Os programas de compliance, como sabemos, estão na moda faz algum bom tempo. À luz do atual decreto regulamentador1 da lei anticorrupção2, as empresas sujeitas à legislação anticorrupção, mediante autorregulação, poderão instituir processos para a realização de investigações internas, que são destinadas à detecção, remediação e punição de irregularidades e desvios de conduta.
A lei anticorrupção vigente se destina à previsão de responsabilização administrativa e civil das empresas que violem regras nas interações com o poder público. Para tanto, fixa que os programas de compliance, se adotados e efetivos, em caso de cometimento de ilícitos serão elementos redutores das penalidades aplicadas pelo poder público às empresas privadas. Um dos pilares de um programa efetivo de compliance é a existência de mecanismos de detecção, remedição e punição de desvios e irregularidades.
Dentro desses mecanismos encontramos a existência de códigos de condutas, que devem prever posturas esperadas, assim como a existência de processos internos de investigação, que se destinem a desvendar ilicitudes, assim como impedi-las e remedia-las nos limites legais. Os processos internos de investigação, na esfera privada conhecidos como “investigações corporativas”, demandam (ou deveriam demandar) a observância, pelas empresas, de alguns preceitos normativos constitucionais e legais. Assim sendo, as investigações privadas podem ser realizadas dentro de um ambiente íntegro e ético, sob pena de ofensa a preceitos jurídicos dos mais caros à sociedade.
Não se pode esquecer que as investigações privadas são ferramentas pelas quais as empresas privadas acabam por auxiliar o Estado na prevenção e correção de desvios de condutas, antes mesmo de o Estado, mediante as ferramentas próprias e cogentes que lhe são disponibilizadas pelas leis, atuar.
Trata-se de um espírito de cooperação integrado ao ordenamento jurídico brasileiro, o que verificamos desde 2013, ano de edição da vigente lei anticorrupção. O Estado, portanto, conta com as empresas privadas para evitar a chaga da corrupção e demais irregularidades nas relações entre si e elas, de forma a observar com maior eficiência e eficácia o preceito constitucional da moralidade.
Voltando a falar especificamente da ferramenta legal posta à disposição das empresas para buscar a prevenção e a remediação de irregularidades ainda no âmbito das próprias empresas, este artigo destina-se a abordar brevemente a questão da observância ou não, no campo das investigações corporativas contra empregados, de algumas garantias fundamentais previstas na Constituição Federal de 1988.
As investigações privadas, que decorrem também dos poderes diretivo e disciplinar das empresas privadas empregadoras, se destinam à apuração de elementos de autoria e materialidade ligados à prática de irregularidades, seja por empregados das empresas ou mesmo por parceiros dessas empresas (terceiros).
No caso das investigações corporativas levadas a efeito contra empregados, remanescem dúvidas, especialmente no campo privado, sobre a aplicação das garantias ao contraditório e à ampla defesa, inclusa aí, de forma mais ampla, a garantia do devido processo legal. Grande parte defende a não aplicação desses preceitos no âmbito empresarial privado, a despeito da impossibilidade de violação a outros direitos fundamentais (honra e imagem, por exemplo). Outros, em menor proporção, defendem a aplicação de tais princípios, ainda que no seio de processos investigativos privados.
Ainda que se possa falar na viabilidade de investigações corporativas privadas, há linha de pensamento, como falado acima, no sentido de que processos de investigação privada para a realização de demissões por justa causa disciplinar enseja a oportunidade para que se confira ao empregado investigado a chance de se manifestar previamente, de forma a contribuir com a decisão mais justa possível. E aqui, portanto, impera a lógica contida na linha de “horizontalização dos direitos fundamentais”, que reflete a importância de respeito desses preceitos também no campo das relações firmadas estritamente entre particulares. Observada tal linha de pensamento, em se tratando a demissão por justa causa disciplinar de uma ferramenta jurídica altamente agressiva, que afeta o patrimônio jurídico dos empregados, seja no campo privado ou público, nada mais natural do que a aplicação do preceito segundo o qual tal decisão há de ser precedida pela oportunidade de apresentação de defesa pelo empregado investigado, ainda que tal direito seja observado em etapa mais simplificada e expedita.
Essa medida, ademais, integra o preceito do devido processo legal, que se presta como um moderador e arena legítima para decisões em geral. Assim sendo, as questões sociais de relevância, que discutam essa ou aquela redução de direitos, serão sempre acomodadas de uma melhor e mais justa forma se levadas a efeito após a disponibilização da oportunidade de debate amplo das visões contraditórias possivelmente existentes. Nenhum acontecimento é tão absoluto que não mereça discussão quanto à sua motivação, circunstâncias etc.
Não se deve desconsiderar que as entidades privadas também são responsáveis pela potencialização prática dos direitos e garantias fundamentais contemplados, adotados ou tolerados pela Constituição Federal de 1988 e, portanto, toda decisão adotada nessa seara merece a consideração aos direitos fundamentais da contraparte que, possivelmente, está sob a mira de uma possível/provável restrição ao seu patrimônio jurídico.
Ainda que se trate do instituto privado “investigação corporativa”, considerado, fazendo aqui um paralelo com a atividade investigativa policial, como um procedimento administrativo, a própria lei da advocacia (lei 8.906/94) conferiu ao advogado a prerrogativa, na defesa dos interesses de seu cliente, de exercer em nome daquele o sagrado direito de defesa no curso de processos investigativos policiais, por meio da apresentação de razões e quesitos.
Mesmo que estejamos a falar do direito de liberdade na esfera das investigações policiais, de natureza outra e talvez mais grave em relação a uma demissão de empregado por justa causa disciplinar, não é desproporcional comparar as questões para, no campo das investigações corporativas, tolerar minimamente a prévia participação do empregado investigado, em observância, portanto, a preceitos de ordem maior, com cunho constitucional. Não obstante ao quanto até aqui exposto, há linha de entendimento diametralmente oposta, que aposta na desnecessidade de observância de tais preceitos constitucionais nas investigações empresariais privadas. Há inclusive compreensão judiciária trabalhista em tal sentido, o que acaba por chancelar e desdizer a linha diversa que acima se apresentou, ou seja, confere-se às empresas privadas o poder de investigar e demitir sem a viabilização prévia do direito de defesa ao empregado investigado. Há notícias sobre decisões judiciárias que validaram tais demissões, mas ainda assim, a meu ver, remanesce espaço para discussões técnicas e filosóficas, nesse sentido, mais aprofundadas, com possibilidade de avanços civilizatórios mais consistentes para a questão.
Em razão do acima exposto, acredito que as investigações corporativas privadas, sem a supressão das prerrogativas investigatórias das empresas privadas, merecem uma visão mais aprofundada para que as decisões consequentes, observados alguns preceitos de ordem constitucional, a exemplo do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, sejam mais equilibradas e justas. Seria, portanto, dar oportunidade à ampla discussão, evitando-se que decisões precipitadas e sem a constatação da plena verdade sejam tomadas, com contribuição consequente à redução qualitativa da corrupção nos ambientes público e empresarial, que é o escopo da lei 12.846/13.
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1 Decreto 11.129/22, artigo 56, parágrafo único, números II, VIII, X, XI e XII.
2 Lei 12.846/13.