A qualidade do ambiente de trabalho pode ser mais ou menos propícia à ocorrência de práticas de assédio moral, dentre outras formas de violência. Apresentarei algumas condições que podem servir como gatilho para estas ocorrências (potencialmente facilitadoras):
- a manutenção de ambientes ultracompetitivos, nos quais o individualismo é estimulado, sem regras transparentes de progressão ou ascensão profissional, nem mesmo freios éticos;
- o silêncio da administração diante das evidências de competição predatória;
- conivência ativa e/ou passiva dos pares diante de situações de violência;
- não reconhecimento ou dimensionamento da gravidade destas ocorrências;
- falta de disciplina interna (normas) que preveja respostas adequadas aos casos de violação dos direitos da personalidade da (o) trabalhadora ou trabalhador;
- despreparo para lidar com estas situações;
- prevalência da comunicação violenta e discriminatória;
- naturalização de comentários hostis, invasivos, cáusticos, de desprestígio em relação ao outro;
- a discriminação recreativa;
- a inabilidade para a escuta (ativa), atenta, sem interrupções, transparente, acolhedora e eficiente;
- a negação ou a repressão inadequada dos conflitos organizacionais sem a sua solução;
- a ausência de canais ou meios para a realização de denúncias que assegurem o anonimato da(o) denunciante;
- a recorrência de exigências e críticas excessivas da administração direcionadas à equipe sob seu comando, desproporcionais às condições de trabalho proporcionadas;
- a prática de remuneração abaixo dos padrões de mercado;
- a desesperança de progressão funcional;
- a insegurança quanto a manutenção do emprego;
- a extrapolação cotidiana de jornada;
- o não acompanhamento da qualidade do clima organizacional;
- a inexistência de protocolos para a intervenção e gestão de conflitos, igualmente, de ações preventivas (realização de treinamentos, de sensibilização, de dinâmicas colaborativas e atividades de integração);
- a ausência de políticas e ações afirmativas, qual seja, de iniciativas concretas de inclusão;
- a existência de ‘ilhas’, compostas por pessoas que não se comunicam adequadamente fora dos grupos com os quais se identifica;
- a rígida imposição de padrões estéticos e comportamentais, que operam a prejuízo da expressão das singularidades;
- a não aplicação de sanções administrativas (advertência, suspensão ou desligamento) aos casos apurados, respeitando-se os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Esta relação não é exaustiva. A análise das redes sociais informais pode revelar conflitos organizacionais continentes. Certamente, a indagação que serviu de título a este artigo revelará muitas outras condições com potencial de deflagrar violações de direitos. Vale reforçar que esses gatilhos podem concorrer entre si.
As organizações não são ambientes neutros e as pessoas que nelas trabalham não são robôs. São reais. A pessoa que trabalha não traz em sua bagagem apenas competências profissionais, mas toda a sua ‘humanidade’, o que comporta fragilidades, anseios, receios, medos, traumas, inseguranças, histórias de vida, limitações, necessidades, sentimentos e emoções. É exatamente esta bagagem de humanidade (background existencial) que nos torna pessoas singulares. Ocorre que o ambiente de trabalho, por suas regras, prescrições e rígida etiqueta, tornou-se uma realidade idealizada, aparentemente inerte a conflitos e (des)afetos veementemente negados. Assim, os embates evoluem sem diálogo e mediação adequada porque são simplesmente ignorados, contexto em que admitir a existência do conflito improdutivo supera o desconforto social produzido o próprio conflito. Nessa dinâmica, instaura-se o império do achismo e dos maus entendidos, dos julgamentos precipitados, da estigmatização justificadora e das máscaras sociais (sustentadas até o limite da tolerância emocional dos partícipes do conflito).
Ambientes de trabalho tensionados são exaustivos, na verdade, adoecedores. A exaustão desencadeia relações insatisfatórias, comprometendo a realização pessoal e profissional da (o) laborista, afetando a sua autoestima e interesse pelo trabalho. Se o mal-estar decorrente evoluir para um quadro de burnout, a situação pode se agravar significativamente, produzindo sintomas psíquicos, comportamentais e físicos (fadiga, dores musculares, alterações do sono, disfunção sexual, cefaleia, mudança no ciclo menstrual, irritabilidade, dificuldade de concentração, solidão, desânimo, astenia, alterações na memória, lentificação, labilidade emocional, dentre muitos outros.). Acrescente a esta relação os sintomas defensivos, a exemplo do isolamento social e as tentativas de abandonar o emprego. É quando a vida profissional se torna insuportável.
Para além desta ressonância funesta, a tensão no ambiente laboral afeta a comunicação profissional, as relações, o comportamento, a produtividade e a qualidade dos resultados, numa perspectiva ampliada, o desempenho organizacional.
Repercutindo a gravidade do problema, a lei 14.457, de 21 de setembro de 2022, em seu art.23, renomeou a CIPA para ampliar o escopo de sua atuação (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio), alterando o texto da Consolidação das Leis do Trabalho.
Com vistas à promoção de um ambiente de trabalho saudável, psicologicamente seguro, que favoreça a inserção e inclusão efetiva das mulheres no mundo do trabalho, as organizações que têm constituída a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio (Cipa) deverão implantar as seguintes medidas:
- a inclusão de normas de conduta para a prevenir a ocorrência de assédio sexual e outras formas de violência, assegurando a sua ampla divulgação entre empregados e empregadas;
- o estabelecimento de procedimentos para recebimento e acompanhamento de denúncias, relativas à apuração dos fatos denunciados e, quando for o caso, a aplicação de sanções administrativas cabíveis aos responsáveis pela conduta em questão, garantindo o anonimato da pessoa denunciante, sem prejuízo dos procedimentos jurídicos cabíveis;1
- a realização periódica de ações educativas, quais sejam, de capacitação, orientação e sensibilização, respeitando um intervalo mínimo de 12 (doze) meses;
- a inclusão de temas importantes para a consecução do objetivo de prevenção e combate ao assédio sexual e outras formas de violência nas práticas da Cipa.
O prazo para adoção da lei é de 180 (cento e oitenta) dias após a sua entrada em vigor.
A contemplação da pauta, no que diz respeito a esta matéria especificamente, representa um avanço, não obstante a lei não garanta efetividade (adesão), tendo em vista que não resta prevista qualquer sanção para o descumprimento das medidas que encaminha. Ademais, restringe a obrigação às empresas que possuem a CIPA constituída.
Sob o prisma moral, a responsabilidade pela boa qualidade do meio ambiente de trabalho é de todas (os), mas o empregador responde objetivamente pela violação de direitos ocorrida neste ambiente (condutas e atividades lesivas à dignidade e saúde da (o) trabalhadora ou trabalhador), repercutindo na reparação do dano causado. E aí, como é o seu ambiente de trabalho? Como se sente?
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1 O processamento das denúncias não prejudica ou substitui o procedimento penal nos casos de assédio sexual ou qualquer outro tipo penal.