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EFPC no controle de companhias - O art. 29 da LC 108/01

Em todo o rígido sistema de governança das EFPC há uma única alçada relativa a investimentos que se refere à patrocinadora e ao ente controlador. É o art. 29 da LC 108/01 que não impede a aplicação de recursos, mas o exercício de poder de controle. Se estudarmos o PLC 8/99 que deu origem à LC 108/01 veremos que todas as premissas utilizadas estão juridicamente equivocadas.

20/9/2022

1. Alçada da patrocinadora e do ente controlador

Está em voga a discussão sobre alterações às Leis Complementares 108 e 108/01. Enquanto isso, no cenário atual, as EFPC reguladas pela LC 108/2001 podem investir recursos sem necessidade de aprovação direta de sua patrocinadora e de seu ente controlador. Todo o rígido sistema de governança alcança, no máximo, o Conselho Deliberativo com representantes das patrocinadoras, participantes e assistidos.1 Há uma única alçada relativa a investimentos que se refere à patrocinadora e ao ente controlador. É o art. 29 da LC 108/01 que não trata da aplicação de recursos, mas do exercício de poder de controle. Vejamos:

“Art. 29. As entidades de previdência privada patrocinadas por empresas controladas, direta ou indiretamente, pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que possuam planos de benefícios definidos com responsabilidade da patrocinadora, não poderão exercer o controle ou participar de acordo de acionistas que tenha por objeto formação de grupo de controle de sociedade anônima, sem prévia e expressa autorização da patrocinadora e do seu respectivo ente controlador.

O fato é que sempre pareceu uma preocupação exagerada com o exercício de controle. No entanto, durante muitos anos em que trabalhei no sistema de previdência complementar, defendia que a ratio juris do art. 29 era proteger os planos de benefícios dos riscos inerentes ao exercício do controle. Fazia isso por concordar integralmente com o posicionamento do Dr. Flavio Martins Rodrigues.2 Coerentemente, apontava o autor que eventuais sanções administrativas e reparações civis impostas a acionistas controladores poderiam afetar as “reservas garantidoras dos seus planos de benefícios a ponto de colocar em risco o seu equilíbrio financeiro”. Para minha surpresa, deparei-me com o Projeto de Lei Complementar 8 de 1999 que deu origem à LC 108/01 e acredito que todas as premissas utilizadas estão juridicamente equivocadas.

2. Histórico do processo legislativo

Iniciado o PLC 08/99 na Câmara do Deputados em maio de 1999, apenas no Senado, em agosto de 2000 surge a emenda 3 com o embrião do atual art. 29:

“Art.   As entidades de previdência privada patrocinadas por empresas controladas, direta ou indiretamente, pela União, Estados, Federal e Municípios, que possuam planos de benefícios definidos com responsabilidade da patrocinadora, não poderão exercer o controle ou participar de acordo de acionistas que tenha por objeto formação de grupo de controle de sociedade anônima.”

Chama atenção, porém, a Justificação apresentada pelo Sen. José Roberto Arruda:

“As entidades que têm Planos de Benefícios definidos como responsabilidade de Patrocinadora não podem ter responsabilidade de participar de acordo ou controle, uma vez que qualquer déficit atuarial, a cobertura deve estar adstrita a entes federativos, que podem não ter condições ou interesses (orçamentário e/ou financeiro) em colocar recursos na Sociedades que nada têm a ver com as suas atividades. Por outro lado, também, a Emenda evita que empresas privatizadas de forma indireta, venham a ser reestatizadas.”

A emenda 3 seguiu para a CCJ e, em novembro de 2000, parecer relatado pelo Sen. José Fogaça a analisou:

[...] o objetivo aqui é evitar a confusão entre interesses públicos e privados, estabelecendo-se no sentido de que interesses corporativos privados se utilizem de recursos públicos em seu próprio favor [...]  concluímos pois pela constitucionalidade, juridicidade e regimentabilidade [...]”

O parecer da CCJ, entretanto, apresentou nova redação à proposta de artigo que passou a ter a redação final até hoje em vigor. E, assim, justificou:

As modificações introduzidas por esta emenda visam assegurar que as atuais participações acionárias sejam mantidas e permitir que futuras participações venham a ocorrer no interesse das entidades de previdência desde que ouvida a outra parte interessada: a patrocinadora.

Seguindo para Comissão de Assuntos Sociais em março de 2001, o Parecer do Sen. Romero Jucá acolheu as manifestações da CCJ e acrescentou como justificativa:

[...] ampliam a transparência das entidades fechadas de previdência privada patrocinadas por entidades públicos (sic) e impedem a utilização corporativa dos fundos de pensão.

Retornando à Câmara dos Deputados, o parecer do Relator Dep. José Carlos Aleluia foi de que o propósito do art. 29 era:

[...] evitar que o controle de empresas seja exercido pelas fundações mantidas por instituições controladas indiretamente pelos Estados, Municípios ou União sem a prévia e expressa autorização do patrocinador. No meu entender essa é uma válvula que ainda permitiria eventual reestatização do sistema produtivo brasileiro. E o § 1º estabelece que os acordos feitos ficam preservados.

Ao final, a emenda foi submetida à votação em separado e aprovada por 292 votos atingindo o quórum de maioria absoluta (257 deputados de um total de 513) exigido para aprovação de Lei Complementar.

3. Síntese das premissas/justificativas legislativas

Sintetizo as premissas e justificativas:3

(a) Fazer parte do controle de sociedade anônima significaria, em alguma medida, obrigação de integralizar recursos nas sociedades.

(b) Qualquer déficit atuarial deveria ser suportado integralmente pelos entes controladores das patrocinadoras com plano de benefício definido.

(c) Entes federativos poderiam não ter condições ou interesse em integralizar recursos em sociedades que nada têm a ver com as suas atividades.

(d) As EFPC deveriam obedecer a comandos de sua patrocinadora e de seu ente controlador. Logo, fazer parte de controle poderia significar a (re)estatização de uma companhia e do sistema produtivo brasileiro.

(e) Ouvir a patrocinadora e os entes controladores seria uma forma de mitigar os riscos acima descritos

4. Crítica às premissas/justificativas legislativas

Como indiquei, acredito que todas as premissas utilizadas estão juridicamente equivocadas. Vejamos:

(a) O acionista de sociedade anônima tem sua responsabilidade limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas (art. 1º Lei 6404/76).4 Mesmo em caso de falência, em regra, seus acionistas não estarão obrigados a integralizar mais capital. Como já referi, o exercício do controle só significaria uma responsabilidade adicional, caso a EFPC atuasse com abuso de poder (art. 117 e seguintes Lei 6404/76).5 Contudo, esse risco não foi sequer mencionado pelos legisladores.

(b) Os déficits não são integralmente suportados pelos controladores das patrocinadoras. Devem sim, ser equacionados por patrocinadores, participantes e assistidos, na forma descrita no art. 21 da LC 109/01.6 Esse dado não deveria ser desconhecido pelos parlamentares, pois tal dispositivo sobre equacionamento já constava na redação original do PLP 10/99 deu origem à LC109/01. Portanto, bem antes da apresentação da emenda 3 em agosto de 2000.

(c) Como já dito, entes federativos não têm obrigação de integralizar recursos em sociedades pelo simples fato de que a EFPC seja sua controladora.

(d) Essa premissa viola todo o sistema de previdência que estava sendo instituído pelas LC 108/01 e 109/01 pois supõe que os controladores dos patrocinadores poderiam influenciar de forma legal a patrocinadora, para que essa, por sua vez, influencie legalmente os administradores da EFPC.

Ora, se houvesse influência, seria ilegal e significaria que os agentes públicos, no mínimo, praticariam ato de improbidade. Os administradores, também, no mínimo, violariam seus deveres de cuidado e diligência para atender os interesses estatais. Em que pese ser uma possibilidade teórica, jamais poderia ser utilizado como premissa para impedir a participação no controle de uma sociedade anônima. Demonstraria que o legislador não acreditava no próprio sistema de governança para as EFPC que estava sendo criado.

(e) Penso que essa é a mais curiosa de todas as premissas. Para frustrar um suposto esquema ilícito de (re)estatização iniciado pela patrocinadora e pelo ente controlador é exigida autorização da própria patrocinadora e do próprio ente controlador. Há uma séria dificuldade em entender a lógica do argumento. Ademais, se formos falar em equacionamento de déficit, há outras partes interessadas como os participantes e assistidos. Para ser coerente e evitar conflito de interesses e qualquer influência da patrocinadora, a questão deveria se submeter aos participantes e assistidos. Nunca, à patrocinadora.

4. Conclusão

Há séculos, a mens legislatoris vem sendo discutida. Não pretendo entrar nessa seara hermenêutica. Neste caso, serei pragmático e prefiro desconsiderar a aparente vontade dos legisladores. Se alguma EFPC deseja fazer parte do controle de uma sociedade anônima, deve mesmo seguir o art. 29 na sua redação em vigor e ignorar a ratio juris da norma.

Atualmente, entretanto, vejo outro motivo prático que deve dificultar qualquer participação no controle. É que boa parte dos planos de benefício definido estão fechados, são bastante maduros e estão em fase avançada de pagamento de benefícios.7 E, uma participação no controle sempre padece de iliquidez. Portanto, adquirir ativos ilíquidos em um momento de necessidade de liquidez, a priori, parece ser contrário aos objetivos de assegurar solvência, liquidez e equilíbrio econômico-financeiro e atuarial aos planos de benefícios. Assim, caso optem por adquirir participação no controle, todos devem ser ainda mais rigorosos e cautelosos com as justificativas em seu processo decisório.

__________________

LC 108/01 art. 13. Ao conselho deliberativo compete a definição das seguintes matérias: [...] III – gestão de investimentos e plano de aplicação de recursos; IV – autorizar investimentos que envolvam valores iguais ou superiores a cinco por cento dos recursos garantidores;

“[...] art. 29 da LC nº 109/2001, evidentemente, trata de evitar os riscos decorrentes da responsabilidade legal própria de controladores de companhias abertas, empresas que, via emissões públicas, captam recursos no mercado aberro (portanto, do público em geral). A Lei das Sociedades Anônimas [...] determina os deveres do acionista controlador, impondo-lhe que use 'o seu poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir a sua função social", dispondo, ainda, que o acionista detentor do poder de controle "tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela. trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender':. RODRIGUES, Flavio Martins - Opinião legal objetiva - Investimentos de EFPC com patrocinadores estatais: a interpretação do Art. 29 da LC 108/2001 Revista de Previdência/ ISSN 1807-443X I UERJ I n.6 /182 p I Abril 07. https://www.bocater.com.br/UPLOAD/noticias/57b60209c06c9.pdf

3 Em especial, a primeira justificativa tem uma redação difícil de compreender.

4 Art. 1º A companhia ou sociedade anônima terá o capital dividido em ações, e a responsabilidade dos sócios ou acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas.

5 Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder.

6 Art. 21. O resultado deficitário nos planos ou nas entidades fechadas será equacionado por patrocinadores, participantes e assistidos, na proporção existente entre as suas contribuições, sem prejuízo de ação regressiva contra dirigentes ou terceiros que deram causa a dano ou prejuízo à entidade de previdência complementar.

Entre tantas informações que confirmam o que afirmei destaco a Res. nº 25/2018 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão Comissão Interministerial de Governança Corporativa e de Administração de Participações Societárias da União que estabelece diretrizes e parâmetros para as empresas estatais federais quanto ao patrocínio de planos de benefícios de previdência complementar e veda novos planos BD e determina o fechamento dos planos BD abertos. Vide: Art. 3º e 4º.

Renato de Mello Gomes dos Santos
Mestre em Direito dos Contratos e da Empresa - Universidade do Minho - Braga; MBA Gestão de Negócios IBMEC; Graduado UFRJ; Pós-Graduado - Direito Consumidor - EMERJ; Advogado no Brasil e em Portugal.

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