analisar como isso interferirá no direito de intimidade das partes, em torno do que se faz entre quatro paredes.

Ora, num juízo a priori, o que partes maiores e capazes fazem de suas vidas sexuais, de modo consentido, não deveria interessar ao Estado, e, em tese, deveria ser inconstitucional que o establishiment sequer cogitasse de intervenções neste sentido.

No entanto, o CNJ veda cartórios extrajudiciais de entabularem escrituras em torno de uniões poliafetivas, até que a lei venha a disciplinar o tema, por exemplo. Em tese o Estado não deveria proibir pessoas de se unirem afetivamente, em núcleo de três ou mais pessoas (eu, particularmente, não gostaria de viver assim, mas acho que quem gosta deve ter sua opção respeitada).

Tudo isso se interconecta com o tema mencionado no título deste artigo, eis que se tem inúmeras pessoas que praticam o fetichismo, na vertente do sadomasoquismo, o que permeia o imaginário da cultura pop (ubi societas ibi jus) como se esteve a partir de livros e filmes da franquia “cinquenta tons de cinza”.

Ora, como sabido, a prática envolve dor ou sofrimento (mas se mesclaria com o prazer desejado pelo praticante), em medidas variáveis pela vontade dos mesmos.

Mas se houver um elemento feminino (como visto a definição do que seja mulher é algo que se tornou complexo), na posição de experimentar dor (em qualquer medida, ainda que consentida), surgirá o risco de judicialização por eventual conflito com a Lei Maria da Penha, que veda qualquer situação que implique em violência física, emocional, psíquica da mulher nesta relação socioafetiva.

Ai já se tem uma primeira dificuldade, em que medida se poderia relacionar os praticantes como passíveis de serem atingidos por uma norma desta magnitude (a partir de quantos encontros, se poderia entender que haveria relação familiar, ou início de vínculo jurídico de afetividade para atrair a incidência da Lei).

Não há exagero por parte deste articulista. Como se tem por notícia extraída do site do TJCE: “O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a Lei Maria da Penha pode ser usada para processar agressores acusados de praticar atos de violência contra as suas namoradas. Segundo o STJ, a lei não vale apenas para os casais que vivem juntos, podendo ser aplicadas às relações de namoro também. No caso analisado pelo tribunal, a ministra do STJ Laurita Vaz afirmou que para ser usada a Lei Maria da Penha é necessário que haja um nexo de causa entre o ato supostamente criminoso e a relação de intimidade entre o agressor e a vítima.”

Muitos outros Tribunais do país seguem essa orientação, podendo se apontar alguns exemplos:

TJMG _ Apelação Criminal APR 10461090590062001 Ouro Preto (TJ-MG) Data de publicação: 7/11/11 APELAÇÃO CRIMINAL - LESÕES CORPORAIS - LEI MARIA DA PENHA - POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO NOS CASOS DE NAMORO - ACUSADO MENOR DE VINTE E UM ANOS A ÉPOCA DOS FATOS - PRAZO PRESCRICIONAL REDUZIDO PELA METADE - PRESCRIÇÃO RECONHECIDA - EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. I - E possível aplicar a Lei Maria da Penha nos casos de violência de gênero ocorrida em relação de namoro. II - Determina o art. 115 do Código Penal que são reduzidos pela metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos. III - Deve ser declarada a prescrição retroativa da pretensão punitiva se, entre a data do recebimento da denúncia e da sentença condenatória recorrível, transcorreu o prazo prescricional.

TJ-SP - Inteiro Teor. Apelação: APL 30055625120138260270 SP 3005562-51.2013.8.26.0270 Data de publicação: 27/10/15 Diante disso, in casu, não há possibilidade de trancamento prematuro da ação penal por falta de justa causa, incidindo, na espécie, o teor do Enunciado 83 da Súmula/STJ. 4....Relação de namoro. Decisão da 3ª Seção do STJ. Afeto e convivência independente de coabitação. Caracterização de âmbito doméstico e familiar. Lei 11.340/06. Aplicação. ... 1....Aplicação. 1. A lei 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, em seu art. 5.º.

TJ-PR - Habeas Corpus HC 16916193 PR 1691619-3 (Acórdão) (TJ-PR) Data de publicação: 10/7/17 HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA . AMEAÇA SUPOSTAMENTE PRATICADA CONTRA EX-NAMORADA.SUSCITADA INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER ANTE A AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO DE GÊNERO, SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE DA VÍTIMA, COABITAÇÃO OU RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO. AFASTAMENTO. NAMORO QUE CONFIGURA EXISTÊNCIA DE PRÉVIO ENLACE AFETIVO ENTRE AS PARTES, SENDO DESNECESSÁRIA A COABITAÇÃO (ART. 5º , INC. III , LEI MARIA DA PENHA ).PACIENTE QUE TERIA AMEAÇADO A NOTICIANTE DE MORTE PORQUE ELA IRIA LEVAR A FILHA COMUM DO EX- CASAL AO MÉDICO, NO DIA DO EXERCÍCIO DE SEU DIREITO DE VISITAÇÃO. FATOS QUE JUSTIFICAM A PROTEÇÃO ESPECIAL OUTORGADA PEL LEI 11.340/06. ORDEM DENEGADA. HC - 1.691.619-3 (TJPR - 1ª C. Criminal - HCC - 1691619-3 - Curitiba - Rel.: Desembargador Macedo Pacheco - Unânime - J. 29/6/17)

E surge a primeira dificuldade. O que seria namoro (sabemos que se num relacionamento não houver intenção de constituir família, não se forma união estável, podendo haver namoro ou namoro qualificado – este último mero namoro em que as partes pretendem morar juntas sem quererem constituir família).

Nos idos de 1970, meras “ficações” não era praxe, namoros evoluíam para noivados e depois para casamentos – no ambiente constitucional em que não mais se prestigia o formalismo de uma união eis que basta a formação do núcleo de afetividade, as coisas evoluem de outro modo.

Há dificuldade extrema em se separar um namoro, que atrairia o foco para a incidência da Lei Maria da Penha, de uma situação em que o casal se encontra, digamos, num segundo encontro ou terceiro encontro, e se houver desavenças em torno do que foi ou não permitido, e uma vez que a violação sexual se tipifica sem que sequer haja necessidade daquilo que Nelson Hungria apontava como sendo a intromissio pênis ad vaginam, as coisas ficam nebulosas.

Mesmo que não aplique a Lei Maria da Penha, a Lei de Contravenções Penais (não revogada, pasme-se) e o Código Penal, já poderiam ser indicados como elementos aptos a gerarem a sua incidência em práticas como esta. E se houver ilícito penal, pelo óbvio que já surgiria a possibilidade de uma demanda indenizatória, se houver, por exemplo, um vínculo de subordinação hierárquica (por exemplo, médico e enfermeira de um mesmo hospital, professor e aluna etc), isso poderia vir a ser analisado como um ato de assédio, comprometendo o emprego do praticante, sujeitando-o a responder por procedimentos administrativos etc.

Pelo óbvio que, num casal adepto, com longa convivência consentida, com atos moderados, muito provavelmente não haverá possibilidade de uma judicialização por conta disso, mas o fato é que, demanda cuidado a situação, por parte dos praticantes para que não se excedam limites, e quanto a este tipo de situação, há uma tendência da jurisprudência a conferir um peso muito grande à palavra da vítima. Nesse sentido, tem decidido o Superior Tribunal de Justiça:

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. PALAVRA DA VÍTIMA. ASSUNÇÃO DE ESPECIAL IMPORTÂNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INVIABILIDADE, IN CASU. PRECEDENTES DO STJ. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO 83 DA SÚMULA/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. O recurso encontra-se fundamentado na negativa de vigência aos arts. 41 e 395, inciso III, do CPP, sob o argumento da falta de justa causa para a ação penal que investiga o crime de ameaça ocorrido no âmbito familiar, tendo em vista que a simples palavra da vítima, sem os demais meios probatórios, não configura indício suficiente de autoria e materialidade a autorizar o recebimento da ação penal. 2. No que tange aos crimes de violência doméstica e familiar, entende esta Corte que a palavra da vítima assume especial importância, pois normalmente são cometidos sem testemunhas. 3. Diante disso, in casu, não há possibilidade de trancamento prematuro da ação penal por falta de justa causa, incidindo, na espécie, o teor do Enunciado n. 83 da Súmula/STJ. 4. Agravo regimental improvido. ( AgRg no AREsp 213.796/DF, Rel. Ministro CAMPOS MARQUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PR), QUINTA TURMA, julgado em 19/2/13, DJe 22/2/13)”

No entanto, havendo comprovação no sentido de que se tinha um comportamento sadomasoquista, como elemento de absolvição, já se manifestou o TJRS:

APELAÇÃO CRIME. LESÕES CORPORAIS COM INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. ABSOLVIÇÃO DECRETADA. Considera-se a palavra da vítima na formação de um juízo condenatório quando coerente com contexto dos autos. No caso em tela, a própria vítima informa ter mantido relação sexual com o réu, na noite antecedente ao fato e no próprio dia do ocorrido. As testemunhas e a vítima confirmam, ter réu e a vítima mantido relação sexual após o fato narrado na denúncia. Situações que secundam os ditos pelo acusado. Referências, nos autos de preferências sexuais sadomasoquistas. Juízo condenatório. APELO PROVIDO. POR MAIORIA. (TJ-RS - ACR: 70054331558 RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Data de Julgamento: 3/10/13, Terceira Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 22/10/13)

Em síntese, o modo de tentar minimizar problemas e dificuldades de grande calado no direito atual, parece chegar à necessidade a depender da estabilidade ou intensidade desta prática que se entabulem contratos que tem sido nomeados como contratos de dominação sexual, estabelecendo balizas claras em torno do que tenha como consentido ou não entre as partes.

Apesar da grande resistência inicial em torno da ideia de que pudessem existir contratos sem função econômica, como ocorre em certa medida no bojo das relações familiares e de direito de família, hoje é certo que se tem admitido a possibilidade de existência desta espécie de negócio jurídico de objeto neutro (Os negócios jurídicos Neutros, são aqueles em que não há qualquer vantagem ou desvantagem econômica para qualquer uma das partes – caso, por exemplo, da gestação por substituição – ajuste formal em torno da ideia popularmente conhecida como “barriga de aluguel”).

Pelo óbvio que, não obstante esses novos ajustes revelem que a teoria dos contratos passe a ter um capítulo à parte nesse universo de contratos de objeto neutro, sem foco na ideia de circulação de riquezas ou obtenção de vantagens econômicas, seja possível, e, como um contrato comum, deve cumprir funções sociais (internas e externas) e implique em atividade regulatória relevante (seja em sede de autorregulação, admitindo um certo dirigismo contratual, inclusive).

Isso porque, como se tem que tais ajustes não envolvam diretamente as relações jurídicas patrimoniais (aqui se emprega a ideia de patrimônio empregada por Pontes de Miranda, de conjunto de relações jurídicas ativas e passivas, de um dado titular, suscetíveis de avaliação econômica e expressão monetária), inequívoco que lidem com valores existenciais – mormente permeados por intenso viés de ordem pública (normas cogentes).

Embora num contrato como este, as partes possam modular seus interesses, dispondo, por exemplo, sobre seu direito individual de realizarem determinado fetiche, há limites que são intoleráveis, no que tange, por exemplo, o comprometimento do direito à vida – o que daria a margem para um certo controle de função social externa e permitira uma certa dose de regulação estatal.

A própria Carta Política prevê que não será objeto de disposição membro, sentido ou função, de modo que abusos que, não obstante não comprometam a vida, não seriam toleráveis, como amputações, sangramentos etc.

A ideia, e para tratar desse tema, há que se ter a mente aberta, se direciona no sentido de que, o contrato impediria abusos em casos de fim de relacionamento, para que se diga que tenha havido algum tipo de violência, emocional, agressão física (leve, moderada dentro do escopo geralmente tolerável dos parceiros), mas não implica em um ato que seja insuscetível de controle (como sabido a ideia do pacta sunt servanda não é mais absoluta há muito tempo).

Há balizas a serem observadas, igualmente, e por exemplo, visando evitar riscos de demanda, no que tange à disciplina de situações de relacionamentos em que se poderia discutir algum tipo de assédio, ou, aproveitar-se isso para estabelecer alguns limites se a relação for do tipo “sugar baby, sugar daddy ou sugar mommy), caso o relacionamento, por sua vez, implique em remuneração não seria inusitado que isso fosse apontado para evitar confusões.

Esse tipo de ajuste serve para estabelecer ausência de dolo em ofender ou machucar (o que não estaria livre ou imune de conferência em caso de excessos), pode dispor sobre possibilidade de filmagens e seu trato (evitando-se e prevenindo a conhecida situação de vazamento de nudes ou de revenge porn – como visto e digo em aula, os relacionamentos estão passando a demandar assistência jurídica), podem dispor sobre confidencialidade, multas em casos de vazamento, divulgação ao durante ou após o fim de um relacionamento, etc.

Embora não sejam ainda usuais no Brasil, essas cláusulas, num juízo a priori, nada impediria que se estabeleçam regras para que casamentos ou relacionamentos possam ser entendidos como abertos, para os praticantes de swing e práticas congêneres (os chamados casamentos eudemônicos), evitando-se dissabores como atos de indenização por traição ao fim de um relacionamento.

Muitos podem sentir que esse tipo de ajuste seria invasivo ou um exagero, ou que isso seria invadir a intimidade do casal, no entanto, num ambiente de intensa judicialização, com risco exacerbado de ser demandando (temos seguramente um processo por habitante no país), com a evolução das relações sociais, eis ai um novo nicho de contratação.

Júlio César Ballerini Silva
Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

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