Em anos de campanhas eleitorais são comuns as manifestações de desconfiança a respeito de pesquisas de intenção de voto. Candidatos que pontuam menos do que esperam nas pesquisas lançam suspeição não apenas sobre a lisura dos procedimentos aplicados pelos institutos de pesquisa de opinião pública, alegando, por exemplo, que a pontuação não espelha a impressão de apoio massivo que recebem em comícios públicos ou em redes sociais, como também sobre o próprio resultado oficial das eleições. De fato, as pesquisas muitas vezes parecem subestimar potenciais de voto e as alegadas margens de erro de apenas 2 pontos para mais ou para menos, após a divulgação dos resultados das eleições, se mostram mais larga1. Pois bem, diante desse cenário de forte desconfiança em resultados de pesquisas de intenções de votos, bem como em apurações oficiais de eleições, interessa-nos neste breve artigo fornecer argumentos fortes para uma defesa da autenticidade e exatidão da apuração e totalização de votos pela Justiça Eleitoral no Brasil.
Neste mister, não pretendo defender apenas a confiabilidade das urnas eletrônicas, ou do sistema eletrônico de votação, apuração e totalização dos votos. A votação eletrônica constitui apenas uma das etapas de um minucioso macroprocesso de preparação e execução do processo de certificação da vontade popular. Este macroprocesso é viabilizado tanto pela função administrativa atípica de um ramo especializado do Poder Judiciário, no exercício de um serviço público garantidor de um direito fundamental de primeira geração, de forma ininterrupta, a Justiça Eleitoral, que conta atualmente com 2.637 juízes eleitorais, 20.822 servidores efetivos, 27 tribunais regionais e 1 tribunal superior, quanto pela função judicante. Este macroprocesso pode ser dividido em 5 processos distinto:
- a formação da lista de eleitores;
- o controle da isonomia da disputa eleitoral;
- o processo judicial eleitoral
- o sistema eletrônico de votação e
- a auditoria das contas de campanha eleitoral.
A Justiça Eleitoral administra um Cadastro Eleitoral de Eleitores permanente. O alistamento de novos eleitores, a transferência de domicílio eleitoral e a revisão de dados biográficos passa pelo escrutínio nos Cartórios Eleitorais e Centrais de Atendimento de Eleitores relativamente rigoroso: qualquer alteração na lista de eleitores só pode ser feita através do peticionamento pessoal do eleitor presencialmente ou através da internet, pelo sistema Título Net. Trata-se de ato personalíssimo. O novo eleitor só é aceito ao apresentar documento oficial com foto, comprovação de residência, e certificado de alistamento militar, no caso de homens maiores de 18 anos. Além disto, são coletados os seus dados biométricos: fotografia, digitais de todos os dedos, e assinatura eletrônica. Os mesmos documentos e a coleta biométrica são exigidos para procedimentos de transferência de domicílio eleitoral ou de local de votação dentro de uma mesma zona ou para alteração de nome, endereço, etc. Após o requerimento, é feito o processamento eletrônico do pedido que impede mais de um alistamento para um mesmo eleitor, por exemplo. Possíveis irregularidades em transferências de eleitores de um município para outro, muito comuns em cidades pequenas, interessando mais às eleições municipais, podem levar aos procedimentos de correição ou revisão do eleitoral: no primeiro, um percentual de mais ou menos 5% dos eleitores é investigado para se saber se possui mesmo domicílio na localidade indicada por ele. Se a correição detectar elevado número de transferências irregulares, é determinada uma revisão do eleitorado em que todos os eleitores de determinado município são convocados para comprovar sua identidade e residência. Além destes procedimentos, o Cadastro Eleitoral passa por permanente manutenção para eliminação dos títulos de eleitor de cidadãos falecidos (são enviados pelos Cartórios de Registro Civil listas de óbitos mensais) e para suspensão de direitos políticos de eleitores condenados criminalmente com sentença transitada em julgado, condenados por improbidade administrativa e outros casos. Todo esse processo de administração da lista de eleitores é regulado por uma minuciosa resolução do TSE de aplicação nacional: a Res. TSE 23.659/21. Além disto, é crime o alistamento eleitoral fraudulento, conforme o art. 289 do Código Eleitoral.
O que chamo de “controle da isonomia” da disputa eleitoral é um processo com maior número de procedimentos específicos que visam garantir uma relativa “paridade de armas” entre os concorrentes. Toda a disciplina referente às propagandas eleitorais tem, em parte, este propósito. Proíbe-se a realização de showmícios porque propiciariam a superexposição de determinado candidato em detrimento de outros, com a ajuda de celebridades. Proíbe-se a utilização de bens públicos para realização de atos de campanha, como as próprias sedes do Poder Executivo e Legislativo, para que candidatos já detentores de mandatos eletivos levem vantagem. Proíbe-se a utilização de outdoors, que favoreceria as campanhas dos mais poderosos economicamente dando-lhes uma visibilidade maior. Estas e outras formas de propagandas irregulares são sujeitas ao poder de polícia exercido pela Justiça Eleitoral, que ter como consequência, no caso de desobediência à ordem de retirada ou regularização, a aplicação de multa, após um processo judicial que garante a ampla defesa e o contraditório.
O controle da concorrência vai mais além. Com a Emenda Constitucional 16, de 1997, foi necessário que o legislador ordinário criasse, também no ano de 1997, um rol de atos vedados aos agentes públicos em anos eleitorais, listados entre o art. 73 e o art. 78 da lei das Eleições (lei 9.504/97). Dentre estes atos, está a proibição de uso de bens recursos públicos para as campanhas eleitorais ou transferência de recursos da União, Estados e Municípios aos Municípios de forma excepcional. Estas condutas podem configurar abuso de poder de autoridade que, em uma ação de investigação judicial eleitoral, de impugnação de mandato eletivo, ou de recurso contra a diplomação, podem levar à cassação do registro de candidatura, do diploma ou do mandato, através do procedimento judicial previsto no art. 22 da lei Complementar 64/90. A lei Complementar 64 também é instrumento legal para o controle mínimo da igualdade na concorrência por cargos eletivos no que tange ao abuso de poder econômico. Há limites de doação para campanhas, por exemplo, previstos na lei 9.504/97, e uma extensa regulamentação da arrecadação e dos gastos de campanha eleitoral atualmente consubstanciada na Res. TSE 23.609/19.
O terceiro processo que está posto para garantir que a vontade popular não seja viciada nas eleições se dá pelo papel da Justiça Eleitoral no contencioso eleitoral. São inúmeras as ações judiciais, cíveis e criminais, que são julgadas de forma célere por juízes eleitorais em primeira instância; pelos Tribunais Regionais Eleitorais, em segunda; pelo Tribunal Superior Eleitoral, em instância especial; e pelo Supremo Tribunal Federal, em instância extraordinária. Há o processo eleitoral criminal, que julga inúmeras condutas criminosas, dentre elas as mais graves como a captação de sufrágio (compra de votos, e a coação eleitoral, que suprime a vontade livre do eleitor, mediante atos das mais variadas formas de violência: da coação armada por milícias às ameaças sutis de demissão por empregadores que são candidatos ou os apoiam. As condutas de captação de sufrágio e de coação eleitoral também podem ser processadas e julgadas através de uma ação cível prevista no art. 41-A da lei das Eleições, com procedimento mais célere que o criminal.
Importante processo judicial também é o exercido para analisar as contas de partidos e candidatos. Com a mutação do modelo financiamento eleitoral brasileiro da modalidade de financiamento empresarial que, nas eleições presidenciais, por exemplo, colocava as campanhas para o cargo de Presidente dependentes do apoio de grandes empreiteiras de obras públicas e bancos, para o modelo de financiamento público, tornou-se ainda mais importante a auditoria do financiamento e emprego dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha. Uma série de procedimentos administrativos é empregada para fiscalizar o gasto do dinheiro dos fundos públicos de financiamento e, ao final das campanhas, no prazo de 30 dias, todos devem prestar contas, que são analisadas por setores técnicos dos Tribunais e juízos eleitorais para depois serem submetidas a julgamento pelos magistrados singulares ou colegiados.
Por fim temos a administração das votações, a “urna eletrônica”. O ideal é falarmos em um sistema eletrônico de votação, apuração e totalização de votos. Nos últimos anos é o processo específico do macroprocesso de revelação e certificação da vontade popular mais contestado. Não pretendo me alongar sobre este ponto, haja vista que uma ampla cobertura da imprensa e um descomunal esforço de propaganda institucional da Justiça Eleitoral têm atuado para demonstrar a confiabilidade e a transparência deste sistema. Todavia, alguns pontos especiais não podem deixar de ser mencionados aqui: (1) nos últimos anos o esforço da Justiça Eleitoral para tornar mais transparente a votação e a apuração eletrônica tem sido implementado, com o aumento, por exemplo, do número de entidades (dentre elas as Forças Armadas) aptas a fiscalização de todo o procedimento, desde a criação dos softwares que funcionam nas urnas, passando pelo pela fiscalização da carga das urnas eletrônicas, até a totalização dos votos; (2) não se deve olvidar que um contingente gigantesco de cidadãos, de forma republicana, voluntária e gratuita, é quem vai até o povo coletar os votos: são 1.987.424 mesários convocados em todo o território nacional, além de outros milhões de convocados pra apoio logístico.
Os mesários garantem que quem coleta os votos do povo é o próprio povo.
Atuando há 90 anos, a Justiça Eleitoral foi instituída após a dissolução da ordem constitucional de 1891 pela Aliança Liberal capitaneada por Getúlio Vargas. Era uma das intenções fulcrais do projeto reformador de 1930 uma reformulação completa do processo eleitoral da Primeira República, pródigo em práticas de deturpação da autêntica vontade popular como a coerção, a captação de sufrágio, e a fraude generalizada. Aceitou-se naquela quadra histórica a proposta de Assis Brasil de criação de um Código Eleitoral e de um ramo especializado do Poder Judiciário para organizar administrativamente as eleições e julgar as controvérsias em torno do processo. Fechada durante o Estado Novo (1937-1945), a Justiça Eleitoral foi restabelecida durante o interlúdio democrático e poliárquico de 1946-1964, e não foi alvo de dissolução durante o Regime Militar. É curioso que dois regimes inconstitucionais e autoritários, o instalado em 1930, e o inaugurado em 1964, tenham, em nome de moralização do processo eleitoral brasileiro, entregado a um órgão do Poder Judiciário a incumbência de organizar e julgar eleições. A aposta era na autonomia de um órgão cujos agentes não seriam representantes eletivos, mas apenas representantes funcionais do povo. Em 1965, o Marechal Castelo branco promulgou o atual Código Eleitoral, a lei 4.774/55, hoje apenas parcialmente vigente, renovando a aposta num poder autônomo e saneador das eleições. Contradições da história: ditaduras foram implantadas para reformar a democracia. De certo, era melhor que isso fosse feito por um regime democrático. E assim tem sido desde a promulgação da Constituição de 1988.
O poder constituinte democrático, em 1946 e 1988, manteve a mesma opção de dar à Justiça Eleitoral o poder de certificar a vontade popular. De 1988 até hoje o aperfeiçoamento normativo democrático tem dado a este órgão os meios legais de exercer a sua missão institucional. Começou pelas lei de Inelegibilidade, de 1990. Prosseguiu com uma lei de Partidos políticos em 1995, e com uma lei de Eleições mais moderna que o Código Eleitoral, promulgada em 1997. Foi avante com reformas pontuais, a mais importante delas de iniciativa popular, a lei de Ficha Limpa, que ampliou o rol de condutas que geram impedimentos de candidaturas, alargou de 3 para 8 anos a inelegibilidade de maus representantes, e garantiu que bastava o julgamento por um órgão colegiado, geralmente os TRE's, para que essa inelegibilidade fosse declarara. Por fim, a partir de uma decisão judicial do STF em 2015 foi proscrito o financiamento empresarial que contribuía para a oligarquização da representação política e para a corrupção endêmica.
Muitos avanços foram implementados nessa busca da certificação da vontade popular, embora muito labor de reforma ainda se faça necessário para que as embarcações das instituições democráticas atravessem o mar revolto da “sociedade de desconfiança” (termo do cientista político francês Pierre Rosanvallon) sem naufragar, permitindo que à legitimação dos eleitos se some a confiança nos mesmos.
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1 Por exemplo, a pesquisa IBOPE para o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, divulgada na véspera da eleição, dava o primeiro colocado com 36% das intenções de voto < https://politica.estadao.com.br/eleicoes/2018/pesquisas-eleitorais/primeiro-turno/presidente/ibope>, vindo o mesmo a passar para o segundo turno com quase 10 pontos a mais, 46.03% < https://politica.estadao.com.br/eleicoes/2018/cobertura-votacao-apuracao/primeiro-turno>. A discrepância se dá, provavelmente, pela incapacidade de os institutos captares a intenção dos indecisos e dos que, de última hora mudam a opção.