Como sabido, o Regulamento do Imposto de Renda (RIR 2018), determina as hipóteses legais da relação de dependência econômica com o contribuinte pessoa física, tanto para fins de abatimento de despesas suportadas por esse contribuinte, como também para fazer somar eventuais rendimentos auferidos pelos dependentes. Note-se que o legislador adotou alguns critérios para aceitar a relação de “dependência” com o contribuinte, sendo, de maneira geral, o vínculo familiar e/ou a relação de responsabilidade jurídica do contribuinte com o “dependente”. Nada obrigatório, posto que declarar alguém como dependente é uma faculdade. Há uma lista de dependentes no do RIR/18 (art. 71) para tais fins.
Pode também o contribuinte abater da base de cálculo do tributo os valores que paga como pensão alimentícia, nos moldes do RIR/18 (art. 72).
O que se percebe é que aqueles que de alguma forma se inserem no núcleo familiar, por vínculo sanguíneo ou jurídico, podem compor parcela “dedutível” do imposto de renda.
Contudo, a regra tributária pensa a família como sendo aquela formada por apenas humanos, na relação entre humanos. Como se tem visto, dada a afetividade gerada na relação familiar com animais domesticados, tem-se a percepção que os animais não humanos integram o núcleo familiar. Surge o conceito de família multiespécie, que pode ser definida como aquela formada pela família humana e os seus animais de estimação, numa relação de interdependência emocional.
Tal realidade social é tão verdadeira que cães e gatos são vistos circulando com seus tutores (já não se fala mais donos) em shoppings centers, restaurantes, salões de beleza e até em ambiente de trabalho.
Dessa percepção de que “fazem parte da família”, são objeto de disputas judiciais familiares. Várias sentenças reconhecem o direito de visita aos “pets”, em divórcios e outros tipos de litígios. Sobre esse tema, há de se mencionar o voto do Ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp. 1.713.167/SP. No caso, a controvérsia principal está na possibilidade de haver regulamentação de visitas à animal de estimação, após o fim da união estável entre os conviventes. Segundo o Relator, “(os) animais, possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. O Judiciário necessita encontrar solução adequada para essa questão, ponderando os princípios em conflito, de modo a encontrar o resguardo aos direitos fundamentais e a uma vida digna.” Asseverou ainda o Ministro: “penso que a ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de - companhia - sobretudo nos tempos em que se vive - e negar o direito dos ex-consortes de visitar ou de ter consigo o seu cão, desfrutando de seu convívio, ao menos por um lapso temporal.”
Em 2015, uma das primeiras decisões sobre a “guarda” de animais de estimação na Décima Câmara de Direito Privado do TJ/SP, por maioria de votos, impôs ao casal num divórcio a guarda alternada, com o revezamento do direito de ficar com o animal entre eles. O Acórdão entendeu que o animal não podia ser visto como coisa para ser partilhado, mas que o animal e os ex-cônjuges deveriam permanecer em convivência contínua, ainda que o então casal de tutores não seja mais um casal. No Paraná, mãe e filha brigam na justiça pela guarda de uma cadelinha. Em liminar, o desembargador Dalla Vecchia, da Décima Primeira Câmara Cível do TJ/PR, determinou que o animal ficasse com a genitora. Em São Paulo, o TJ/SP acolheu o pedido de ex-companheira para que fosse fixada uma “pensão” para prover os quatro cães adquiridos pelo casal, condenando o ex-companheiro a pagar em torno de R$ 20 mil de ressarcimento de despesas com os animais, além de R$ 500 mensais, até a morte dos cachorros. Para o Tribunal, ao adquirir os cães com a ex-companheira, o então companheiro também adquiriu o dever de prover-lhes uma existência digna. O caso está sendo apreciado no STJ.
Como se percebe, os “pets” têm sido acolhidos judicialmente como membros da família. As questões relativas à guarda, visitação e “alimentos”, estão sendo entendidas pelo Poder Judiciário como questões do núcleo familiar.
Se o Judiciário tem reconhecido uma certa proteção “familiar” aos animais de estimação, o Legislativo tem debatido a “descoisificação” dos animais domésticos. Tramita no Congresso o PL 145/21-CD, que concede legitimação processual às pessoas não humanas, representadas nos processos judiciais por instituições de Justiça como o Ministério Público e a Defensoria Pública, por associações de proteção animal ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda. Na mesma seara, o PL 62/19 trata da guarda dos animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da sociedade conjugal.
Tais projetos servem para alinhar nossas leis à percepção da importância dos animais que o Judiciário vem esboçando. A compreensão de que animais são seres sencientes, com emoções e sentimentos, nos inclinam a deixar de defini-los como coisas móveis ou semoventes, objetos ou bens materiais. Abandona-se a "coisificação" do animal, surgindo um novo sistema de direitos, tornando-os membros da família. Há tempos, o Código Civil Francês entende a senciência animal e o Código Civil Alemão afirma que os animais não são coisas.
Voltando ao Brasil, o PL 2.816/21 visa permitir a dedução das despesas médico-veterinárias com cães e gatos no Imposto de Renda de Pessoa Física, justificando suas razões no fato de que estudos científicos atestam que a convivência com pets ajuda a melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Ora, se os animais são de estimação e não somos mais seus donos, mas seus tutores, razoável possibilitar ao contribuinte que tem “filhos animais” que possa fazer tal abatimento, como pode fazê-lo com seus filhos humanos. É a expressão do princípio da igualdade tributária: se podemos deduzir as despesas médicas, por exemplo, de nossos filhos, tutelados ou curatelados, nada mais justo que possamos fazê-lo como as mesmas despesas que arcamos de nossos “pets”, pois estes também estão sob nossa “tutela”. Se podemos abater a pensão alimentícia paga aos nossos filhos do montante de incidência do Imposto de Renda, coerente que possamos fazê-lo quando pagamos “pensões” para o sustento dos animais de estimação.
Todavia, é sabido que toda a mudança legal em favor do contribuinte costuma se arrastar por anos. O estado não gosta de perder. Talvez seja hora de o Judiciário reconhecer tal possibilidade, o que servirá para ratificar a percepção social de que os animais de estimação merecem o reconhecimento do tamanho de sua importância no núcleo familiar.