Migalhas de Peso

Mercado de carbono, especulação imobiliária e fome

O novo mercado de carbono é um alento e uma oportunidade ímpar para o Brasil e, em especial, para os detentores de propriedades elegíveis para compensação, nos diversos biomas do país.

26/9/2022

Com as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris (2015)1 e corroboradas pela COP26 em Glasgow, os países em desenvolvimento abriram claro relacionamento com países detentores de floresta, para adquirir créditos de carbono2, em respeito ao modelo adotado pelo mercado3.

O Brasil é, indubitavelmente, candidato a se tornar um dos maiores beneficiários financeiros deste novo mercado e a razão é bem simples – o país é detentor de biomas extensos, ricos e poderosos, que funcionam como verdadeiros sumidouros de carbono.

Mas como toda moeda possui dois lados, é necessário que a regulação no Brasil, que ainda está engatinhando, leve em conta a especulação imobiliária que tende a crescer, fortemente, em relação as terras elegíveis para formação de créditos.

A pressão por créditos certamente elevará o valor (e preço) das propriedades e criará um ajuste natural de mercado, em que o grande latifundiário buscará adquirir dos pequenos proprietários, para aumentar as suas reservas.

Aparentemente, esta situação pode ser encarada como um negócio comum, realizado há séculos, no mercado imobiliário, mas não é.

As propriedades rurais de pequenos agricultores é que são responsáveis por levar boa parte dos alimentos aos lares brasileiros, ao contrário dos grandes latifúndios, que são focados em monoculturas voltadas à exportação.

Se os pequenos produtores já não conseguem alta produtividade, por dificuldade de acesso a financiamentos razoáveis, o mercado de carbono tende a acelerar a oferta de suas propriedades, que passarão a ter outra função, mais especulativa e menos produtiva, com o risco de retração da oferta de alimentos (por consequência, com aumento de preços).

Segundo dados publicados pelo Banco Mundial4, são milhões de pessoas que passam a fome ou possuem altíssimo índice de desnutrição na América Latina (incluindo, obviamente, o Brasil), o que sugere um olhar necessário e para a manutenção (e aumento) da agricultura familiar que acontece em pequenas propriedades, diminuindo sua vulnerabilidade.

Nunca é demais lembrar que a segunda meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU é a seguinte: “Fome zero e agricultura sustentável - Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”5.

Não há discussão quanto as vantagens que o mercado de carbono pode trazer para o Brasil, mas o benefício deve ser harmônico e atingir todas as camadas da população, inclusive garantindo a diminuição da desigualdade que assola e macula a história do país.

O risco de rápida inversão da titularidade das propriedades e o esvaziamento dos pequenos produtores, como resultado do novo mercado, é preocupante e devem ser debatidos com profundidade. Explica-se: a aquisição de propriedades deixa de ser uma negociação bilateral, em que apenas estes entes (comprador e vendedor) se beneficiam. Existem reflexos para a sociedade que devem ser considerados, se houver risco daquela determinada propriedade deixar de ter a função de fornecimento alimentar que possuía.

E, se a liberdade de mercado entre agentes econômicos, em determinada circunstância, resulta em desvantagens, com mais efeitos negativos do que positivos, temos o que a doutrina econômica descreve como “falha de mercado”.

Steven G. Medema, professor de economia da Universidade de Colorado, afirmou, em seu artigo “HARNESSING SELF-INTEREST: MILL, SIDGWICK, AND THE EVOLUTION OF THE THEORY OF MARKET FAILURE”6:

“Specifically, as against the classical faith in the system of natural liberty and the attendant suspicion of state intervention, we see in the literature assertions of a rather extensive set of divergences that the market could not satisfactorily coordinate—market failures—and the argument that government could serve as an efficient coordinating force.7

Se há mesmo uma falha de mercado na situação aqui trazida, a consequência amarga, porém necessária, é uma regulação apropriada (seja através de legislação ou políticas públicas) que não feche os olhos para o que se pode considerar como efeito colateral do mercado de carbono.

Conclusões.

O novo mercado de carbono é um alento e uma oportunidade ímpar para o Brasil e, em especial, para os detentores de propriedades elegíveis para compensação, nos diversos biomas do país. Esta oportunidade, no entanto, deve servir, de fato, para combater as desigualdades e não para gerar um problema, que é o desequilíbrio alimentar. O eventual risco de diminuição de pequenas propriedades (que possuem função primordial no fornecimento de alimentos) deve ser observado com lupa e combatido como verdadeira falha de mercado – com regulação adequada.

A sociedade tem debatido a construção do modelo regulado mais apropriado para o tema, inclusive o Governo lançou mão, recentemente, do decreto 11.075/22 que estabeleceu os primeiros passos da regulação, definindo os procedimentos para a elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas e o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa.

Muito se discute sobre os desafios trazidos pelo movimento da descarbonização8, mas, se há um tema que possui prioridade e máxima relevância é o eventual risco de desabastecimento de alimentos e as suas nefastas consequências.

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1 Os mais de 190 países signatários se comprometeram com metas de redução de emissões (NDCs). 

2 Carbono é uma maneira genérica de identificar a emissão de gases que resultam no aquecimento global (sendo que o mais comum é o CO2).

3 “Mercado de crédito de carbono é o sistema de compensações de emissão de carbono ou equivalente de gás de efeito estufa. Isso acontece por meio da aquisição de créditos de carbono por empresas que não atingiram suas metas de redução de gases de efeito estufa (GEE), daqueles que reduziram as suas emissões”.  https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/mercado-de-carbono/#:~:text=O%20mercado%20de%20carbono%20funciona,%C3%A0queles%20que%20extrapolaram%20seus%20limites. 

4 https://www.bancomundial.org/es/news/feature/2016/06/27/agricultura-familiar-punta-lanza-contra-hambre-america-latina 

5 https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/2 

6 Medema, Steven G., Harnessing Self-Interest: Mill, Sidwick, and the Evolution of the Theory of Market Failure (May 2006). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=560921 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.560921 -  DOI:10.2139/ssrn.560921

7 Tradução livre: “Especificamente, contra a fé clássica no sistema de liberdade natural e a suspeita concomitante do estado intervenção, vemos na literatura afirmações de um conjunto bastante extenso de divergências que o mercado não conseguiu coordenar satisfatoriamente – falhas de mercado – e o argumento de que o governo poderia servir como uma força de coordenação eficiente”

8 Integridade e adicionalidade, como exemplo.

Luiz Ricardo Marinello
Mestre em Direito pela PUC/SP; Professor na INSPER em Contratos de PI; Professor em Especialização de PI na ESA/SP; Coordenador de Comitê na ABPI; Diretor da ASPI; sócio de Marinello Advogados;

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