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Eleições no Brasil, a condenação de Sócrates e o candidato “menos pior”

A trajetória de Sócrates permite fazer uma analogia com o cenário eleitoral brasileiro, no qual ano após ano reaparece a figura do candidato “menos pior”, sendo uma triste representação de uma democracia ainda incapaz de gerar representantes dignos.

13/9/2022

Em 2022 o Brasil está celebrando o bicentenário de sua independência de Portugal. Não obstante, em um recorte colonial de pouco mais de 500 anos, a antiga terra de Pindorama parece ainda lutar por uma identidade nacional e por uma democracia cívica consolidada. A jovem democracia brasileira possui inúmeros exemplos de abusos, desrespeito, demagogia, corrupção e desprezo não só ao país e às instituições, como também à sociedade. Em meio a um contínuo e conturbado cenário político, o povo brasileiro é convocado a cada dois anos a participar do processo eleitoral e escolher representantes nas esferas municipal, estadual e federal. Todavia, o período das eleições longe está de consagrar a tão anunciada festa da democracia, mas sim se assemelha a um momento não de esperança, mas do aflorar de um instinto de aversão e sobrevivência pautado em ano após ano a escolher o sofrível “candidato menos pior”. É bem verdade que a percepção do que seria essa constante figura do “menos pior” no processo eleitoral brasileiro varia conforme as compreensões pessoais de cada um, mas o fato é que a aceitação desse estado mórbido de fazer juízos políticos de exclusão somente acaba por corroer o real sentido da democracia e os anseios de todos pela construção de um país melhor.

Nesse contexto, ao se tentar entender o processo eleitoral no Brasil e confrontá-lo com o denso conceito de democracia, torna-se inevitável rememorar as suas origens na Grécia clássica e igualmente relembrar um de seus mais ilustres cidadãos, cujos ensinamentos ainda ecoam nos dias atuais: Sócrates. O renomado filósofo grego nasceu em Atenas e durante toda sua vida pautou-se em respeitar a cidade e as suas decisões, ainda que fossem contrárias as suas convicções. Sócrates participou de três campanhas na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), foi membro da assembleia dos 500 (bulé), encarregada de deliberar sobre os principais assuntos na cidade, e em diversas ocasiões não aceitou tomar decisões contrárias ao que dispunha a lei. Sempre fiel as suas convicções, sobretudo seguindo uma humildade intelectual em que professava nada saber em contraste àqueles que se vangloriavam de tudo saber, a sua retidão e compromisso com a verdade, tal qual costumeiramente acontece no Brasil, geraram oposição e perseguição por àqueles que se sentiam expostos e prejudicados por seu comportamento íntegro. Em suas investigações, Sócrates encontrou uma grande quantidade de pessoas que se gabavam em acreditar saber alguma coisa, quando estas, na verdade, pouco sabiam. Tal confrontação, no entanto, levou à ira de muitos e à acusação por Meleto, Anito e Lícon de corromper os jovens e os deuses da cidade. Em um processo marcado por inúmeras contradições, o intuito dos detratores de Sócrates era que o mesmo se exilasse voluntariamente e, assim, pudessem prosseguir com seus ofícios tendenciosos e livres de incômoda oposição.

A despeito do intuito almejado pelos detratores de Sócrates, o pensador, convicto com a sua retidão e ideais, permaneceu em Atenas para ser julgado e defendeu-se a si próprio no tribunal. Apesar da bravura apresentada, Sócrates foi condenado e foi-lhe imposta a pena de exílio ou de ter a sua língua cortada para que assim não pudesse mais proferir os seus ensinamentos. Caso as rejeitasse, teria, então, que morrer. Apesar das opções mais brandas, Sócrates não negou as suas convicções e a sua cidade, optando por permanecer em Atenas, onde teve que ingerir um veneno chamado cicuta para cumprir a sua punição e, assim, suicidar-se. Antes de fazê-lo, porém, eternizou a sua despedida nas seguintes palavras: “Mas eis a hora de partir: eu para a morte, vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto os deuses” (Apologia, p. 28).

Retomando ao cenário brasileiro, o exemplo de Sócrates traz importantes lições e analogias para o dilema que padece o cidadão brasileiro na combalida democracia pátria. Tal qual como Sócrates, existe um movimento pujante de brasileiros que buscam a verdade, a justiça, a igualdade social, o equilíbrio e a tolerância, muitas vezes sendo minoria, objeto de perseguições, histerias, repúdio e grandes injustiças. A perseguição sofrida por Sócrates ganha contornos nacionais e ecoa entre muitos brasileiros a opção do “exílio”, buscando uma vida melhor em algum país em que direitos básicos e o exercício da cidadania são adequadamente respeitados. No entanto, além de ser uma opção dispendiosa e culturalmente difícil, deixar a pátria a qual tanto se comprometeu e possuí vínculos não é uma alternativa simples. Sócrates pelejou por Atenas e cria ter uma missão com a cidade. Mesmo com as injustiças perpetradas permaneceu fiel ao que ela representava e comprometido em dar o seu melhor. Por outro lado, perder a sua língua também não era uma opção aceitável e, figurativamente, em tempos de deturpação da liberdade de expressão, não poder falar e se opor fundamentadamente às constantes irregularidades presenciadas em todas as esferas de poder no Brasil não é uma opção válida. O que remanesce parece, pois, ser um destino emprestado por analogia e figurativamente ao de Sócrates. No caso, o filósofo foi condenado a ingerir veneno e suicidar-se. A seu turno, com o recorrente desvirtuado cenário político brasileiro em que continuamente não se tem candidatos dignos para se votar, parece remanescer ao desesperançoso eleitor um suicídio na alma e em seus anseios e sonhos por um país justo e igualitário. Votar no pretenso candidato “menos pior” é ser compelido a ingerir um veneno aniquilador de convicções e crenças pessoais em prol de uma solução inadequada.

Ao ter que a cada eleição matar as suas convicções votando no sempre presente “candidato menos pior”, a cidadania brasileira ingere o seu veneno e perpetua um estado fúnebre de desesperança. É uma ação não desejada provocada por terceiros em um contexto político completamente desvirtuado. Esse veneno não só aniquila a democracia no país, como também gera alucinações a ponto de no intuito de rejeitar determinado candidato fazer brotar virtudes em pessoas desvirtuosas e uma cegueira deliberada à notórias violações de direitos e garantias fundamentais, ao patrimônio público e ao bem-estar coletivo. O suicídio eleitoral ocorre quando ideais nobres e pessoais são abandonados para se amoldarem ao nefasto candidato “menos pior”, ao qual em circunstâncias minimamente normais e éticas jamais seriam aceitos, e assim dar tração a errante e anômala democracia brasileira. Surge, então, uma imaginária e injustificável balança entre os candidatos em que a suposta grandeza de um é medida pelos erros do outro, sendo que o que a história normalmente demonstra é que ambos não possuem virtude alguma para ser considerada e enaltecida.  Ressalte-se, por necessário, que tal panorama não é exclusivo dos dias de hoje, mas sim cíclico e presente em todas as esferas federativas do país. Em um país onde o slogan “rouba, mas faz”, inaugurado por Ademar de Barros nas eleições para prefeito em São Paulo em 1957, é tolerado, quando não venerado, é necessário romper com ciclos viciosos e não esperar a mudança, mas sim ser a mudança.

Sócrates não foi um proeminente político ateniense, mas um cidadão local que em pequenas ações do seu cotidiano não se furtou em cumprir a lei e fazer o que era correto, ainda que não fosse reconhecido, sendo até mesmo perseguido. Mesmo diante da injustiça não se irou, não agrediu ninguém, não se voltou contra as instituições, mas manteve a sua integridade em um exemplo que se perpetua até a atualidade. O seu legado e ensinamentos são atemporais e inspiram a que o governo do povo (demo: povo; kratos: poder) tome os rumos que lhe pertencem e alcance o bem comum em uma sociedade complexa e plural. A escorreita cidadania individual quando tomada em conjunto torna-se uma força pujante a inspirar e transformar a sociedade brasileira possibilitando extirpar a nefasta existência do candidato “menos pior”, gerar uma consciência coletiva do bem apta a produzir representantes dignos e torná-la, finalmente, uma festa democrática a ser celebrada.

Fernando Procópio Palazzo
Advogado. Mestrando em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e pela Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal.

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