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A eficácia horizontal dos direitos fundamentais

O presente artigo traz como objetivo analisar, à luz dos direitos fundamentais à propriedade privada e o direito à liberdade de pensamento e liberdade de expressão artística, se a conduta do SINRURAL em negar locação para apresentação de artista em razão divergência de opinião é conduta compatível com a Constituição de 1988.

21/9/2022

I. INTRODUÇÃO

Nos últimos dias  tem repercutido nos meios de comunicação que os Diretores do Sindicato Rural de Imperatriz – SINRURAL, teriam publicado vídeo em redes sociais afirmando que teriam recusado a locação do espaço para produtora Imperial Produções, que realizaria no local o Festival ‘Pizro’, que contaria com a apresentação do artista  João Gomes. O motivo da negativa, segundo o presidente do sindicato, Sr. Luís Afonso Danda, seria “em virtude do comportamento dele [João Gomes] de tratar mal a figura do nosso presidente Bolsonaro” de modo que o artista João Gomes não seria “bem vindo dentro do parque de exposições”, conclui Luís Danda.

A par de todas as discussões, debates e paixões políticas que a notícia acendeu ou encandeou no seio da população civil, a questão que se pretende discutir é se à luz do rol dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição e assegurados no caput do artigo 5º, onde assegura nos seus incisos IV e IX o direito fundamental à “livre manifestação do pensamento” e à “livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, pode-se exigir que na relação iminentemente ocorrida entre particulares, seria aplicável ou exigível a observância aos direitos fundamentais, que, como se sabem, são direitos oponíveis, via de regra, contra o Estado.

Traçado o contorno fático e à luz dos fatos veiculados por meio dos sítios de comunicação, pretende o presente artigo levantar hipóteses sobre eficácia horizontal dos direitos fundamentais, assim compreendida como a eficácia dos direitos fundamentais em uma relação iminentemente privada adotando-se como premissas os seguintes fatos: a) a apresentação do artista foi contratada pela produtora Imperial Produções para realização de evento privado; e que b) a relação que se pretendia entabular com o SINRURAL seria uma relação locatícia por temporada, igualmente de cunho iminentemente privado.

Fixada as premissas, emerge o seguinte problema a ser respondido: são as normas de direitos fundamentais aplicáveis às relações privadas?

II. A APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PRIVADOS

Não pairam dúvidas quanto a eficácia vertical dos direitos fundamentais em face do Estado, assim compreendido como um direito do cidadão em face do Estado, que deve assegurar, e mais do que isso, promover a dignidade da pessoa humana. Contudo, ante a manifesta colidência aparente de direitos fundamentais, notadamente o direito à propriedade privada e o direito à livre a expressão da atividade intelectual, resta ainda perquirir sobre a aplicação ou eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações iminentemente privadas

Segundo Sarlet (2010), a questão teve suas primeiras linhas iniciadas no Direito Alemão, carecendo ainda o direito pátrio de maior aprofundamento sobre a matéria, na medida em que, no direito lusitano, por exemplo, há expressa previsão na Constituição vigente da aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais, o que inexiste na constituição pátria, o que, per si, não é razão para maiores controvérsias sobre sua vinculação e eficácia nas relações jurídicos entre particulares.

Para Sarlet (2010,  p. 374) “os direitos fundamentais exercem eficácia vinculante também na esfera jurídica privada isto é, no âmbito das relações jurídicas entre particulares”.

A questão controverte-se, sobretudo, quando se está defronte da vinculação direta dos particulares aos direitos sociais, revelando a principal discussão, qual seja, a forma como se dá a vinculação do particular aos direitos fundamentais, na medida em que para alguns, os direitos fundamentais possuem eficácia mediata (indireta) nas relações privadas, tendo seu principal defensor o alemão Günter Dürig,, ao passo que outros, tendo como principais defensores o alemão Hans Carl Nipperdey e Walter Leisner, os direitos fundamentais possuem uma aplicação direta (imediata) nas relações jurídicas privadas.

Os que advogam a tese da eficácia mediata, entendem que os direitos fundamentais: apenas poderiam ser aplicados no âmbito das relações entre particulares após um processo de transmutação, caracterizado pela aplicação, interpretação e integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado à luz dos direitos fundamentais” (SARLET,2010, p. 379).

Ao passo que a corrente oposta afirma que “em virtude dos direitos fundamentais constituírem normas de valor válidas para toda ordem jurídica (princípio da unidade da ordem jurídica) e da força normativa da Constituição, não se pode aceitar que o direito privado venha a formar uma espécie de gueto à margem da ordem constitucional.” (SARLET, 2010, p. 379).

Para Sarlet (2010, p. 380), que advoga a tese de que, à luz do direito constitucional brasileiro, o ordenamento pátrio seria signatário da vinculação direta (imediata) dos direitos fundamentais às relações privadas, reconhece que na Alemanha, berço precursor dessa discussão, a doutrina majoritária dirigiu-se pela vinculação indireta (mediata). Sopesando que a aferição da eficácia direta ou indireta dos direitos fundamentais às relações privadas, somente poderá ocorrer à luz do caso concreto, “dependendo, em princípio, da existência de uma norma de direito privado e da forma como esta dispõe sobre as relações entre os particulares”.

Em contraponto à tese advogada por Sarlet, Tavares (2010, p 533.) entende que com a adoção da tese da “eficácia direta e imediata, corre-se o grave risco, especialmente no Brasil, de constitucionalizar todo o direito e todas as relações particulares, relegando o direito privado a segundo plano no tratamento de tais matérias”, trazendo ainda um segundo problema, pois estria-se a converter o “STF em verdadeira corte de revisão, porque todas a relações sociais passariam imediatamente a ser relações de índole constitucional”.

Relembra Oliveira (2014), que no Brasil a questão ganhou especial importância no Julgamento do Recurso Extraordinário 201819-8/RJ, onde a União Brasileira dos Músicos do Brasil – UBC, fulcrada em seu Estatuto Social, excluiu um sócio que teria violado o Estatuto, sem assegurar-lhe o devido processo legal.

No referido julgamento, em que pese o reconhecimento da UBC ser uma entidade de direito privado e, nessa condição, possuir “liberdade para se organizar e estabelecer normas de funcionamento e de relacionamento entre os sócios, desde que respeitem a legislação em vigor” (OLIVEIRA, 2014, p. 209), o STF, por maioria de votos, entendeu que: “As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.” (BRASIL, 2005, p. 577).

Adverte Grau (2001, p. 48), que deve o Estado se empenhar “na defesa do capitalismo contrato os capitalistas”, haja vista que “não existiria o capitalismo sem que o Estado cumprisse a sua parte, desenvolvendo vigorosa atividade econômica, no campo dos serviços públicos.” (GRAU, 2001, p. 19)

Assim, compreende-se que “as normas de direito privado não podem contrariar o conteúdo dos direitos fundamentais, impondo-se uma interpretação das normas privadas (infraconstitucionais), conforme os parâmetros axiológicos contidos nas normas de direitos fundamentais” (SARLET, 2010, p. 382), atuando simultaneamente a Constituição, nesse sentido, como garantia e limite do direito privado.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, é de concluir que no que pese o direito à propriedade privada consistir em direito fundamental do cidadão brasileiro, de outro lado igualmente compreende-se que a livre manifestação do pensamento e a livre expressão da atividade artística, independentemente de censura ou licença, são direitos igualmente fundamentais, que não se sobrepõe ou se hierarquizam, se não na análise do caso concreto.

A questão posta tem como premissa que o Sindicato Rural de Imperatriz – SINRURAL, enquanto pessoa jurídica privado, adotou em sua constituição o objetivo de explorar a atividade econômica de “serviços de organização de feiras, congressos, exposições e festas tem como fim último a promoção de eventos”, de modo que a que se concluir que o imóvel se sua propriedade possui como destinação a locação para realização e promoção de eventos e festas.

De modo que no exercício do direito fundamental a propriedade, lhe é subtraído a possibilidade de no exercício desse direito, de maneira dolosa e deliberada, ferir outros direitos igualmente dotados de fundamentalidade, de sorte que, no que pese se tratar de uma relação iminentemente privada, é dever dos privados observarem normas de direitos fundamentais e não praticarem nenhuma conduta que atentem contra os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, notadamente atos que revelem condutas de “preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Isso porque, assegurar a livre manifestação do pensamento e a livre expressão da atividade artística, independentemente de censura ou licença somente será possível se o ordenamento jurídico assegurar àquele que manifeste o pensamento ou se expresse artisticamente, não sofrerá retaliações por parte do Estado ou de outros particulares, sobretudo à pretexto ou sob fundamento do pleno exercício de direito fundamental.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 7 ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2002.

OLIVEIRA, Fabrício Vasconcelos. Relações Privadas e Direitos Fundamentais: Análise do Recurso Extraordinário nº 201.819-8/RJ. In Jurisprudência Constitucional Revisada. Organização Antônio Moreira Maués; Jeferson Antônio Fernandes Bacelar; Paulo Sérigio Weyl Albuquerque Costa. 1. Ed., Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10º ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado , 2010.

William de Oliveira Ramos
Mestrando em direitos fundamentais pela Universidade da Amazônia/UNAMA; Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/FGV; especialista em Direito Processual Civil, Constitucional, Penal e Trabalhista pela Faculdade Maurício de Nassau de Belém; advogado sócio do escritório Ramos & Valadão Sociedade de Advogados.

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