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Dos desbancarizados: garantir dignidade financeira à população constitui política pública de Estado

Como a atividade bancária é de suma importância para todos os setores da sociedade, a sua fiscalização e, sobretudo, regulação por parte do Banco Central é indelegável.

20/9/2022

De acordo com dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os bancos figuram há anos entre os maiores litigantes do país, em especial, nas Justiças Estaduais1.

A razão dessa intensa litigiosidade é clara: o setor bancário, em que pesem os esforços adotados nos últimos anos para o aperfeiçoamento dos seus serviços, ainda carece de muitas melhorias, em especial, quanto ao combate às práticas abusivas, extremamente nocivas aos direitos dos consumidores e às camadas mais vulneráveis da sociedade.

Segundo pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), em 2022, quase 80% das famílias brasileiras se encontram endividadas2.

Apesar dessa situação, os bancos continuam a adotar políticas restritivas aos negativados e que não contribuem para um sistema bancário mais inclusivo e, efetivamente, comprometido com o desenvolvimento econômico, social e sustentável do país.

Para alterar esse cenário, o papel do Banco Central é de fundamental importância, visto que uma de suas finalidades precípuas é de assegurar a estabilidade financeira e, assim, garantir o bem estar social.

Como o próprio Banco Central define: “a estabilidade financeira é um dos fatores que pode garantir a sustentabilidade do crescimento econômico e do bem estar da sociedade. Para tanto, é preciso garantir a existência de um sistema financeiro bem organizado e fiscalizado de forma que os depositantes se sintam protegidos e os tomadores possam ter acesso ao crédito. Assim, o cliente dos serviços financeiros tem a confiança de que seu patrimônio está seguro e pode investir no seu futuro com mais tranquilidade” 3.

Disto se extrai a importância do Banco Central, o qual, no exercício regular de suas atribuições, deve supervisionar e, sobretudo, regular a atuação das instituições financeiras, definindo, inclusive, diretrizes e políticas a serem seguidas pelo setor bancário.

Frise-se que essa função regulatória não pode ser delegada às entidades privadas, como a FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos), pois, de acordo com o seu próprio estatuto social, uma de suas principais finalidades é a de representar os seus associados, ou seja, as 119 instituições financeiras constantes em seu quadro associativo4, e não atender, propriamente, os interesses da população como um todo.

Assim, sem negar as contribuições inegáveis dessa entidade para o sistema financeiro, os bancos devem seguir as diretrizes definidas pelo Banco Central, o qual, de fato, é o responsável pela adoção de medidas efetivamente destinadas à proteção e à estabilidade financeira da sociedade.

Ora, diariamente, a população sofre com o pagamento de juros abusivos e com informações deficientes sobre os serviços bancários e suas respectivas tarifas. Também há problemas com a cobrança de serviços não contratados, com débitos não autorizados, diminuição de limites sem aviso,  a falta de segurança nas operações com cartão de crédito e operações eletrônicas.

Além de todos estes recorrentes problemas, os bancos ainda criam obstáculos para a abertura de contas e para a concessão de créditos para pessoas que se encontram negativadas, procedendo à inclusão de seus nomes em cadastros de inadimplentes, o que, como dito, atinge grande parcela das famílias brasileiras.

A propósito, em muitos casos, as instituições se recusam a abrir, inclusive, conta salário para negativados, o que é totalmente indevido e ilegal. Afinal, esta conta é usada exclusivamente para o depósito da remuneração mensal do trabalhador, não conferindo direito a outros tipos de serviços bancários, dentre os quais, o de realizar depósitos, fazer uso de cheques e cartões de crédito ou obter empréstimos.

Assim, mesmo não representando qualquer risco à atividade bancária, a abertura de conta salário é desestimulada e obstaculizada pelos bancos, pois, por não agregar serviços e tarifas, esta modalidade de conta é pouco rentável.

Por conta disto, muitas pessoas que não têm acesso ao crédito por parte dos grandes bancos têm optado pelas denominadas “fintechs”, plataformas que atuam em serviços financeiros específicos, por meio de funcionalidades tecnológicas.

Todavia, as “fintechs” ainda possuem pouca regulação.

Se, por um lado, a falta de regulamentação é positiva, pois confere mais flexibilidade em sua atuação e uma maior customização dos serviços, por outro lado, pode representar um risco de insegurança em um setor tão estratégico e que já enfrenta sérios problemas de instabilidade e de práticas abusivas.

No mais, em um país em que um a cada quatro pessoas não tem acesso à internet5, as “fintechs” – plataformas que exigem o uso de meios eletrônicos e, portanto, acesso à rede mundial de computadores – não podem constituir a única solução para uma camada tão grande da população que sofre com o problema da falta de acesso ao crédito e aos serviços bancários, ambos essenciais para uma vida digna.

Diante de tais circunstâncias, como a atividade bancária é de suma importância para todos os setores da sociedade, a sua fiscalização e, sobretudo, regulação por parte do Banco Central é indelegável, afinal, garantir dignidade financeira à população constitui política pública de Estado, sucedendo que as entidades privadas devem atuar de forma meramente subsidiária, nunca exclusiva.

É preciso voltar os olhos para os negativados, carentes de serviços bancários, e exigir o cumprimento da lei (arts. 4, “caput e inciso X; 6, XI; 39, IX do CDC, diploma aplicável aos bancos por força da ADIn 2591/STF, c/c o art. 170, “caput” e seus incisos III e V, da CF/88), possibilitando a essas pessoas o acesso bancário, quer por meio de conta salário ou versão “standard”, com ampla movimentação dos recursos ali depositados, quer pela realização de protocolo amplo capaz de permitir que saldem seus débitos com deságio e parcelamento condizentes com suas condições.

Afinal, toda empresa ou instituição privada, inclusive os bancos, devem cumprir o objetivo social que lhes cabe, nos termos dos dispositivos constitucionais suso citados.

Nessa linha, governo e Parlamento devem ser impositivos no sentido de propiciar política pública desse jaez, exigindo atitude do setor bancário.

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1 Disponível em: https://grandes-litigantes.stg.cloud.cnj.jus.br/ e https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/just-pesquisa-maiores-litigantes2018.pdf , acessado em 12/09/2022, às 14h25m.

2 Disponível em: https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-janeiro-de-2022/413209 , acessado em 12/09/2022, às 14h49m.

3 Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira, acessado em 12/09/2022, às 15h11m.

4 Disponível em: https://portal.febraban.org.br/pagina/3031/9/pt-br/institucional , acessado em 12/09/2022, às 13h39m.

5 Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet , acessado em 12/09/2022, às 16h31m.

Ivan Sartori
Desembargador, formado em Direto pela Universidade Mackenzie. Ingressou na Magistratura Paulista em janeiro de 1981 com 23 anos. Foi eleito e reeleito para compor o Órgão Especial daquela Corte, instância máxima do Judiciário Paulista. Foi o relator do atual Regimento Interno do Tribunal. Tornou-se o mais jovem Presidente da história do maior tribunal do mundo (TJ/SP), biênio 2012/13.

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