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STJ e a desconsideração da personalidade jurídica de fundos: nem todos que vagueiam estão perdidos

Decisão recente do STJ de que os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica podem atingir fundos de investimento deve ser analisada de perto e com atenção às nuances.

20/9/2022

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica? podem atingir fundo de investimento em participações (FIP) para satisfazer as dívidas de cotista do fundo.

No caso em questão, aplicou-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica sobre o sócio da companhia executada, atingindo as demais entidades do grupo econômico, dentre as quais o FIP.

Foi a primeira vez que o tribunal decidiu assim, cabendo análise mais de perto já que o ineditismo é apenas a contraparte da decisão divergir da letra fria da lei sobre fundos de investimento.

Não resta dúvidas de que os fundos representam importante instrumento de intermediação financeira. Para os investidores, as vantagens da formação de poupança de longo prazo em fundos de investimento incluem os cuidados do gestor profissional e os ganhos de escala.

Para a economia, os fundos representam parte significativa dos recursos concentrados em segmentos de risco. Há uma série de operações complexas de captação que são estruturadas pelos chamados fundos estruturados (FII, FIDC, FIP). Destaca-se, ainda, o papel dos FIPs que garantem uma influência positiva em termos de gestão, vez que as normas da Instrução CVM 555/14 obrigam que os FIPs participem e influenciem a gestão das sociedades investidas.

A decisão do STJ deve ser bem analisada pois riscos adicionais, além dos riscos próprios ao objeto de investimento, podem comprometer a atratividade dos fundos – prejudicando, afinal, tanto os investidores de varejo quanto a economia. Sabendo que a desconsideração da personalidade jurídica nem sempre é aplicada com rigor pelo judiciário brasileiro, os fundos de investimento estariam sob o mesmo risco a partir de então.

O argumento da defesa do FIP era de que “o FIP e' constituído sob a forma de condomínio fechado, sem personalidade jurídica”, devendo-se reconhecer a inviabilidade da desconsideração da personalidade jurídica em fundo de investimento.

A discussão sobre a natureza jurídica dos fundos de investimento é antiga, e dela depende a correta individuação da disciplina aplicável a tais veículos.

A natureza condominial dos fundos foi inicialmente posta pelo art. 50 da lei 4.728/65, onde se fala de “fundos em condomínios”. Da leitura das disposições gerais aplicáveis aos condomínios (art. 1.314 a 1.322 do Código Civil), o legislador não conferiu personalidade jurídica aos condomínios, estando ausentes das pessoas jurídicas de direito privado dispostas no art. 44.

A lei 10.303/01 alterou a lei 6.385/76 e incluiu as cotas de fundos de investimento no rol de valores mobiliários do art. 2º. Conferiu, assim, competência para CVM regulamentar e fiscalizar tais veículos, o que foi feito especialmente pela Instrução CVM 409/14 em que os fundos de investimento foram definidos como “uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinado a` aplicação em ativos financeiros” (idêntico ao disposto na atual Instrução CVM 555/14).

Há, porém, incompatibilidades entre as normas aplicáveis aos condomínios e o funcionamento dos fundos de investimento, tal como se verifica na prática.

À título de exemplo, pode-se citar com Daniel de Avila Vio que “(i) a possibilidade de exigir a divisão da coisa comum a qualquer tempo (art. 1.320, caput, do Código Civil) não é conciliável com a disciplina do resgate de cotas, (ii) o prazo máximo de cinco anos para a eventual indivisão do acervo comum de bens convencionada pelos condôminos (art. 1.320, § 2º) não é adequado para investimentos de longo prazo e (iii) o direito de preferência na alienação de cotas do fundo de investimento (art. 1.322) impediria a negociação de tais valores mobiliários em bolsa”.

O mercado, a jurisprudência e a doutrina não largaram mão da qualificação dos fundos como condomínio (em especial porque as legislações assim dispõem expressamente), mas tampouco aplicaram-lhes indistintamente a disciplina dos condomínios. Deu-se preferência às normas regulatórias (CVM) e autorregulatórias (Anbima), enquanto as normas condominiais eram aplicadas apenas subsidiariamente e com cuidado para não esbarrarem nas exigências práticas dos fundos.

A natureza peculiar dos fundos foi expressamente disposta pela lei 3.874/19, chamada Lei de Liberdade Econômica, pela qual o Código Civil passou a dispor que fundo de investimento é “uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado a` aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza”.

Ainda, a Lei de Liberdade Econômica assegurou responsabilidade limitada aos cotistas (art. 1.638 - D) e autonomia patrimonial (art. 1.368 - E) aos fundos. Não lhes conferiu, por outro lado, personalidade jurídica, mantida a sua característica condominial de ente despersonalizado.

Teria razão a defesa ao pontuar a impossibilidade de desconsideração da personalidade jurídica do FIP. O motivo se explica em si mesmo: a impossibilidade lógica de aplicar desconsideração da personalidade jurídica em ente que não a tem.

Mesmo se ultrapassada essa questão “formal” (a personalidade jurídica decorre da lei, e não da pessoa em si), a estrutura econômica e jurídica do FIP, tal como disciplinado pela Instrução CVM 555/14, é incompatível a que o patrimônio comum responda pelas dívidas de qualquer dos cotista.

O profº. Francisco Satiro trata disso em texto intitulado “Constrição judicial sobre ativos do FIP”, onde ressalta características dos FIPs que vão de encontro à possibilidade de bloqueio dos ativos do FIP:

Por conseguinte, as consequências do patrimônio do FIP responder pelas dívidas do cotistas incluem (i) desenquadramento do FIP das exigências da Instrução 578/16; (ii) impacto negativo sobre o valor agregado da parcela de ações que remanesceram na carteira; (iii) repercussão em medidas de gestão programadas; e (iv) risco ao administrador e gestor quanto aos deveres impostos pela CVM.

Não resta dúvidas de que a constrição do patrimônio do FIP pelas dívidas de um único cotista ofende os direitos dos demais cotistas. A desconsideração da personalidade jurídica, nesse caso, representa prejuízos a terceiros estranhos ao vínculo obrigacional tutelado, tratando-se de modalidade abusiva de execução. São as cotas que integram o patrimônio do cotista – e não o patrimônio do fundo – que devem fazer frente aos débitos perante terceiros.

O voto vencedor do Ministro Ricardo Villas Boâs Cueva perpassa um movimento em dois tempos para alcançar a decisão de desconsideração da personalidade jurídica do FIP em questão:

Em primeiro lugar, o voto reconheceu que (i) “as normas aplicáveis aos fundos de investimento dispõem expressamente que eles são constituídos sob a forma de condomínio”, logo os fundos seriam “destituídos de personalidade jurídica”; e (ii) “o patrimônio gerido pelo Fundo de Investimento em Participações (FIP) pertence, em condomínio, a todos os investidores (cotistas), a impedir a responsabilização do fundo por dívida de um único cotista”.

Disso, concluiu que “não poderia a constrição judicial recair sobre todo o patrimônio comum do fundo de investimento por dívidas de um só' cotista, ressalvada a penhora da sua cota-parte”.

Em segundo lugar, o relator estabeleceu que a tese acima deve ceder pela presença simultânea de duas circunstâncias: (i) a própria constituição do FIP se deu para encobrir ilegalidades, ocasião em que os manipuladores se valeram de que o fundo de investimento não tem personalidade, mas “podem ser titular, em nome próprio, de direitos e obrigações”, para fraudar terceiros; e (ii) a ausência de terceiros de boa-fé (no caso, outros cotistas) que seriam prejudicados pela constrição do patrimônio do fundo, o qual teria apenas dois cotistas e ambos do mesmo grupo econômico. Nas palavras do Ministro Villas Boâs Cueva:

A impossibilidade de responsabilização do fundo por dívidas de um único cotista, de obrigatória observância em circunstâncias normais, deve ceder diante da comprovação inequívoca de que a própria constituição do fundo de investimento se deu de forma fraudulenta, como forma de encobrir ilegalidades e ocultar o patrimônio de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico. (...)

No momento da constrição determinada pelo juízo da execução, como consequência da desconsideração inversa da personalidade jurídica do devedor, o fundo de investimento que teve o seu patrimônio constrito possuía apenas dois cotistas, ambos integrantes do mesmo conglomerado econômico, a revelar que o ato de constrição judicial não atingiu o patrimônio de terceiros”.

Ainda que se trate de decisão não-vinculante, firmou-se precedente importante do STJ de que os ativos de titularidade de fundos de investimento estão sujeitos a constrição em caso de manipulação do fundo para ocultação de patrimônio.

Uma questão pertinente é se não existiam outros mecanismos gerais do direito que seriam aplicáveis ao caso e bastariam para garantir a proteção dos credores, sem necessidade de recorrer a desconsideração da personalidade jurídica. Fato é que o remédio pode se revelar pior que a doença caso juízes e/ou tribunais de instâncias inferiores apliquem o precedente na ausência dos pressupostos fixados pelo relator, lesando a indústria de fundos.

Cabe à doutrina e profissionais do direito enfatizarem que a decisão foi proferida em contexto muito específico e medida semelhante só pode ser cogitada quando preenchidas as condições excepcionalíssimas.

Caso seguida à risca, o precedente pode reforçar a proteção de cotistas e fundos de investimento, em especial dos FIPs, já que os ministros acertadamente reconheceram a impossibilidade de responsabilização do fundo por dívidas de um único cotista.

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Não há que se cogitar que o cotista que detenha 30% das cotas de determinado fundo, o qual possui 1.000 ações de uma companhia como único ativo, tenha direito a 300 dessas ações.

Rodrigo de Abreu Pinto
Formado filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Graduando em direito na PUC - Rio. Coordenador do Núcleo Acadêmico de Direito Societário e Mercado de Capitais da PUC - Rio.

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