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Dados sobre o impacto da desigualdade racial no aprendizado de direito privado

Os dados levantados durante o curso são aderentes a estudos realizados recentemente sobre as consequências da Lei de Cotas.

19/9/2022

Em julho de 2022 foi realizado o curso de Direito Civil Aplicado: Contratos no Mundo Globalizado1, um projeto gratuito, online e aberto ao público que aproveitou a passagem pelo país dos membros do Advisory Council da CISG2 para debater direito contratual a partir de influências internacionais3. O Curso contou com 2.719 alunos inscritos4. Os dados gerados serviram de base a este trabalho, que visa estudar a participação dos juristas sob o ponto de vista racial. O estudo analisa dados demográficos coletados no momento da inscrição e a performance dos alunos durante o curso através de notas e presença nas aulas.

1. Método e limitações

Este estudo faz análises quantitativas dos dados coletados durante o curso. A participação na pesquisa era obrigatória, mas a identificação racial não. Do total de inscritos, 598 pessoas, portanto 21,99% dos alunos, optou por não responder sobre sua identidade racial5. Este grupo foi excluído da análise quantitativa. É importante ressaltar que o próprio caráter voluntário da participação no curso, aliado à possibilidade  de envio de informações dos alunos para recrutadores, pode distorcer os dados, favorecendo candidatos mais ambiciosos ou em busca de novas oportunidades de trabalho.  Do total de participantes, apenas 11 pessoas se declararam asiáticos6, enquanto apenas 7 se declararam indígenas. Os números reduzidos podem sugerir distorções e erros nos resultados destes grupos.

Os alunos também preencheram quatro formulários, um para cada aula, registrando a sua presença. Em cada formulário havia quatro perguntas “certo ou errado7 sobre o conteúdo ministrado8 e pesquisas sobre os interesses jurídicos dos alunos. Assim,  dados de aprendizado e de interesses puderam ser comparados segundo perfis regionais, raciais, etários e diversas outras segmentações do público, viabilizando uma compreensão geral dos participantes. O principal escopo deste artigo são os dados raciais.

O curso foi financiado pelo próprio Curso Prático de Arbitragem, que, por sua vez, recebeu verbas de patrocinadores, os quais não interferiram no modelo do curso ou na organização dos dados, afastando conflitos de interesse.

2. O público racialmente segmentado

Dos 2.719 alunos, 1.430 (52,59%) se declararam brancos, 452 (16,62%) pardos, 211 (7,76%) pretos, 11 (0,40%) asiáticos e 7 (0,26%) indígenas:

(Imagem: Divulgação)

O formulário de inscrição foi preenchido por um público composto quase majoritariamente (98%) por juristas ou estudantes de Direito. Além do formulário de inscrição, foram preenchidos 1.938 formulários para marcação de presença nas aulas e 7.752 perguntas foram respondidas9.

3. Brancos, pardos e pretos

Negros, um grupo representado no Brasil pela soma de pretos e pardos10, representam 24,38% dos inscritos no Curso. A OAB Nacional, em seu site, não disponibiliza a estratificação racial de seus membros11, dificultando a comparação da distribuição racial dos participantes do curso com a distribuição racial dos advogados do Brasil, mas é possível fazer outras comparações. De acordo com o IBGE, a população negra é majoritária no Brasil (54%12). Este dado aponta a defasagem racial que existe entre a população brasileira e os juristas participantes do curso, majoritariamente brancos. O achado também corrobora dados de outros estudos que apontam as dificuldades enfrentadas por negros como os da análise do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert)13, de 2019, de que em grandes escritórios de São Paulo, apenas 1% dos advogados se identificam como negros. Igualmente, dados do Conselho Nacional de Justiça demonstram que apenas 21% dos magistrados se identificam pertencentes a este grupo14.

Os principais dados objeto do estudo são (i) a média de nota de cada grupo e (ii) o  "índice de retenção" de cada categoria, este último baseado na quantidade de presença em aulas durante o curso - um ponto importante, pois cursos gratuitos contam com altos índices de evasão e a obtenção do certificado de participação, com as honrarias e o compartilhamento dos dados com recrutadores, depende de presença em no mínimo três aulas.

a. Médias de notas

(Imagem: Divulgação)

Os dados apontam que pardos, pretos e brancos obtiveram notas similares no Curso, com variação inferior a 0,5% em relação à média da turma, sugerindo que o pertencimento a um ou outro grupo racial não afetou a performance destes indivíduos. Houve uma pequena superioridade das notas dos negros em relação aos brancos, mas a ínfima variação pode se enquadrar nas imprecisões matemáticas do estudo. Conforme previamente discutido, como foram poucos os participantes a se identificar como asiáticos ou indígenas, os resultados podem representar erros ou distorções, mas parecem sugerir uma performance brilhante dos que se identificaram como asiáticos e maiores dificuldades enfrentadas pelos que se identificaram como indígenas.

b. Índice de retenção

O “índice de retenção15 compara a presença em aulas em cada um dos segmentos raciais analisados. A ideia com este índice é medir a quantidade de evasão em cada categoria16.

(Imagem: Divulgação)

Os dados apontam que juristas negros e indígenas correm um risco substancial de abandonar o Curso, apresentando uma variação de -3,60% no caso dos pardos, -23,43% no caso dos pretos e -43% no caso dos indígenas. Os dados também apontam as vantagens desfrutadas pelos participantes asiáticos e brancos em termos de presença e retenção. Buscar estratégias de retenção destes públicos parecem críticas, pois, ao não completarem o curso e não receberem o certificado, estes grupos são mais uma vez desfavorecidos, tendo dificuldade de demonstrar suas capacidades e qualidades a terceiros.

4. Conclusão

Os dados levantados durante o curso são aderentes a estudos realizados recentemente sobre as consequências da Lei de Cotas: (i) médias de notas equivalentes entre negros e brancos17, (ii) percentuais de evasão superiores em relação aos negros18 e (iii) médias de notas inferiores e evasão superior em relação aos indígenas19. Há estudos que, detalhando as médias de notas entre brancos e negros, demonstram a menor diferenciação entre as notas destas categorias durante os cursos superiores - diferença maior no início e menor ao final20. Os dados parecem corroborar este achado na medida em que (i) a média de notas dos negros foi 0,5% superior à dos brancos e (ii) o público era constituído por 60,57% de alunos formados21.

Os dados recomendam a geração de incentivos à permanência dos grupos negro e indígena em projetos educacionais voltados ao desenvolvimento da advocacia privada. Dada a natureza dos mercados da advocacia, especialmente no contexto da resolução extrajudicial de conflitos, tais incentivos demandam aproximação com outros agentes, como instituições arbitrais, escritórios de advocacia e recrutadores profissionais. As principais ideias parecem ser: (i) a melhor obtenção de informações dos participantes, viabilizando maior detalhamento destes grupos, (ii) o envio de resultados de distinção de alunos dessas classes a recrutadores e empregadores, facilitando a contratação destas pessoas, e (iii) o aumento na capilaridade de divulgação de projetos congêneres, facilitando o alcance a maior número de pessoas destes grupos.

Uma última observação. Analisar os dados dessa forma é uma simplificação. Cada aluno que participou no curso possui o seu histórico e o seu contexto. Os dados mostram a existência de pessoas extraordinárias em todas as categorias: 10 alunos pardos, 7 negros e um asiático tiveram média superior a 90% de acerto nas perguntas e receberam o grau máximo de participação: Suma cum Lauda. Trata-se de distinção dirigida a apenas 3,27% dos alunos inscritos, querendo dizer que, fosse a expectativa probabilística levada literalmente, esses títulos sequer deveriam existir22.

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A apresentação completa do curso se encontra disponível neste link: https://cparbitragem.com.br/contratos-no-mundo-globalizado/

A primeira aula do curso apresentou o Advisory Council e a sua importância. Maiores informações em http://cisgac.com/

Todas as aulas gratuitas estão disponíveis neste link: https://www.youtube.com/playlist?list=PLS0rR8QrBloZGaGj1pmIjU-Wp-lLOWqIy

Os dados objeto deste artigo foram objeto de debates no webinar “Soluções para a diversidade negra na advocacia”, organizado pelo Comitê de Jovens Arbitralistas do Centro Brasileiro de Arbitragem, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=3LHvTCE0NkA

Importante ressaltar que tal dado se encontrava na seção com informações sobre recrutamento, o que de certa forma estimulou o não preenchimento desta informação.

A denominação utilizada pelo IBGE é “amarelo”, mas, em maioria, as pessoas se qualificaram como “asiático”, razão pela qual seguiremos utilizando esta denominação.

Eram perguntas múltipla escolha com apenas uma resposta correta.

A dificuldade era equilibrada em cada formulário: uma fácil, uma difícil e duas intermediárias.

Cada um com 4 perguntas múltipla escolha e pesquisas de interesses dos alunos.

10 A informação está disponível em diversas notícias sobre o tema, inclusive: https://vestibular.uol.com.br/noticias/redacao/2013/05/03/ibge-usa-classificacao-de-cor-preta-grupo-negro-reune-pretos-e-pardos.htm

11 As informações estratificadas pela OAB se encontram aqui: https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados

12 Há pesquisas indicando o percentual de 56% para negros e pardos. Utiliza-se, no entanto, esta notícia para fins de premissa comparativa: https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra/

13 Informação disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jun-12/negros-sao-somente-advogados-grandes-escritorios#:~:text=Um%20levantamento%20feito%20pelo%20Centro%20de%20Estudos%20das,pela%20Equidade%20Racial%2C%20nove%20bancas%20de%20S%C3%A3o%20Paulo.

14 Informações disponíveis em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judiciario-150921.pdf

15 O “Índice de Retenção” é obtido pela divisão da quantidade total de presença de cada grupo - um aluno que participou de 2 aulas soma 2 presenças, o aluno que participou das 4 somas 4, o aluno que participou de 0 soma zero, e assim por diante - pela quantidade de alunos contida em cada grupo. A “variação” é obtida a partir da comparação com a média ponderada de cada grupo.

16 Veja-se, o mesmo estudo poderia ser realizado a partir da comparação entre os diferentes títulos conferidos aos alunos (Suma Cum Lauda, Cum Lauda ou Regular), mas, para fins de simplicidade, utilizaremos referido “índice de retenção”.

17 Veja-se o seguinte trecho: “A busca por condições que permitam a igualdade no desempenho dos alunos é outra preocupação de Carlotti. Desde as primeiras discussões sobre cotas no Brasil, os críticos do modelo argumentavam que as ações afirmativas iriam depauperar o nível acadêmico das universidades. Um dos primeiros estudos a chacoalhar essa tese foi feito pela UnB. O trabalho comparou as notas entre cotistas e demais alunos entre 2003 e 2013. Constatou que, mesmo nas disciplinas mais concorridas, como medicina, não havia diferença expressiva de performance entre eles. A nota média dos cotistas ficou em 4,1, ao passo que a dos não cotistas, 4,2.” A íntegra do texto se encontra disponível aqui: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/09/09/lei-de-cotas-o-que-mudou-e-o-que-falta-mudar-nestes-10-anos.ghtml

18 “Um estudo coordenado pela professora Marta Arretche, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), identificou que a taxa de evasão dos alunos pretos, pardos e indígenas que estudaram em escolas públicas, o grupo mais frágil em termos econômicos, foi de 25% entre 2018 e 2021. Em contrapartida, entre estudantes brancos de colégios particulares, ou seja, os mais abonados, o mesmo indicador ficou em 17%”. Trecho extraído da mesma notícia referida na nota anterior.

19 Na mesma notícia: “Já no caso da população indígena, tanto a inclusão como a permanência e o desempenho acadêmico, assim como a adaptação ao espaço físico das universidades, representam entraves ainda mais tortuosos do que os enfrentados por negros e pobres”.

20 O estudo se encontra referido na mesma notícia: “O estudo coordenado pela professora Marta Arretche, da FFLCH, chegou a conclusões parecidas, ainda que não idênticas. Ela acompanhou por quatro anos as notas dos cerca de 11 mil estudantes que entraram na USP em 2018, quando a universidade aderiu às cotas.

No levantamento, ela constatou que, no início do curso, havia, sim, um desvio entre a performance dos alunos provenientes de escolas públicas e daqueles que estudaram em colégios particulares. “E não poderia ser diferente”, diz Arretche. “Se os cotistas estivessem tão bem-preparados quanto os demais, não precisariam de cotas para entrar na universidade.” Assim, a diferença entre os dois grupos foi de 1,2 ponto (a mediana das notas) no início da graduação. Ao longo do curso, entretanto, essa brecha minguou. No fim de 2021, estava em 0,7.”

21 Seguem os quantitativos de alunos por tempo de formado:

Universitário                  1.072           39,43%

Menos de 2 anos 377         13,87%

Entre 5 e 2 anos   368         13,53%

Entre 5 e 10 anos 365         13,42%

Mais de 10 anos  537         19,75%

22 A conta é simples: eram apenas 11 alunos asiáticos e 10 com deficiência. Três por cento destes valores dá menos de um (assim como com os negros, que, pelos números, apenas 6, e não sete, deveriam ter alcançado o título de Suma cum Lauda).

Lucas Vilela dos Reis da Costa Mendes
Diretor do Curso Prático de Arbitragem. Sócio de Laudelino Advogados. Advogado.

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