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A cegueira do board: caso da Netflix vs. Disney+

O riscos da transformação digital abraçam dissimuladamente os incumbentes.

9/9/2022

O riscos da transformação digital abraçam dissimuladamente os incumbentes. Com a percepção do entorno ofuscada pelo legado construído e no conforto do protagonismo, os líderes postergam suas reações até quando a asfixia econômico-financeira é irreversível. O stack de ferramentas dos competidores com fluência digital, precisa ser conhecido pelos boards e aplicado na formulação das diretrizes estratégicas. Empresas com fluência digital são aquelas consideradas nativas digitais, e as tradicionais que já se adaptaram ao fenômeno da transformação digital.

O emprego imoderado da palavra disrupção e de suas variações pede uma definição que regre sua aplicação sem excessos. No contexto das estratégias corporativas, um novo modelo de negócio é disruptivo quando satisfaz três princípios: (i) oferece uma proposta de valor superior às práticas existentes; (ii) contém um ingrediente de inimitabilidade; (iii) altera do marketshare e reduz a participação do incumbente. Tais estratégias são raras, mas podem ocorrer em todos os setores.

A internet permite que modelos de negócio em Plataforma Digitais (PD) criem um ativo intangível e inimitável denominado Rede de Valor, que opera como um sistema de stakeholders. O conjunto das interações neste sistema, denominado Efeitos de Rede, produz e distribui valor entre seus constituintes, facilitando a troca de bens, serviços ou de algum tipo de moeda social de valor intangível, como status, conveniência, segurança ou realização de propósito personalíssimos. O usuário do Waze otimiza o uso do tempo enquanto o do Uber promete sua segurança ao possibilitar viagens com motoristas bem avaliados - o valor gerado pelos Efeitos de Rede é redistribuído dentro da PD.

Os desafiantes com pegada digital conseguem atrair novos consumidores (outside-in) e, simultaneamente, capturar clientes dos incumbentes (inside-out). Por exemplo, em seus primeiros anos, o Airbnb teve 70% de sua receita originadas por pessoas que jamais haviam pago por hospedagem em viagens. A velocidade de crescimento da PD depende do quão rápido a Rede de Valor cresce, da intensidade e qualidade de suas interações e da capacidade de redistribuição do valor produzido. A Apple construiu rapidamente sua Rede de Valor por meio da AppleStore, que reuniu milhares de desenvolvedores capazes de oferecer aplicativos para milhões de consumidores – e deslocou a incumbente em apenas dois anos. A Nokia competiu com propaganda e inundando o varejo com promoções. Mas a competição mudou, pois, a Apple oferecia uma proposta baseada em valores intangíveis como conforto, conectividade e divertimento, mas os tomadores de decisão da blue-chip não perceberam a mudança a tempo.

As PDs estão nas diretrizes estratégicas de empresas de todos os setores, incluindo saúde, governo, mercado de capitais, educação, pequeno e médio comércio, entidades do terceiro setor, além do varejo e indústria de todos os tipos. A escola de inglês de referência migrou para o online, a rede de restaurante famosa está em recuperação judicial, o plano de saúde foi comprado e o tradicional instituto perdeu associados e relevância. Não há setor protegido em tempos de afrouxamento das cinco Forças de Porter. As barreiras de entrada em novos mercados reduziram, novos players se multiplicam, a substituição de produtos e serviços é a expectativa dos clientes e a rivalidade entre os concorrentes cede espaço para alianças construídas entre coopetitors.

Negócios com escalabilidade, elasticidade, resiliência e responsividade requerem profundo conhecimento de mercado, atualizado e em larga escala. É preciso sentir o mercado e antecipar movimentos estratégicos para entregar a promessa do foresight corporativo. Recentemente a Disney+ anunciou a marca de 150 milhões de assinantes, alcançada em apenas 31 meses – enquanto a Netflix precisou de mais de 15 anos para alcançar a mesma marca. Está correto argumentar que a Netflix abriu mercado, pois utilizou a estratégia outside-in do tipo New Market, aproveitando a universalização do acesso à internet, com um modelo de negócios baseado em low-cost-high-volume.

No entanto, o movimento da Disney+ não foi o de um mero seguidor que soube se posicionar em um novo mercado. A desafiante apresentou os três elementos de uma estratégia verdadeiramente disruptiva. No lançamento ofereceu proposta de valor superior, com um serviço padrão equivalente ao pacote premium da incumbente, por menos da metade do preço. O elemento de inimitabilidade reside no vínculo e fidelização em várias gerações por meio do acesso exclusivo aos produtos Pixar, Walt Disney Pictures, Star Wars, Marvel, e 21st Century Fox. Adicionalmente, estas marcas trouxeram milhões de consumidores que interagem regularmente em redes sociais (Value Network) e produzem Efeitos de Rede que fortalecem o brand equity. Por fim, a Disney+ é um disruptor que deslocou a incumbente, nativa digital, para um posicionamento de menor marketshare.

Enquanto a Netflix decretou a fim da Blockbuster num movimento competitivo entre incumbentes e a primeira onda de nativos digitais, típico da virada do século, a Disney+ chega para mostrar que ninguém está seguro na liderança de seus mercados, independentemente de seu tamanho ou fatia de mercado. Assim como a Apple fez 15 anos atrás, A Disney+ combinou os modelos outside-in (low-cost) com o inside-out (high-quality) para simultaneamente ampliar o mercado e confrontar o incumbente com uma nova proposta de valor, sustentada por uma Value Network (ativo intangível inimitável).

Em tempos VUCA-BANI, a criação e sustentação de valor depende da gestão do conhecimento gerado nas Redes de Valor, em particular diante do fator da transição geracional, que será o golpe de misericórdia em muitos líderes, atualmente deitados no berço esplêndido da plena incumbência. A materialização da Grande Transferência de Riqueza (Great Wealth Transfer) combina a transferência de valor patrimonial com a mudança de valores pessoais. Os consumidores de até 25 anos, atuais e futuros, buscam uma proposta de valor que que dificilmente é percebida pelo board com distintos senhores brancos com mais de 65 anos. Além do calçado, espera-se o bem-estar dos animais. Além do diploma, a empregabilidade. Além do pão, a comunidade. Este discurso, piegas aos ouvidos da maioria dos que conhecem o mercado há 40 ou 50 anos, vem fortemente embrulhado no pacote ESG e intensificado pelo fenômeno da transformação digital com modelos de negócio Web 3.0.

Mas você não sabe o que Web 3.0? É importante saber o que não se sabe.

Dica do dia: descubra se o Conselho de Administração de sua empresa é assessorado por um comitê capaz de identificar os principais riscos gerados pela transformação digital: riscos de estratégia, reglayório, competição, reputação, financeiro, tecnologia e de mercado. Veja também se algum conselheiro pode explicar como a transição geracional e a Web 3.0 influenciam as diretrizes estratégicas em sua organização.

Alexandre Oliveira
Cons. de Administração focado em Estratégias e Riscos da Transformação Digital. Membro da Comissão Estratégia (IBGC). Pós-graduado Negócios Digitais e em Finanças. Doutorando em Decisões Corporativas.

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